Hoje não é um dia romântico, hoje é um dia político!

Compartilhe este conteúdo:

Todo dia 8 de março é a mesma ladainha: flores, parabéns, frases sobre força e garra. Não estou dizendo que não deve haver flores, parabéns e frases sobre força e garra, pelo contrário, eu particularmente até gosto de flores. O ponto principal é: há criticidade nessas palavras? Há reflexão sobre o que de fato significa não somente o dia da mulher, mas SER mulher e EXISTIR como mulher? Sem pensamento crítico não há felicitações.

Quem é a mulher guerreira que todo mundo tanto fala no dia das mulheres? Quem é a mulher forte, inabalável e que é capaz de suportar tudo? É a mulher sobrecarregada, a mulher exausta, a mulher cuidadora, a mulher que assume todos os cuidados com o lar, com a família e com a criação dos filhos (às vezes nem são dela).

É a mulher que trabalha fora de casa e quando chega tem mais um turno de trabalho doméstico. É a mulher que tem que dar conta de tudo, afinal, ela é forte e guerreira. É a mulher que ganha menos, que trabalha mais, que se especializa mais. Mas que é cada vez menos valorizada profissionalmente, que tem sua voz silenciada e sua existência assediada moral e sexualmente.

E quando a mulher não aguenta tudo isso, cai no choro, cai aos prantos, cai no grito e no desespero, ela é louca! Histérica! A mulher tem que aguentar calada, quieta e silenciada. Esse silenciamento da voz das mulheres tem origem histórica dentro da psiquiatria que se construiu em cima de homens psiquiatras sobre as mulheres loucas (SHOWALTER, 1987).

A autora traz o manicômio como símbolo das instituições que foram construídas pelos homens desde o casamento até as leis. Instituições essas que foram construídas em cima do aprisionamento e do isolamento das mulheres, deixando-as loucas. O homem então é associado a racionalidade, a mulher é associada à loucura, a insanidade como parte da essência de ser mulher (SHOWALTER, 1987). O homem quando associado a loucura é de forma simbólica que remete ao feminino.

Fonte: encurtador.com.br/dAEOT

De acordo com Valeska Zanello, que um dos maiores nomes da psicologia no Brasil, o sofrimento psíquico é construído socialmente e acontece a partir dos valores de gênero (ZANELLO, 2011).  As mulheres tendem a ser mais acometidas pelos transtornos depressivos, ansiosos, distúrbios de sono e comorbidades do que os homens.

Como não viver sob a ameaça do adoecimento psíquico quando estamos incessantemente lutando por espaço, por voz, por validação, por segurança? A mulher vive sob a ameaça do estupro o tempo inteiro. Saímos de casa e temos que estar sempre em alerta sobre onde vamos, com quem e quando. Temos que prestar atenção ao nosso redor, observar se estamos sendo seguidas, se há algo estranho. Temos que estar atentas ao pegar um taxi ou serviço por aplicativo para viagens.

Como não viver à mercê do adoecimento psíquico quando somos bombardeadas sobre nossos corpos, nossas medidas, nossas curvas, nossas características físicas e a nossa personalidade? Afinal, a mulher tem que ser magra, mas não muito. Tem que ter bunda grande, peito duro, mas deve ser proporcional. Não pode ter estria nem celulite, pelos então nem pensar por que não é nada higiênico. Cuidado! Desse jeito nenhum homem vai te querer!

No que tange a saúde mental, o sofrimento psíquico da mulher está atrelado ao ideal estético, matrimonio e maternidade (ZANELLO; FIUZA; COSTA; 2015). A mulher é socialmente pressionada a estar dentro dos padrões estéticos, sobretudo o padrão lipofóbico.

Esse padrão lipofóbico exige que as mulheres sejam magras, esbeltas e joviais, essa exigência faz com que aquelas que não consigam alcançar esse padrão sejam hostilizadas e taxadas de inferiores (NOVAES, 2006). Dessa forma, as mulheres que não se adequam, logo não servem. São invalidadas, criticadas e recebem ataques odiosos sobre seu desleixo e descuido com o corpo.

O corpo da mulher perpassa a transformação estética para princípios éticos, que faz com que ela seja obrigada a exercer cuidados com o corpo e o dever moral de se tornar bonita e atraente (ZANELLO, 2015). Além de tudo isso, a mulher ainda tem que cuidar das tarefas domésticas, do lar, da família, do marido e dos filhos. Tudo isso depois de passar o expediente inteiro sofrendo assédio moral e sexual do ambiente de trabalho.

Ser mulher é sofrer, é sentir dor, é sentir medo. Ser mulher é ser luta, é ser resistência. Ser forte não é uma opção, é o que nos resta. Mas estamos cansadas, estamos exaustas, estamos no limite. Só queríamos ser mulher. Ser tratadas como seres humanos, não como incubadoras ou cuidadoras. Nesse dia da mulher não queremos só flores e mensagens bonitas, queremos lutas por direitos, queremos respeito e igualdade. Afinal, Dias Mulheres Virão!

Referências

NOVAES, Joana de Vilhena. O intolerável peso da feiura: sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Garamond, 2006.

SHOWALTER, E. Anarquia Sexual: sexo e cultura no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

ZANELLO, Valeska.; BUKOWITZ, B. Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados. Revista Labrys Estudos Feministas. v. 20-21, 2011.

ZANELLO, Valeska. A saúde mental sob o viés do gênero: uma releitura gendrada da epidemiologia, da semiologia e da interpretação diagnóstica. In: ZANELLO, V.; ANDRADE, A. P. M. (Org.). Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba: Appris, 2014.

ZANELLO, Valeska; FIUZA, Gabriela; COSTA, Humberto Soares. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Revista de Psicologia, [s.l.], v. 27, n. 3, p.238-246, dez. 2015. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1483

Compartilhe este conteúdo:

De pernas pro ar 3 sob a perspectiva da Psicologia Feminista

Compartilhe este conteúdo:

 

 

 

 

 

O filme traz a reflexão sobre como o papel de cuidar dos filhos ainda é visto pela sociedade como único, exclusivo e obrigatório da mulher

De pernas pro ar 3 é um filme brasileiro lançado em 2019, com direção de Julia Rezende, estrelado por Ingrid Guimarães e Bruno Garcia. O longa retrata a continuação da história da dona de sexy shop Alice, no ramo da indústria do prazer, abordando novas temáticas como: conflitos entre diferentes gerações, feminismo e trabalho.

Alice é uma empresária de sucesso, dona de uma das maiores empresas de produtos sexuais, a “Sexy Delícia”. Devido a essa influência de mercado, ela tem viajado o mundo todo levando seus produtos para os mais diferentes públicos, o que acaba por consumir todo o seu tempo, fazendo com que a convivência com seu marido João (Bruno Garcia) e seus filhos Paulinho (Eduardo Mello) e Clarinha (Duda Batista) seja mínima ou porque não dizer nula.

Ao chegar na casa dos 40 anos Alice decide se aposentar para poder passar mais tempo com sua família, e entrega o comando da empresa à sua mãe Marion. A partir desse dia a protagonista decide que será uma nova mulher e que exercerá apenas os papéis de mãe e esposa, iniciando sua saga de reclusão ao lar.

Fonte: encurtador.com.br/tHLZ6

Contudo essa nova jornada não se mostra nada fácil para a rainha do sexy shop, que se sente inapta em diversos momentos no que se refere a educação dos filhos e ao próprio conhecimento sobre os gostos de cada um. Além disso, a tarefa de ficar quieta em casa, sem um ofício para exercer, faz com que ela experimente um sentimento de extrema inutilidade e inquietação.

Nesse cenário de dificuldade surge mais um “contratempo”, Leona. Leona é uma jovem que trabalha com Tecnologia da Informação (T.I) e desenvolve um aplicativo de realidade virtual para que as pessoas possam fazer sexo a distância. Tal invenção concede a essa menina o status de mais nova sensação da indústria do prazer, despertando em Alice muita inveja e uma intensa vontade de voltar a trabalhar para não perder seu posto de rainha do sexy shop.

Ao observar as formas de trabalhar e perceber o mundo de Leona e Alice é possível identificar a diferença marcante em suas posturas. A primeira se enquadra no grupo da geração Y, que nas palavras de Fantini e Souza (2015, pág. 128) “é formada por jovens acostumados com as tecnologias de entretenimento e comunicação, são desestruturados, contestadores, imediatistas, inovadores e não gostam de hierarquia.”

Fonte: encurtador.com.br/pHRU6

Já Alice faz parte da geração X (OLIVEIRA, 2012), se apresentando bem menos antenada as tecnologias, dando mais valor na estabilidade de mercado personificada na crença de trabalhar por muitos anos na mesma empresa, além de ser viciada em trabalho.

De pernas pro ar 3 seria mais um filme clichê se tivesse investido na rivalidade entre as duas personagens e reproduzido a disputa entre o sexo feminino reforçada pela sociedade machista (SILVEIRA; ALDA, 2018). No entanto isso não acontece, já que o ápice da produção se dá quando ambas percebem que podem unir suas diferentes formas de trabalhar para atingirem mais sucesso juntas.

Além dessa demonstração de sororidade feminina, o filme traz a reflexão sobre como o papel de cuidar dos filhos ainda é visto pela sociedade como único, exclusivo e obrigatório da mulher. Ao retratar a indignação de João (esposo) quando este reclama que a esposa nunca esteve em casa para cuidar dos filhos cabendo a ele essa atividade, numa postura de culpabilização de Alice.

Fonte: encurtador.com.br/jlqz6

Contudo esse fato não anula o vício por trabalho da rainha do prazer. Alice pode ser considerada uma workaholic, postura de trabalhadores muito comum na sociedade pós moderna. Serva e Ferreira (2006, p. 181) definem workaholic como o indivíduo que está “absorvido de forma intensa com o trabalho, com longas jornadas diárias, excesso de carga de trabalho, ritmo acelerado de trabalhar e busca desenfreada por resultados.”

Estes indivíduos comumente não conseguem administrar as outras áreas de suas vidas, sendo de costume que tenham suas relações interpessoais (família, amigos, relacionamentos afetivos) prejudicadas. Além disso, é normal que não deem tanta atenção a atividades de lazer, negligenciando até mesmo os cuidados com a saúde física e mental. Goldberg (1980) cita alguns tipos de doenças que normalmente acometem os workaholics, sendo elas: distúrbios do sistema imunológico, úlcera, gastrite, ataque cardíaco, hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares.

No filme, o vício por trabalho é tratado de forma cômica, no entanto, é preciso se atentar a esse fenômeno. Em 2016, a revista Forbes realizou uma pesquisa que constatou uma maior incidência de transtornos psiquiátricos nesse grupo, identificando 33% com déficit de atenção, 26% com distúrbio compulsivo, 34% com ansiedade e 9% com depressão.

Diante disso, é válido o questionamento de como as pessoas estão vendo o mundo do trabalho e a sua inserção nele. Lembrando sempre que a instância do trabalho, para que seja saudável e satisfatória, precisa ter sentido e não ser fonte de sofrimento e adoecimento.

FICHA TÉCNICA DO FILME

Fonte: encurtador.com.br/ckHMR

DE PERNAS PRO AR 3

Título original: De pernas pro ar 3
Direção:  Julia Rezende
Elenco: Ingrid Guimarães,Maria Paula,Bruno Garcia
País: Brasil
Ano:2019
Gênero:  Comédia

REFERÊNCIAS:

FANTINI, Carolina Aude; SOUZA, Naiara Célida dos Santos de. Análise dos fatores motivacionais das gerações baby boomers, X, Y e Z e as suas expectativas sobre carreira profissional. Revista Ipecege, [s.l.], v. 1, n. 3/4, p.126-145, 28 mar. 2016. I-PECEGE. http://dx.doi.org/10.22167/r.ipecege.2015.3-4.126.

MORIM, Estelle M.. OS SENTIDOS DO TRABALHO. Recursos Humanos, São Paulo, v. 41, n. 3, p.8-19, out. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rae/v41n3/v41n3a02.pdf>. Acesso em: 04 maio 2019.

REDAÇÃO. Estudo mostra que workaholics têm mais problemas psiquiátricos. 2016. Disponível em: <https://forbes.uol.com.br/carreira/2016/06/estudo-mostra-que-workaholics-tem-mais-problemas-psiquiatricos/#foto4>. Acesso em: 04 maio 2019.

SEMINÁRIO CORPO, GêNERO E SEXUALIDADE, 7., 2018, Rio Grande. NÓS, MULHERES: A IMPORTÂNCIA DA SORORIDADE E DO EMPODERAMENTO FEMININO. Rio Grande: Furg, 2018. 5 p. Disponível em: <https://7seminario.furg.br/images/arquivo/160.pdf>. Acesso em: 04 maio 2019.

SERVA, Maurício; FERREIRA, Joel Lincoln Oliveira. O fenômeno workaholic na gestão de empresas. Revista de Administração Pública, Salvador, v. 40, n. 2, p.179-200, out. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rap/v40n2/v40n2a02.pdf>. Acesso em: 04 maio 2019.

Compartilhe este conteúdo: