Sonhos: a interpretação causalista redutiva freudiana

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Os primórdios da psicanálise têm seu gérmen a partir do momento em que Freud entra em contato com a escola de hipnotismo francesa (JUNG, 2013c). Ali, através da hipnose, ele experimenta diretamente a presença e influência do inconsciente na personalidade. Por razões de efetividade terapêutica, mais tarde, junto de Josef Breuer, eles abandonam a prática hipnótica, e passam a usar como prática terapêutica exclusivamente a associação livre. É consolidado assim o método psicanalítico.

Jean Martin Charcot fazendo uma demonstração da hipnose em uma mulher histérica.                                      Fonte: encurtador.com.br/cgJR0

A via para o inconsciente agora se dava através de uma forma interpretativa do discurso, a partir da análise de sintomas e repetições, de forma que o paciente era, ao contrário do método hipnótico, agente participante do seu processo terapêutico. Faltava, porém, uma via direta de diálogo com o inconsciente, sem o filtro da consciência. É nesse contexto então, que se dá a grande descoberta de Freud: o sonho como a via régia para o inconsciente, publicando assim em 1900 a obra “A interpretação dos sonhos”. “[Este livro] contém, mesmo segundo meu julgamento atual, a mais valiosa descoberta que tive a felicidade de fazer. Um insight como esse só nos ocorre uma vez na vida” (FREUD, 2018, contracapa).

Primeira edição da obra “Die Traumdeutung” (1900), traduzido para “A interpretação do sonhos”             Fonte: encurtador.com.br/iwEU0

A partir de 1907, Carl Gustav Jung dá início ao seu contato com Freud, que dura até 1913, período de parceria e coparticipação em descobertas psicanalíticas. É embasado na noção psicanalítica, que se inicia o conhecimento de Jung sobre o sonho. Mais tarde, ele a coloca como parte integrante de sua compreensão sobre a fenomenologia do sonho, a nomeando de perspectiva causalista (JUNG, 2013a).

Sigmund Freud (parte inferior esquerda) e Carl G. Jung (parte inferior direita) na mesma foto durante visita aos Estados Unidos em 1909. Fonte: encurtador.com.br/dUY36

Nessa teoria do sonho, ele é compreendido como produto de uma complicada conexão de fenômenos psíquicos, uma obra que tem seus motivos, advindos de cadeias prévias de associações, sempre referindo-se a algo anterior, um passado psíquico, e possui, portanto, um significado. Esse método baseia-se em um procedimento redutivo, exclusivamente causal, que decompõe o sonho nos componentes de reminiscências e nos processos instintivos que lhe constituem a base (JUNG, 2014). Ante a obscuridade e confusão que se apresenta o sonho como o lembramos, dá-se o nome de conteúdo manifesto. Ele seria a fachada pelo qual se esconde a verdadeira ideia do sonho, o conteúdo latente (FREUD, 2018).

O “sonho manifesto”, isto é, o sonho tal como nos lembramos dele, segundo Freud, é como a fachada de uma casa: à primeira vista nada revela de seu interior, que fica oculto por detrás da chamada censura do sonho. Permitindo-se que a pessoa fale sobre os detalhes de seu sonho – obedecidas determinadas regras técnicas – vemos que as ideias que lhe ocorrem seguem todas uma mesma direção, concentrando-se em torno de um assunto específico, de significado pessoal. Inicialmente, essas ideias assumem um sentido que se dissimulava por trás do enredo do sonho. […] Esse complexo específico de pensamentos em que se concentram todos os fios do sonho é o conflito procurado, que se apresenta numa variação condicionada pelas circunstâncias (JUNG, 2014, § 21).

A forma toda especial que adquirirá o conteúdo manifesto do sonho corresponde a disposição psíquica do indivíduo, ou seja, sua individualidade. Nosso estado de espírito no presente depende de nossa história, e, por isso, os elementos de valores, na diversidade de cada pessoa, são os determinantes da constelação psíquica. Acontecimentos que provocam fortes reações de sentimento são de grande importância para o desenvolvimento psíquico posterior. Essas recordações, dotadas de forte carga emocional, formam complexos de associações mais ou menos extensos, que Jung (2013c) dá o nome de “complexos ideoafetivos”.

São, portanto, as associações consteladas pelos complexos que dão forma para o conteúdo manifesto do sonho, e é através dele que se pode fazer o caminho contrário para compreender seu conteúdo latente. Nesse método interpretativo, se volta ao passado para reconstituir certas experiências anteriores, a partir da manifestação de determinados motivos oníricos. Esse percurso é de utilidade em contexto terapêutico por abrir a possibilidade da conscientização de conteúdos inconscientes, ou de revelar fatos que o paciente não queria contar.

Se alguém sonha, por exemplo, com uma mesa, estamos ainda bem longe de saber o que a palavra “mesa” do sonho significa, embora a palavra “mesa” em si pareça suficientemente precisa. Com efeito, há qualquer coisa que ignoramos, e é que esta “mesa” é precisamente aquela mesa à qual estava sentado o pai do sonhador, quando lhe recusou qualquer ajuda financeira posterior e o expulsou de casa como um sujeito imprestável. A superfície lustrosa desta mesa está ali, diante de seus olhos, como o símbolo de uma inutilidade catastrófica tanto no estado de vigília, como nos sonhos noturnos. Eis o que o sonhador entende por “mesa” (JUNG, 2013a, § 539).

Fonte: encurtador.com.br/cnrzW

Os elementos do conteúdo manifesto, em relação ao conteúdo latente, apresentam-se não só de forma difusa e distorcida, como também uma espécie de resumo de um conglomerado de conteúdos psíquicos inconscientes. Em um único sonho, a partir de uma reflexão sobre o mesmo, é possível obter uma infinidade de observações, percepções e associações subjacentes, de forma que todas façam sentido. Esses, revelam os pensamentos oníricos, que são processos correntes na dinâmica psíquica, uma espécie de pauta inconsciente levantada e eliciada pelos processos vivenciados em vigília. São produtos da constelação psíquica do dia a dia. 

Segundo Freud (2018), essa multiplicidade se dá devido o trabalho de condensação realizado pela elaboração onírica, um processo em que se incute uma diversa cadeia de significantes em um único sonho. Portanto, da mesma forma que um sonho pode se ligar a mais de um fato, um objeto do sonho pode condensar e se referir a mais do que apenas um elemento. Um bom exemplo é quando no sonho, nos deparamos com uma pessoa que se parece com alguém que conhecemos, mas ao mesmo tempo nos lembra outra pessoa.

Fonte: encurtador.com.br/bxAG4

Outro processo comum e importante do sonho é o deslocamento. Aqui, o pensamento onírico é encoberto por uma espécie de disfarce. “[…] seu conteúdo é ordenado em torno de elementos centrais diferentes dos pensamentos oníricos […] ou seja, arrancado do contexto e, dessa maneira, transformado em algo estranho” (FREUD, 2018, p. 328). 

Esse mecanismo do sonho contribui com o processo de censura do conteúdo latente, pois encobre seu significado. A citação usada acima é um ótimo exemplo. A mesa de pinho, como conteúdo manifesto, é um deslocamento do real conteúdo latente: a recusa de auxílio financeiro e expulsão de casa realizada pelo seu pai, que no momento se sentava à mesa de pinho.

Fonte: encurtador.com.br/nuGP8

Freud (2018) em sua teoria interpretativa, postula uma regra geral que se aplicaria ao sentido de todo sonho: ele representa a realização de um desejo reprimido. Todo o processo de censura realizado pelo contudo manifesto – que segundo ele, acontece no processo do acordar – seria justamente para mascarar aquilo que há de recalcado pela consciência. Mesmo os sonhos de angústia seriam distorções devido à defesa contra um desejo que, para a consciência, é insuportável assumir. Para o autor portanto, o sonho teria duas etapas: a realização da fantasia desejante e, após isso, sua censura, que só permite que uma ideia se manifeste quando está tão deformada que o sonhador não a consegue reconhecer, graças a isso, a informação se torna tolerável para consciência.

Tais fantasias se referem a desejos de caráter sexual (FREUD, 1997) que, por demais incompatíveis com a moral do ego, não podem tornar-se conscientes, devido a uma força contraria que se opõe a elas pela consciência: o recalque. A consciência mantém esses conteúdos inconscientes, e isso é sentido durante o processo de análise como resistência, manifestação da força que provocou e mantém o recalque. Para a psicanálise, o recalcado é o protótipo do que é inconsciente (FREUD, 2011). 

Fonte: encurtador.com.br/cnDNY

Sendo o inconsciente, para Freud, um conglomerado de conteúdos recalcados devido sua incompatibilidade para com a consciência. É compreensível que ele postule os sonhos como mera manifestação destes. Já Jung não o considera de forma tão redutiva:

De acordo com a ideia original de Freud, o inconsciente é uma espécie de recipiente, ou porão, para material reprimido, desejos infantis e coisas do gênero. Contudo o inconsciente é bem mais do que isso: ele é, simplesmente, a base, a condição preliminar da consciência.  Representa a função inconsciente do psiquismo. É a vida psíquica antes, durante e depois da tomada de consciência. Como a criança recém-nascida, que chega ao mundo com o cérebro pronto e altamente desenvolvido, e cuja diferenciação foi formada pela experiência acumulada dos seus antepassados, no decorrer de séculos e séculos sem conta. Assim também a psique inconsciente é formada por instintos, funções e formas herdadas, já pertencentes à psique ancestral (JUNG, 2013b, § 61).

Fonte: Jung (2009)

Sendo suas considerações sobre o inconsciente diferentes das de Freud, também suas perspectivas sobre os sonhos se diferenciam das dele. Melhor dizendo: as concepções de Jung sobre o inconsciente e, logo, sobre os sonhos, consideram os conhecimentos freudianos como componentes da psicologia analítica, e uma etapa do processo de análise. Ou seja, a fenomenologia psíquica do sonho – bem como de todo o inconsciente – para a psicologia analítica, não se reduz à lógica causal, onde se dá um porque para um fenômeno, isso compõe uma parte de sua totalidade, ou melhor, um lado.

Dentre vários motivos, Jung busca outras perspectivas para o fenômeno psíquico pelo fato de a psicologia prestar contas àquele que sofre psicologicamente. Para este, nem sempre a conscientização de conteúdos inconscientes resolve seu problema. A partir desse ponto, os sonhos interpretados pelo método causal apenas continuariam a trazer as mesmas informações já sabidas. Não seria uma grande novidade, pois as causas anteriores se reduzem às bases do sujeito, que são sempre as mesmas. 

É necessário compreender também o que o inconsciente e o sonho estão querendo dizer com tal situação, o que ele informa sobre o que pode ser feito. Com isso, entende-se o produto psíquico do ponto de vista de sua finalidade, e o sentido que tende o atual processo psíquico (JUNG, 2014). Não à toa, Carl Jung é um teórico da Individuação.

 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. 736p. Tradução do alemão de Renato Zwick, revisão técnica e prefácio de Tânia Rivera, ensaio biobibliográfico de Paulo Endo e Edson Souza.

FREUD, Sigmund; SALOMÃO, Jayme. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição ‘Livros do Brasil’, 1997.

FREUD, Sigmund. Obras completes, volume 16:  O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Tradução de Paulo César de Souza.

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (OC 16/1). 

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012. (OC 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. 7. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 366 p. (Obras Comp). Tradução de Lúcia Mathilde Orth; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

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Eu tenho um sonho…

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…de que meus quatro filhos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor da pele, mas pelo caráter. 

57 anos após proferir essas palavras, o sonho de Martin Luther King parece ficção. O racismo nega um direito básico do ser humano: ser um indivíduo. Pensar, sonhar e opinar por si. Condena uma criança, antes mesmo de nascer, a um destino genético. Põe cor na violência, na inferioridade e na submissão. Rejeita que imbecis e gênios circulam em todas as raças. 

Vou citar um brasileiro pobre, neto de escravos, nascido em 1839. Tinha ambições intelectuais. Se em 2020 pobreza e intelectualidade se misturam como água e azeite, que dirá nos anos 1800. Esse jovem pobre investiu numa riqueza silenciosa. No amor, apaixonou-se por uma portuguesa. A família dela se opôs à união. A mulher ignorou. O apaixonado escreveu: Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. Em 1869, um homem querer se casar com uma mulher que pensa, só podia se chamar Joaquim Maria Machado de Assis. Genial! 

Fonte: encurtador.com.br/jwQ27

Pergunto-me: como Machado enfrentou o racismo na era escravocrata? Como lutou por seus sonhos intelectuais? Como lidou com medo, insegurança, inveja e desprezo? Em minhas divagações, penso que o autoconhecimento fortaleceu seus sonhos. Devia ser um grande conhecedor de si próprio. Investiu no “conheça-te a ti mesmo” e ignorou os preconceitos que cruzaram seu caminho. Autoconhecimento não evita sofrimento, decepção e ilusão. Autoconhecer-se escolta a autoestima e nos encoraja a sermos fiéis aos nossos sonhos, convicções e valores sem sabotar a realidade. Creia em si, mas não duvide sempre dos outros, escreveu Machado.  

O grande escritor não cursou faculdade. Provou que livros nos alçam a patamares inimagináveis. O crítico Harold Bloom escreveu: Machado de Assis, é uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião. 

Fonte: encurtador.com.br/CEINO

Arrogantes, preconceituosos e escravocratas sempre existirão. A união de individualidades que pensam como Martin Luther King formará uma sociedade em que o real não pode ser sonho. Julgar alguém pela cor já devia ser comportamento “tiranossáurico”.

Para quem defende o racismo, sugiro dar uma passadinha na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Logo na entrada, o monumento a Machado de Assis, um dos fundadores. Ali, olhando do alto, o maior escritor brasileiro, gênio da narrativa, reverenciado e aclamado em vida, deve observar o coletivo racista e lastimar: quanto tempo consumido na perseguição alheia e desperdiçado da própria vida. A juventude é um relâmpago. Intensa e curta. A vida é breve e finita. Doai-a a ti e ao bem. 

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Nasce uma Estrela: Lady Gaga se despoja de artifícios e traz música à superfície

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Concorre com  8 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia, Melhor Mixagem de Som, Melhor canção original

Em todos os bons momentos
me vejo desejando uma mudança
E, nos momentos ruins,
tenho medo de mim mesma
(Tradução de versos da música Shallow,
de Lady Gaga e Bradley Cooper)

Star is Born é a quarta versão da história de uma estrela que nasce enquanto outra se apaga. Até 1970, a cada duas décadas esta história era novamente contada. A primeira produção ocorreu em 1937, quando William Wellman dirigiu Janet Gaynor como a jovem atriz que se apaixonava por Fredric March, o ídolo alcoólatra e desiludido. Judy Garland e James Mason reprisaram os papéis no clássico de Cukor em 1954, quando novamente a estrela era uma atriz, e sua estreia em um musical ocupou 15 minutos do filme. Só em 1976, no remake de Frank Pierson, que há uma mudança de cenário, os bastidores do cinema dão espaço ao mercado musical, com Barbra Streisand no papel principal e Kris Kristofferson como uma estrela de rock em declínio.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

Depois de mais de 40 anos, nossa geração finalmente ganha sua versão de Star is Born, e a espera não poderia ter um resultado mais interessante. Bradley Cooper estreia na direção (além de ser co-roteirista, ter o papel masculino principal do filme e colaborar na composição da canção principal) e traz como estrela da sua versão de Star is Born nada menos que a rainha do pop, Lady Gaga, até então vista, na maior parte de suas apresentações e saídas públicas, com adereços espetaculares, roupas inusitadas (quem não lembra daquele vestido de carne?) e performances acrobáticas (vide o show no Super Bowl https://www.youtube.com/watch?v=txXwg712zw4). Além disso, Gaga é dona de uma voz poderosa, toca vários instrumentos e compõe suas próprias músicas (grande parte das composições do filme tem sua assinatura). Isso, mais sua personalidade intrigante, sempre a colocaram em um patamar elevado nesse competitivo e implacável cenário musical do século XXI.

Mas, voltando ao filme, Jackson, o country-roqueiro que passa grande parte da sua vida alcoolizado (interpretado por Bradley Cooper) tem uma visão bem particular sobre a música. Sua visão parece ser a metáfora ideal para explicar porque uma história tão batida ainda chama tanto a atenção e é tão aclamada pelo público e pela crítica. Ele dizia que “a música é essencialmente 12 notas entre qualquer oitava. 12 notas e a oitava se repete. É a mesma história contada várias vezes, para sempre. Tudo que um artista pode oferecer ao mundo é como ele vê essas 12 notas. Só isso.” E acrescentou que amava como Ally (Lady Gaga) as via. Talvez aí esteja o segredo do sucesso do filme, a história tem um mesmo esqueleto, mas quando vemos Ally aparecer em um palco de um bar cantando “La Vie en Rose”, e Jackson é atraído por aquela voz, aceitamos embarcar na história novamente, mesmo já presumindo o inevitável final. A química entre eles, citada em toda crítica e entrevista sobre o filme, salta da tela. Isso e mais uma Ally tão diferente da imagem que temos da Lady Gaga, ou seja, mais vulnerável (sem ser fraca), quase nenhuma maquiagem e com um cabelo sem produção tornaram essa versão de Star is Born especial e, por que não, única.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

A impressão que temos é que os dois se apaixonam, especialmente, pelo talento um do outro. Para Jackson, um artista precisa ter algo a dizer, não basta ser apenas uma voz, e ele via isso em Ally, pela forma natural que a música nascia dela. Shallow, a música tema, é apresentada pela primeira vez em um estacionamento, na noite que eles se encontraram. Na música, Ally mostra que em pouco tempo já entendeu a falta de sentido e o desassossego que marcam a vida dele (Diga-me uma coisa, garoto, você não está cansado de tentar preencher esse vazio? Ou você precisa de mais? Não é difícil manter isso tão extremo?). Na próxima vez que a música vem à tona, é no show dele, quando a convida para cantar no seu show de surpresa e começa a entoar um verso que compôs para ela: “Diga-me uma coisa, garota, você está feliz neste mundo moderno? Ou precisa de mais? Há algo mais que está procurando?”. E nestes versos são apresentados como um vê o outro, mas, especialmente, como a história de cada um fatalmente os separará.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

Segundo Peter Travers, da Rolling Stone [1], o papel de Ally foi geralmente interpretado como uma moça ingênua à procura de orientação em um mundo de predadores masculinos. Mas, sorte a nossa – e do filme – Gaga não faz a ingênua. Ally sabe de seu potencial, sabe que é boa, apesar de ter sido preterida por uma indústria que gosta de seu som, da sua voz, mas não da sua aparência.

Dois outros relacionamentos são trazidos à tona no filme: a relação da Ally com seu pai, um cantor frustrado, mas amável e presente; e de Jackson com seu irmão mais velho, Bobby (Sam Elliott), que também tinha sido um cantor, mas abriu mão de sua carreira para apostar no irmão mais talentoso, que além da voz, também criava suas composições. A bebida não fez de Jackson um homem violento ou fanfarrão, como em algumas das versões anteriores do filme, mas levou-o a um estado mais autodestrutivo, presenciado, em alguns momentos, por seu irmão.

Fonte: Live Nation Productions, LLC; Malpaso Productions.

Na segunda parte do filme temos conhecimento do passado do Jackson, da sua vida com o pai alcoólatra e da sua tentativa de suicídio aos 13 anos, também vemos Ally atingir o estrelato de forma meteórica. Meteoros iluminam, mas também destroem. Nem sempre o amor ou a arte são capazes de mudar a direção de uma pessoa. A jornada obscura que Jackson travava em sua mente e em seu organismo enfraquecido pelo vício mostrou-se, muitas vezes, uma jornada solitária e, em alguns aspectos, doentia.

Assim, cada vez mais distantes da parte rasa e, talvez, por isso mesmo, estupidamente tranquila da vida, tem-se o ápice da jornada de ambos. A ícone pop e o artista em declínio parecem, em um dado momento, vivenciar um dos aspectos mais estranhos da física quântica, o entrelaçamento quântico, aquilo que Einstein nomeou uma vez como uma “ação fantasmagórica à distância” [2]. Isso é notado quando dois objetos estão em uma espécie de paralelo infinito, mas em um dado ponto (neste caso, a música), misteriosamente, se encontram. De certa forma, algumas músicas podem tocar vários pontos equidistantes e heterogêneos, podem até ultrapassar nossa noção de espaço e, especialmente, de tempo. Talvez para Ally e Jackson, a música é a constante em meio a turbulência, conectando-os a muitos outros que são tocados pelas suas composições, mesmo que todos pareçam estar sempre em um infinito e angustiante movimento.

FICHA TÉCNICA:

NASCE UMA ESTRELA

Título original: A Star Is Born
Direção: Bradley Cooper
Elenco: Lady Gaga, Bradley Cooper, Sam Elliott;
Ano: 2018
País: EUA
Gênero: Drama, Música

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.rollingstone.com/movies/movie-reviews/a-star-is-born-movie-review-lady-gaga-729475/

[2] https://www.sciencemag.org/news/2018/04/einstein-s-spooky-action-distance-spotted-objects-almost-big-enough-see

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O poço

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Um pouco da história

Quando as nuvens negras pestanejavam o céu, e o azul já se esvaíra do estado da minha alma dita boa, eu, ser humano já cansado de tudo, mais uma vez andava pelas ruas da cidade onde tudo iria enxergar e talvez boa parte de mim iria entender.

O ano era 1940. Quis permanecer longe, e buscar algo que até então eu ainda não havia visto. Eu morava em uma cidade pacata, onde homens e mulheres eram reservados e nada compartilhavam uns com os outros. Eu morava em uma casa isolada, afastada dos locais mais requisitados da cidade e fora do eco da voz de tudo e de todos.

Minha residência era extremamente simples, composta por poucos cômodos e mobílias. No fundo da casa, lá fora, no quintal, havia algo que sempre me perturbava e me intrigava. Isso era um poço. Ficava todo coberto por madeira e pregos por todo lado já em estado de decomposição e ferrugem. Devo admitir que a iluminação da rua era horrível, portanto, enchia a minha propriedade e consciência de luz. Era tudo em excesso. Ali dentro do local que me trazia um mero conforto era iluminado, enquanto o fundo era de fato tenebroso e sombrio. Eu já não sabia quem eu era e tão pouco no que queria me tornar. Tive uma infância difícil, fui uma criança desgarrada pelos meus genitores e o rosto deles era irreconhecível por mim. Leitor, só me sobrava isso: tentar entender quem eu fui e o que fiz, pois o passado me atormentava e o peso que eu sentia em meus ombros era das mãos de uma criança inconseqüente e de que nada sabia. Já cansado de nada fazer durante o dia, a noite como consequência chegou. Peguei no mais profundo sono e de nada mais lembrei.

A casa tem um segredo

Quando acordei, urrei por uma xícara de café e um trago de fumaça. Fui até o quintal para então poder apreciar a extensão da minha residência, e enquanto finda o cigarro entre os meus dedos, percebo que o amontoado de madeiras que cobria o poço já não mais o tampava. Quem havia retirado aquilo?  Que raios é que havia acontecido? A bravura então tomou o meu estado para me fazer ir ver. Tinha a oportunidade de ver o poço de perto e ver o que havia dentro dele, pensei comigo. Como não era longe, o pouco que caminhei não fez minha mente inquieta fantasiar e pensar no que tinha ali dentro. Fui despido de qualquer pensamento. Ao chegar lá, e curvar os meus olhos para dentro do buraco, nada consegui enxergar com total nitidez. Havia uma água preta, turva e nada mais.

Voltei para o meu negro que melhor representava minha alma e ali fiquei sem dar a mínima para tudo em volta. A noite novamente chegara e pude apreciá-la naquele dia. Chuva forte, marcada por tempestade sombria eram as características. Me comovi como nunca antes. Eu já me deparava com algo obscuro de mim, talvez a parte ou uma totalidade mais pura e livre de tempo e espaço organizado, mas parecia algo grande e ao mesmo tempo livre de explicações, era irreconhecível. Enquanto me embriagava de sono tedioso e monótono, ouvi aquilo que quis me contrapor a essa minha vontade. Um raio estrondoso vindo dos infernos altos rasgara o campo imenso e batera na árvore ao lado do poço. Aquilo já me despertara e tentei ir lá fora. Da janela que me possibilitava ver, percebi algo que não era só fenômeno natural. Eu iria me ver essa noite, e então o futuro me veio às mãos.

Respirei fundo para não cair e me agarrei nas grades da janela para não ser atacado pela moleza do corpo. O que vi saindo dentro do poço parecia uma peste encapuzada empunhando uma foice curva e afiada em seus ombros. Aquilo estava de costas e eu via partes dela sempre quando os relâmpagos me vinham aos olhos. Antes de entender totalmente o que era, aquela criatura tomou outras formas. O que a sucedeu foi um ser criança enorme, com um olhar morto, apático, e totalmente voltado para baixo, para o poço. Possuía tentáculos enormes presos em correntes que a puxavam para baixo e para o fim. Não tive a capacidade de me mover por aquele momento, mas meus olhos não conseguiam se desviar da situação. A casa parecia revelar algo de mim e o que eu buscara havia tempo.

Quando tomei a devida coragem, respirei, cerrei a janela e fui até à porta.

Tive uma bravura indômita de ir até o poço e ver de perto o que era aquilo. Tudo era silêncio e calmo agora. Chutei todas as madeiras e restos de árvore por perto e tentei enxergar ali dentro. Meus cabelos se eriçaram quando vi que a água do poço era limpa e me permitia me ver. Foi tão absurdo que não pude me conter. Ao curvar ainda mais para enxergar o meu reflexo, fiquei tão tomado com aquilo que caí naquele buraco e fui tomado inteiramente por mim e de mim no instante profundo. Bebi daquela água que antes era incompreendida e turva e que agora me revelara algo tão profundo. Como não possuía nada mais para me agarrar e sair dali, a última imagem que me vem à cabeça foi a da minha mão pedindo volta e socorro, mas quando me dei conta, já era tarde demais e acho que também não compensava. Afinal de contas, eu consegui encontrar o que eu queria.

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“Whiplash” e a sofrida (e instigante) busca pela perfeição

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Com cinco indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante (J.K. Simons), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Mixagem de Som 

“O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, 
uma corda por cima do abismo” – Friedrich Nietzsche

“Whiplash: em Busca da Perfeição” é uma das mais agradáveis surpresas de 2014. Não por menos, acabou com uma indicação ao Oscar, para Melhor Ator Coadjuvante, em decorrência da atuação de J.K. Simmons, intérprete do durão professor de música Terence Fletcher, e estreante em grandes premiações. O longa já havia mostrado força no Festival de Sundance 2014, onde recebeu enorme destaque. Ele segue a lógica da busca obsessiva pela perfeição artístico/profissional, numa dinâmica em que o espectador se vê diante de ações compulsivas, ásperas e angustiantes, elementos que parecem comuns às “gestações” dos gênios da arte.

O filme conta a estória do jovem Andrew Neyman, que desde cedo sempre sonhou em brilhar como baterista. Ao entrar num conservatório como substituto, se depara com um professor controverso, que se utiliza de métodos nada aprazíveis para tentar explorar o máximo de seus alunos e, quem sabe, despertar-lhes para as disputadas – e escassas – originalidade e precisão artística. Neste processo, os alunos são levados a extremos, onde a coerção, a chantagem psicológica, a humilhação e até eventuais ameaças contra a integridade física são uma constante. A brilhante atuação de Simmons sintetiza uma faceta nada romântica dos bastidores de um profissional da arte, tema já explorado pelo filme “Cisne Negro”.

Whiplash joga luz sob alguns dos assuntos mais contemporâneos, sendo que dois deles saltam aos olhos: a tênue linha que separa, como diz Zygmunt Bauman, a “ambição” da obsessão (que pode desembocar para um transtorno psíquico), e a conturbada presença de personagens que lutam contra a predominância do niilismo, mesmo que isso ocorra de forma inconsciente.

Sob o primeiro aspecto, Freud já dizia que apesar de o homem ser feito de carne, vive “como se fosse de ferro”. As demandas enfrentadas pelas pessoas, seja porque assim elas procuraram, como no caso do filme, seja porque lhes são impostas e/ou inerentes, como as questões relacionadas à própria contingência da vida – a impotência diante do adoecimento e da morte, por exemplo -, são litígios que parecem insolúveis. De quebra, Andrew se apresenta como a síntese de uma geração que tem o enorme desafio de superar limites que se mostram quase que como intransponíveis. No entanto, eximir-se desta dinâmica – que à primeira vista pode parecer cruel, mas ela tem seu lado positivo – elimina qualquer possibilidade de originalidade. Entregar-se a ela sem um mínimo de amadurecimento, no entanto, pode resultar em sérios danos, como no caso do aluno, no filme, que por não suportar a pressão do professor, acaba por cometer suicídio.

De acordo com Wielenska, é possível diferenciar um objetivo de vida de uma compulsão e/ou obsessão. No caso do objetivo, há sempre a possibilidade de o personagem submeter-se a processos de correção e até de total mudança de rumo. Há uma flexibilidade maior em relação às demandas, algo que se traduz numa espécie de “reconhecimento” do tamanho da distância a se percorrer para atingir dado alvo/objeto. Já as compulsões se caracterizam pela excessiva busca de produzir “sensação subjetiva de paz, redução da ansiedade, da insegurança e do medo”, numa velocidade sempre desafiadora. Andrew parece se enquadrar no perfil de personagem ambicioso.

Em outro aspecto, há pessoas – como o professor Terence Fletcher – que lutam para sair da mesmice e obter o melhor de si, e dos outros, através de suas ações compulsivas, excêntricas e originais. Fletcher poderia ser considerado a personificação do adepto do “anti-niilismo” predominante, já que nega certas morais da tradição (ele não é nada politicamente correto), normas estas que desencadeiam a chamada “doença da vontade” e a “mesmice social”. Fletcher, assim, encarna alguém que abraça o pensamento dos extremos de Nietzsche, naquele sentido mesmo que

“pode contribuir para os seres humanos do século XXI a repensarem os valores pelos quais pautam sua existência. É preciso radicalizar experimentalmente a consequência do cultivo dos principais valores de nosso tempo (bem-estar, individualismo consumista), a saber, o vazio de sentido que mais cedo ou mais tarde se impõe para quem segue irrefletidamente nessa senda. Assim, seria possível reverter os resultados niilistas de certas práticas contemporâneas no extremo oposto de uma existência decidida para construir sua própria individualidade, a partir da base instintiva da natureza”. (ARALDI, Clademir – 2010)

A originalidade comum na genialidade, portanto, é algo que se expressa numa vida que se propõe a experimentar o novo e até o subversivo. No fundo, “é quase sempre o temor de ferir o espaço de jogo individual que move os atores a preocupar-se um pouco com os outros no palco contemporâneo de luta por destaque”. Há, por esta ótica, um niilismo que “se insinua através do individualismo ‘associal’”. Há de se destacar que Neyman não se satisfaz através do fugaz (e compulsivo, no sentido mais vulgar) apelo consumista. Antes, acaba por “mergulhar na radicalização do niilismo” para, ao fim, transcendê-lo. E “radicalizar o niilismo é a única possibilidade para superá-lo”, reforça Araldi, em referência à Nietzsche.

Andrew Neyman “abocanha” a própria vida quando passa a ditar um ritmo que lhe é peculiar, ordenado a partir dele, sob sua regência. Ele passa a olhar o professor com uma impetuosidade que não reflete desdém, pelo contrário, trata-se de uma segurança que está além de qualquer convenção. Depois de uma longa e sofrida batalha, desperta. Já o “professor-carrasco” lembra os poetas aclamados pelo filósofo de Röcken, “impudicos para com as suas vivências. Antes, prefere explorá-las”. Nasce, sob as cinzas de muito sofrimento e dedicação, um artista forjado para a autenticidade. O percurso é tenso, perturbador. Mas talvez a estória (ou história) seria menor se assim não se desenrolasse.

 

Referências:

Sinopse de “Whiplash: Em Busca da Perfeição”. Disponível em  http://www.adorocinema.com/filmes/filme-225953/ – Acessado em 22/02/2015;

Perfil de JK Simmons. Disponível em http://www.cineclick.com.br/perfil/j-k-simmons – Acessado em 22/02/2015;

Transtornos Obsessivos. Disponível emhttp://www2.uol.com.br/vyaestelar/comportamento_toc.htm – Acessado em 22/02/2015;

O niilismo como doença da vontade humana – entrevista com Clademir Araldi. Disponível emhttp://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3702&secao=354 – Acessado em 22/02/2015;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;

 

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

WHIPLASH: EM BUSCA DA PERFEIÇÃO

Título original: Whiplash
Lançamento: 8 de janeiro de 2015 (1h47min)
Dirigido por Damien Chazelle
Elenco: Miles Teller, J.K. Simmons, Paul Reiser, Melissa Benoist,  Jayson Blair, dentre outros
Gênero: Drama, Musical
Nacionalidade: EUA

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Mulheres Modernas – O preço da modernidade

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O sonho de ser uma mulher moderna e independente remete à minha infância. Naquele tempo, a ingenuidade me fazia acreditar que a vida de mulher moderna e independente seria como naquelas típicas cenas de filme. Lembram? A mulher chegando à sua bela casa branca com janelas azuis, descendo do seu lindo carro, usando um vestido vermelho com echarpee botas azul turquesa, carregando nas mãos um buquê de rosas vermelhas que ela acabara de comprar na floricultura. Então, ela adentraria na casa, toda mobiliada com tons verde piscina que contrastavam com o vermelho das almofadas de seda, daria comida para o peixe encarnado de cauda azul que nadava tranquilamente no aquário, arrumaria o buquê de rosas no vaso da sala. E iria para o quarto arrumar suas malas, pois, como era final de semana, ela iria viajar, como de costume, para um lugar bem exótico e encantador. Desta vez, iria fazer a trilha Embu das Artes.

Que sonho! Mas…PARE TUDO, caro leitor!

Para iniciar esta crônica, aproprio-me da letra da música do Kid Abelha que diz

A vida que me ensinaram como uma vida normal
Tinha trabalho, dinheiro, família, filhos e tal
Era tudo tão perfeito, se tudo fosse só isso
Mas isso é menos do que tudo
É menos do que eu preciso
Agora, você vai embora
E eu não sei o que fazer
Ninguém me ensinou na escola
Ninguém vai me responder

O fato é que a vida real difere um pouco da idealização dos filmes e contos de fadas. Afinal, como diz a letra da música “Ninguém me ensinou na escola” que a vida de Mulher Moderna e Independente não se resume ao enredo previsível com finais felizes. Essa é a temática deste texto, refletir acerca do preço que se paga pela liberdade e independência na Modernidade.

Primeiramente, fomos educadas a “brincar de casinha”, fazer “comidinha”, ser “comportadinha” e, leitores, acrescentem os outros “inhas” que julgarem necessários. Então, crescemos pensando em “cozinha”, “modinha” para andar “arrumadinha” , ser “prendadinha” para morrer “casadinha” na vida “lindinha” com a sua “prolinha” e ser “amadinha”. Como diz a letra da música “família , filhos e tal”. Mas, e se “tudo que nos ensinaram como uma vida normal” não acontecer? Vou perguntar com rima clichê “O que fazer”?

Por exemplo, imaginem que, abruptamente, você precisa aprender a dirigir e cuidar sozinha do seu carro. Para algumas mulheres, entende-se que para o pleno funcionamento do carro se precisa cumprir uma regra única e básica: SOMENTE ABASTECER O CARRO.

 

 

Então, um belo dia, você chega feliz ao posto de gasolina para ABASTECER o carro, quando é interpelada pelo gentil frentista:

– Seu carro precisa trocar o óleo – pronuncia com ar preocupado.

– Como você sabe disso? – retruco com ar de desconfiança.

– Porque estou vendo nesse papelzinho colado aqui no seu vidro- responde com tom de afirmação.

–  Como assim trocar o óleo?  Comprei esse carro há pouco mais de um ano. Já precisa trocar o óleo? – pergunto com ar de surpresa. (Para ser bem sincera, nem sabia de que óleo ele estava falando. Só conseguia lembrar do óleo da cozinha)

– Sim, seu carro já rodou mais de 3.000 km com óleo vencido. Há quanto tempo fez a última revisão? – perguntou com interesse sincero.

Lembrei que nunca me preocupei com isso, até porque nem sabia que tinha que fazer revisão, mas fiquei com vergonha de dizer, por isso preferi mentir:

–  Faz tempo- respondi desviando o olhar.

Então, senti meus ouvidos serem metralhados por palavras que “não aprendi na escola” como seu carro precisa“trocar o filtro de ar, filtro de óleo, olhar o bico da bateria, a pastilha de freio, balancear e alinhar os pneus, verificar ser tem água no tanque”( Meu Deus! Sempre achei que no tanque só cabia gasolina) e fazer “o rodízio dos pneus” do carro ( até então, o único rodízio que eu conhecia era o da churrascaria)

Então, fui convidada a responder uma das perguntas mais difíceis de toda a minha vida:

– O estepe do carro está em boas condições?- perguntou o frentista que me olhava com ar de quase súplica.

– Misericórdia! Como ele pode me perguntar isso?- pensei. E o pior, como eu poderia responder se eu nem sabia onde ficava o estepe! Calma, leitor! O motor do carro eu sabia onde ficava. Espero que essa informação melhore sua avaliação sobre minha pessoa.

Saí do posto de gasolina imaginando que meu carro estava depredado, arruinado, acabado, inutilizado. Por isso, entrei no primeiro lugar que vi escrito “Troca de óleo e balanceamento de carro”.

Quando o funcionário perguntou:

– Pra trocar tudo moça? – com ar de pontualidade.

– Tudo o que for preciso – respondi com ar de desespero.

Quando ele me devolveu o carro com o orçamento exorbitante, imaginei que ele deveria ter trocado até o motor do carro. Pensei em contestar, mas reivindicar o que você desconhece é missão impossível. Por isso, paguei o exigido e voltei para casa com a sensação de que eu deveria ter frequentado junto com as aulas de arte culinária, aulas de mecânica para carros.

Cheguei à minha casa (que não tem janelas azuis e nem peixe no aquário) e lembrei que mulher moderna precisa lavar roupa ( Engraçado! Nos filmes, as mulheres modernas nunca lavavam roupas. Será que lavavam sempre na lavanderia?)

Quando fui colocar as roupas na máquina, a mangueira estoura e, simplesmente, o apartamento é inundado. Não sei você, caro leitor, mas comigo as coisas ruins nunca vem sozinhas, elas sempre acontecem acompanhadas.

Então, ligo para a assistência técnica, ninguém atende. Mas como poderiam atender se o relógio já marcava18h30min. Imediatamente, optei pelo plano B, liguei para uma amiga e ouvi o que faltava para completar essa cena desoladora “Ligue para o Disk- Marido. Essas coisas, só homem resolve”.

Desliguei o telefone, permaneci em silêncio durante uns minutos com tempo de eternidade. Questionei-me do porquê de, no término do meu último relacionamento, eu não haver determinado como obrigação para a separação, que ele deixasse um MANUAL DE INSTRUÇÕES de sobrevivência na selva. Mas nem tive tempo de pensar mais comprido, pois lembrei que posso ser uma mulher que não entende muito de mecânica de carros e encanação. Mas, ainda assim,sou uma mulher  inteligente.

Por isso, olhei para aquela máquina de lavar e proferi com voz de guerreira da modernidade “Se Joana D’arc, uma mulher, conduziu todo um exército francês, eu, uma MULHER MODERNA e INTELIGENTE, também consertarei essa máquina.”

Dito isto, ordenei a meus neurônios que fizessem fila para que eu pensasse com mais organização e precisão, fiz uma acoplação à mangueira e….. a máquina voltou a funcionar, desta vez sem inundar o apartamento.

Descansei o sorriso no Olimpo dos VENCEDORES. Constatei que, realmente, a vida de Mulher Independente precisa ser aprendida no cotidiano. Cada dia nos ensina algo novo que “não aprendemos na escola”, fatos que fogem do ”padrão normal”. Mas, nem por isso, deixamos de nos encantar com os aprendizados e desafios dessa VIDA DE MULHER MODERNA!

Afinal, quem disse que é preciso ser fácil para ser feliz e se viver? Por isso, continuamos dispostas e seduzidas a pagar o preço da Modernidade.

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