Em reverência a Stan Lee, criador do meu herói favorito

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Eu adoro os super-heróis, especialmente os atormentados, os que têm dúvidas sobre os próprios poderes, os humanos o suficiente para nunca estarem totalmente certos se tais poderes são uma benção ou uma maldição.

Ultimamente têm se produzido muitos filmes protagonizados pelos clássicos heróis dos quadrinhos. Gosto particularmente, daqueles que vão além dos efeitos especiais e da eterna e manjada luta do bem contra o mal e se dedicam a nos revelar a mente atormentada do protagonista, suas fragilidades e, sobretudo, o ônus imposto pelos poderes que receberam, quase sempre, sem o direito de escolha.

Fonte: https://bit.ly/2OMglpC

De todos os heróis atormentados Hulk é o meu preferido. Uma pena os últimos filmes deste herói terem explorado mais seus músculos que sua mente atribulada, quase esquizóide. Prefiro o Hulk da década de 80, estrela do seriado Incrível Hulk, de muito sucesso na época. No seriado, Dr. Bruce Banner é um médico cientista que, depois de uma superexposição aos raios gama experimenta uma transformação intensa no corpo – acompanhada de força, resistência e vigor sobre-humanos – sempre que fica com raiva. Raiva essa que nosso herói sempre tenta, mas, nunca consegue controlar. Sendo assim, os atos heróicos do monstro verde, que sempre surge após um acesso de ira, sempre são vistos por Dr. Banner como um erro, um fracasso na tentativa de controlar-se. Fracasso que ele tenta resolver se mudando de uma cidade para outra sempre que Hulk se revela, numa tentativa, também fracassada, de fugir de si mesmo. No final de todo episódio da série, repetia-se a cena de Banner pedindo carona na estrada em direção incerta, cena embalada por uma musiquinha melancólica, aliás, inesquecível.

O que torna Hulk tão especial, a meu ver, é que, diferentemente dos demais heróis, a natureza de seus poderes é involuntária, ou seja, Banner tem muito pouco ou nenhum controle sobre eles. Hulk é para Banner um outro, um estranho. Neste caso, Banner não goza do poder que lhe foi dado, ao contrário, é o poder de Hulk que goza dele, do seu corpo e da sua vida. Nada mais humano que isso, não?

Fonte: https://bit.ly/2TbMj1D

É dito que somos animais racionais, o que supostamente nos possibilitaria ter o controle sobre nossos instintos, paixões e emoções, mas a verdade é que, a todo momento, somos tomados, atropelados por um outro que nossa razão é incapaz de controlar. O tal monstro verde invariavelmente rouba a cena e aí falamos ou fazemos o que não queríamos, poderíamos ou deveríamos falar ou fazer. Mas existe uma pergunta que Banner certamente se faz e que torna seu tormento ainda mais especial e interessante: sua verdade está em Hulk ou no Dr. Banner? Será ele é um Hulk reprimido por Banner ou um Banner atormentado por Hulk? Essa também é uma dúvida que sempre nos atormenta. Quando falamos ou fazemos algo que não queríamos, onde está o nosso eu? No que estava controlado pela razão ou no que conseguiu escapar dela?

O que me provocou a escrever este texto foi o filme – Os Vingadores – lançado nas últimas semanas*, e que eu gostei muito, aliás. Gostei, em especial, pelo Hulk do filme, porque ficou psicologicamente mais parecido com aquele do seriado da década de 80. Dr. Banner, antes de ser convidado para compor o grupo dos Vingadores, encontra-se recluso na Índia, exercendo caridosamente a medicina, evitando assim os estresses que trazem Hulk para a superfície. Fica claro no filme que Banner só aceita se unir aos Vingadores porque lhe garantem que o interesse deles é por seu conhecimento a respeito dos raios gama, ou seja, Hulk não será necessário. Neste momento fica evidente: é Banner negando Hulk.

Fonte: https://bit.ly/2K1jkcL

Mas a maior sacada do filme começa numa conversa entre Tony (o Homem de Ferro) e Dr. Banner, na qual este último, ao tratar de sua condição, se refere ao Hulk como “o outro cara”. Tony, por sua vez, ao perceber o incômodo que Hulk é para Banner, relata a este sua própria experiência de também possuir um estranho em seu corpo, no seu caso, o pequeno dispositivo eletrônico que carrega no peito e que mantém seu coração batendo. O que Tony quer mostrar a Banner é que o mesmo estranho responsável por lhe tornar uma aberração, também é o que lhe possibilitou estar vivo. O médico então conclui: – Você está dizendo que Hulk foi o quem me salvou de sucumbir aos raios gama? Tony não responde… Nem é necessário.

O filme segue e, mais tarde, como era previsível, Hulk irrompe no corpo de Dr. Banner depois que este fica perigosamente preso sob uma viga. E após dar vazão a toda a sua ira, destruindo tudo por onde passa, Hulk se retira para longe, a fim de se acalmar e permitir, então, que Banner retorne. Durante sua ausência, o filme segue e chega ao seu clímax: a aguardada luta do bem contra o mal. E é quando os demais Vingadores já se ocupam desta batalha que Banner aparece entre eles, numa motocicleta. Ao vê-lo chegar em sua frágil forma humana, o Homem de Ferro sabiamente recomenda: – Acho bom você começar a ficar com raiva. E a resposta de Banner é genial, e a meu ver, vale por todo o filme. Ele diz: – Vou te contar meu segredo, (e diz isso enquanto vai se transformando no temível monstro verde e parte com sua fúria para socar o inimigo que avança sobre todos), eu sinto raiva o tempo todo. A cena é genial, porque esta frase é iniciada por Banner e finalizada por Hulk. É possível enxergar nela nosso herói atravessando seu fantasma, se apropriando de sua raiva, aquela que vinha tentando de toda maneira negar e esconder. Vemos Banner convocando e assumindo Hulk, e Hulk raciocinando e falando como Banner. Ali não se trata mais de Banner ou Hulk, mas de uma síntese que inclui Banner e Hulk.

Fonte: https://bit.ly/2PV67Yj

Freud, com seu conceito de inconsciente, nos fez compreender que, ao contrário do que tendemos a crer, o eu não é o senhor em sua própria casa. Lacan, em sua releitura de Freud, também vai tratar desta divisão do sujeito afirmando que o sujeito pensa onde não está e está onde não pensa, nos fazendo concluir que o sujeito, na verdade, está nos dois lugares. Partindo dessa premissa da psicanálise poderíamos então concluir que a verdade do meu herói preferido está em Banner e em Hulk, ou seja, ambos são importantes e necessários. A força de Banner está na ira incontrolável de Hulk e a razão de Hulk provavelmente está na inteligência racional de Banner.

Possivelmente amamos os heróis porque nos identificamos com eles. Também recebemos nossos poderes, não tão extraordinários, é bem verdade, mas igualmente perturbadores. Poderes que, às vezes, nos parecem ser nosso maior defeito, mas ao mesmo tempo os responsáveis por nossos maiores êxitos e vitórias. E como fazer se nossa mais potente força é também, nossa pior maldição? O Hulk dos Vingadores nos dá a dica.

Fonte: https://bit.ly/2Fi3s6U

 *Nota: texto produzido no ano de 2012. 

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Willian Marston e Mulher Maravilha: o pioneiro e a heroína

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Super-heróis são na verdade apenas uma personificação de quem acreditamos ser: Pioneiros e Heróis.
Lynda Carter

O mês de junho tem sido aguardado ansiosamente pelos fãs da super-heroína da DC Comics, Mulher Maravilha, que ganhará seu primeiro filme solo após a participação em “Batman Vs Superman – A Origem da Justiça”, na pele da atriz israelense Gal Gadot. A personagem, que tem origem nas histórias em quadrinhos da editora americana All-star Comics, atualmente é um ícone da cultura pop. Considerada a maior referência feminina das HQ’s, em 2016 foi nomeada embaixadora honorária da ONU. Mas nem sempre tudo foi tão maravilhoso.

Fonte: http://zip.net/bktDRL
Fonte: http://zip.net/bktDRL

Os super-heróis foram criados por jovens artistas norte-americanos em meio à Grande Depressão, retratados em histórias em quadrinhos descartáveis que poderiam ser compradas por centavos em bancas e farmácias. Apesar da incrível popularização das estórias de super-heróis, os escritores e cartunistas que hoje são venerados pelos fãs do gênero, não eram bem vistos pela sociedade ou considerados artistas genuínos, por isso muitos criaram pseudônimos para usar em suas obras (SUPERHEROES: A NEVER-ENDING BATLLE, 2013).

Na primeira frase de seu artigo “A Surpreendente História de Origem da Mulher Maravilha” para a Smithsonian Magazine, a professora de história dos EUA da Harvard University, Jill Lepore, usa uma manchete de jornal de 1942: “Célebre Psicólogo é Revelado como o Autor de ‘Mulher Maravilha’, o Sucesso de Vendas em Quadrinhos” (LEPORE, 2014, p.1). Até então usando o pseudônimo Charles Moulton, o psicólogo Willian Moulton Marston (1893-1947) foi revelado como o criador da famosa e polêmica heroína. Por que Marston, um profissional prestigiado, usaria um pseudônimo?

Segundo Lepore (2014), Maxwell Gaines, co-criador do gênero dos quadrinhos e fundador da All-American Comics, vendia milhões de cópias de HQ’s dos recém “nascidos” Superman e Batman, porém com a Segunda Guerra Mundial devastando a Europa, as revistas em quadrinhos enalteciam os mais variados tipos de violência, fazendo com que vários críticos e jornais declarassem abominação às histórias. Foi então que Gaines contratou Marston como consultor, uma vez que este já havia se demonstrado ávido defensor dos quadrinhos.

Gaines havia lido sobre Marston em um artigo da revista Family Circle publicado em 1940 pela escritora e redatora Olive Richard. Na ocasião Olive visitou a casa de Marston para pedir sua opinião como um perito em quadrinhos. Ao ser questionado sobre os temas cruéis de algumas histórias, Marston concordou, porém acreditava que o desejo dos leitores ainda era de que o melhor acontecesse no final. Para Willian, a pior coisa dos quadrinhos era sua alarmante masculinidade, e para se defender dos críticos, criou uma personagem feminina (LEPORE, 2014).

Primeiros esboços da heroína. Fonte: http://zip.net/bmtDH5
Primeiros esboços da heroína. Fonte: http://zip.net/bmtDH5

Marston fez algo extremamente arriscado tendo em vista o pioneirismo e o possível preconceito dos consumidores da época. O medo de Willian e dos editores em desenvolver uma personagem feminina não é exclusivo à década de 40, muitos estúdios e executivos ainda temem investir nas personagens femininas, denotando que o preconceito e a misoginia perpassaram os séculos.

“Célebre psicólogo”: o polígrafo e o mentiroso  

Formado pela Harvard University, Willian Marston foi PhD em Psicologia, inventor, e ficou famoso pelo estudo de “pessoas normais”, uma vez que na época havia um grande investimento em estudos psicológicos de patologias e desvios comportamentais. O psicólogo desenvolveu uma teoria para descrever as respostas emocionais a partir da avaliação de quatro fatores: Dominância, Influência, Estabilidade e Conformidade (em inglês formando a sigla DISC), configurando estilos comportamentais. Ele publicou suas descobertas no livro As Emoções das Pessoas Normais (ETALENT, 2016).

Por volta de 1917, Willian publicou seus primeiros estudos quanto à descoberta da correlação entre a pressão sanguínea sistólica e estados mentais, principalmente decepções. Com um invento construído em 1915, por meio de questionários em relação a um determinado assunto, percebeu uma correspondência entre a pressão arterial e mentir, algo que chamou a atenção do governo e atraiu publicidade para seus experimentos (DISCPROFILE, 2017).

Willian Marston era casado com a advogada Elizabeth Holloway. Para Lepore (2014, p. 1), “Marston foi um homem de mil vidas e mil mentiras”, isso porque, Olive Richard, escritora da Family Circle, não foi visitar Willian para entrevistá-lo, ela morava lá. Marston, Elizabeth e Olive (que na verdade tinha o sobrenome Byrne) mantinham um relacionamento polígamo, sendo Byrne apresentada socialmente como uma cunhada viúva de Marston. Durante sua vida, Willian sempre se expressou condenando intolerância e preconceito (LEPORE, 2014).

Marston (extrema direita) aplicando teste do polígrafo enquanto Olive Byrne (extrema esquerda) anota as respostas. Fonte: Smithsonian Magazine
Marston (extrema direita) aplicando teste do polígrafo enquanto Olive Byrne (extrema esquerda) anota as respostas. Fonte: Smithsonian Magazine

Mulher Maravilha: a heroína acorrentada

Desenhada por Harry G. Peter, em sua primeira aparição a princesa Diana de Themyscira (futuramente com o alter ego de Diana Prince), usava uma tiara dourada com uma estrela, um bustiê vermelho com uma águia e barriga à mostra, uma calcinha azul estrelada e botas vermelhas de cano alto. Ousado. Diana apresentava habilidades de força e reflexos sobre-humanos, durabilidade, resistência e vôo.

Após sua estreia na All-star Comics no final de 1941, ela ganhou sua primeira capa do início de 1942, pela Sensation Comics (LEPORE, 2014). A princesa Diana deixava a Ilha Paraíso, um lugar onde não havia homens e as mulheres tinham um enorme poder físico e mental; para combater o fascismo nos Estados Unidos. Em sua história de origem, após Steve Trevor, um piloto da Força Aérea Americana, cair na Ilha Paraíso as Amazonas competiram entre si para eleger quem o levaria de volta ao seu país. Diana vence a competição e Steve acaba se tornando seu interesse amoroso.

Mulher Maravilha e Steve Trevor
Mulher Maravilha e Steve Trevor

Willian Marston e a Mulher Maravilha foram importantíssimos para a criação da futura DC Comics. O número de vendas crescia e tudo era empolgação até março de 1942, quando a “Organização Nacional da Literatura Descente” categorizou a Sensation Comics como uma leitura inadequada para jovens devido à falta de roupas da super-heroína. Mesmo após a contratação de novos consultores outras polêmicas surgiam.

Um membro do conselho consultivo de Gaines decidiu alertá-lo sobre as constantes referências sádicas nas histórias da Mulher Maravilha. Nas palavras de Lepore (2014, p.1), “episódio após episódio, a Mulher Maravilha é acorrentada, atada, amordaçada, laçada, amarrada, agrilhoada e algemada. ‘Grande cinta de Afrodite!’, grita a Mulher Maravilha em certo momento. ‘Eu estou farta de ser amarrada!’”. Cada vez mais editores se opuseram as práticas de tortura às quais a heroína tinha que vencer.

De acordo com Lepore (2014), as ideias das amarras podem ser visualizadas através de editoriais e correspondências de Willian para seu ilustrador, onde ele descreve detalhadamente cenas que insinuavam fetiche sexual por imobilização. Sem dúvidas era uma controvérsia sobre as verdadeiras intenções de Marston, mas há uma história por detrás das correntes e cordas.

No balão: "Por que eles me amarram com correntes tão pequenas? Isso é um insulto!" Fonte: http://zip.net/bxtFGz
No balão: “Por que eles me amarram com correntes tão pequenas? Isso é um insulto!” Fonte: http://zip.net/bxtFGz

Devido ao seu relacionamento com Olive Byrne e sua família, Willian, Elizabeth e Harry G. Peter (o ilustrador) foram fortemente influenciados pelos movimentos feminista, sufragista feminino (para ter o direito de votar) e contraceptivo, por meio da tia de Olive, Margaret Sanger. Cada um desses movimentos continha como símbolo central as correntes e amarras, que “prendiam” as mulheres à desigualdade de direitos (LEPORE, 2014).

Desde o surgimento do movimento sufragista feminino nos Estados Unidos, no início do século XIX, mulheres ameaçavam (e eventualmente o faziam) acorrentar-se aos portões de órgãos públicos e instituições como forma de protesto. Margaret Sanger por sua vez, publicava caricaturas de mulheres alegóricas se livrando de cordas e correntes feitas pela artista Lou Rogers, em sua revista Birth Control Rewiew (“Revista de Controle Contraceptivo”). Para Sanger, a mulher se encontrava acorrentada ao seu lugar na sociedade (LEPORE, 2014).

Marston manteve o segredo da influência de Sanger sobre a Mulher Maravilha até sua morte, e só foi descoberto anos depois. A Super-Heroína que quebrava todos os paradigmas feminilidade da época, em poucos anos conquistou milhões de fãs e aos poucos foi se readaptando e perdendo algumas características originais, uma delas, após muitas polêmicas foi o excesso de correntes, coincidindo (felizmente), em certo grau, com as “amarras” das mulheres reais, que conquistaram cada vez mais liberdade e direitos.

Margaret Sanger em protesto contra censura e ilustração de Lou Rogers. Fonte: Smithsonian Magazine
Margaret Sanger em protesto contra censura e ilustração de Lou Rogers. Fonte: Smithsonian Magazine

Outras referências como o Laço da Verdade, que é uma espécie de polígrafo que muitos gostariam de ter; e os braceletes da Mulher Maravilha iguais aos que Olive Byrne usava; ficam implícitos como presentes para quem é incitado por descobertas, denotando a complexidade tanto da personagem em si, quanto da ligação criador/criatura nesse caso.

Trazer esses temas à tona não transforma Willian Marston na própria figura heróica que ele criou, mas mostra como o psicólogo obcecado pelo “não dito” montou de maneira curiosa uma personagem que (assim como os melhores personagens) representa os embaraçados sentimentos e desejos humanos. Através de uma visão historicista, percebe-se como Marston, com sua profissão e atitudes, trouxe contribuições para a psicologia e para a sociedade de modo geral.

Mulher Maravilha é nomeada Embaixadora Honorária da ONU. Fonte: ONU/Kim Haughton
Mulher Maravilha é nomeada Embaixadora Honorária da ONU. Fonte: ONU/Kim Haughton

O pioneirismo de Willian e de seus parceiros se estende para todas as obras de quadrinhos, cinema e TV que trazem personagens pouco representados e diferentes do “comum”. É válido destacar o aumento de protagonistas femininas heróicas com menos apelo sexual aparente e mulheres mais parecidas com a “realidade” em obras como as séries Supergirl (2015) e Jessica Jones (2015); personagens dos quadrinhos como Miss Marvel (Kamala Khan), a Nova personagem da Marvel, America Chavez; e também uma menção honrosa à inovadora série televisiva Wonder Woman (1975), estrelada pela atriz Lynda Carter.

Após milhares de palavras para chegar aqui, no último parágrafo, retomo a frase usada no começo desse texto, mas para discordar dela. Lynda Carter diz que Super-heróis são na verdade apenas uma personificação de quem acreditamos ser, porém, assim como a Mulher Maravilha denota inevitavelmente o psiquismo do seu criador e de certa maneira o que ele era, todo tipo de arte que consumimos denota o nosso psiquismo, e portanto, o que nós somos. Desse modo, se você consome as diversas artes de Super-Heróis, não precisa acreditar que é um, porque em partes você já é.

Wonder Woman (1975). Fonte: http://zip.net/bvtFdN
Wonder Woman (1975). Fonte: http://zip.net/bvtFdN

REFERÊNCIAS:

LEPORE, J. The Surprising Origin Story of Wonder Woman. Smithsonian Magazine, out. 2014. Disponível em: < http://www.smithsonianmag.com/arts-culture/origin-story-wonder-woman-180952710/?page=1>. Acesso em: 09 de fev. de 2017.

METODOLOGIA DISC. Etalent. Rio de Janeiro: 2016. Disponível em: <http://www.etalent.com.br/sobre/metodologia-disc/>. Acesso em: 06 de fev. de 2017.

SUPERHEROES: A Never-Ending Battle. Produção de Michael Kantor e Sally Rosenthal. Estados Unidos (US):  Ghost Light Films, 2013. Ep. 1 Truth, Justice and the American Way.

WILLIAN MARSTON. Discprofile. Em En-US. 2017. Disponível em: < https://www.discprofile.com/what-is-disc/william-marston/>. Acesso em: 06 de fev. de 2017.

Imagens:  http://zip.net/brtDHG   http://zip.net/bqtFBD

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Doutor Estranho: elementos místico-gnósticos no clichê da quebra e retorno à ordem

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Indicado ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais (Stephane Ceretti, Richard Bluff, Vincent Cirelli e Paul Corbould )

Banner Série Oscar 2017

Por um lado, “Doutor Estranho” é uma evolução no universo Marvel: no lugar de super-soldados e playboys tecnológicos, a magia e a inteligência. Mas do outro, a magia (com referencias gnósticas e budistas) não é libertária mas destinada a manter a “ordem natural”: a seta do Tempo, a entropia e a morte – justamente as falhas cósmicas que o Gnosticismo de produções como “Matrix” ou “Sense8” e o budismo tibetano (uma fonte de inspiração do personagem) denunciam como prisões na “Roda do Samsara” – ciclo vicioso da morte/reencarnação. Em “Doutor Estranho” quem pretende romper com a ilusão são os vilões (a “Dimensão Negra”) e os heróis são aqueles que punem quem pretende quebrar a Ordem. “Doutor Estranho” explicita o clichê narrativo hollywoodiano que é o cerne ideológico do entretenimento comercial: “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – a luta para que a ordem seja mantida. Mas o que realmente fascina o público no filme é o show da possibilidade de que a ordem será toda mandada pelos ares. Até a magia colocar tudo no lugar.

A virtude de Doutor Estranho é levar o universo cinemático da Marvel para uma nova direção: das histórias sobre playboys dotados de genialidade tecnológica e super-soldados nobres e heroicos, passamos para um mundo dominado pela magia e inteligência. Além de uma eletrizante utilização dos efeitos digitais para criar um universo bem diferente de qualquer outra coisa que vimos em adaptações cinematográficas recentes sobre super-heróis – multi-universos, loop temporais, portais interdimensionais e a desconstrução do Tempo.

Mas tudo isso é apenas a superfície. Para além desse avanço evolutivo da Marvel, Doutor Estranho explicita clichês do entretenimento hollywoodiano. Mas principalmente, um clichê narrativo que é, na verdade, o cerne ideológico do entretenimento comercial: quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem – protagonistas que lutam para que uma ordem seja mantida, mas o que realmente fascina o espectador é o show da possibilidade de que a ordem será toda mandada para os ares. Até que a magia coloque tudo no lugar.

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O personagem Doutor Estranho faz parte do desenvolvimento de um sub-zeitgeist místico, religioso e sobrenatural formado nos EUA por toda uma literatura de HQs, magazines, pulp ficctions e filmes B sci-fi, horror e fantasia no Pós-Guerra. Enquanto na Europa o misticismo gnóstico e o Fantástico sempre esteve associado à literatura e movimentos artísticos de vanguarda (Romantismo, Gótico, Expressionismo etc.), ao contrário, nos EUA associou-se à subliteratura e entretenimento de massas.

Essa “nova religião americana” (na expressão de Harold Bloom) tornou-se um gnosticismo de massas. Porém, associado a uma indústria de entretenimento no qual o místico e o sagrado é estetizado e neutralizado, convivendo confortavelmente com hábitos ritualizados de consumo. Se os quadrinhos de Stan Lee ainda criavam a mitologia dos super-heróis associada à autodivinização (o que sempre indignou os fundamentalistas religiosos), nas adaptações cinematográficas as mitologias mística e gnóstica serão enquadradas nos clichês hollywoodianos de entretenimento – super-heróis amorais e a neurótica quebra e retorno à ordem: função ideológica do cinema de massas para criar resignação e conformismo no público.

Doutor Estranho explora os elementos mais críticos do questionamento ontológico que o Gnosticismo faz à Ordem: multi-universos, a realidade como um constructo e, principalmente, o Tempo como a principal falha cósmica que aprisiona a humanidade. Mas ao contrário do universo Matrix no qual o protagonista luta para desligar a ilusão e quebrar a prisão do Tempo, em Doutor Estranho (e de resto, em todo universo Marvel no cinema), os super-heróis lutam pela manutenção da Ordem – mortais vivem na realidade ilusória prisioneiros da seta do Tempo (entropia e morte) enquanto os heróis (magos supremos e mestres da magia) lutam para que a ilusão seja mantida.

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O Filme

Dr. Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é um gênio da Medicina: um rico neurocirurgião com ego tão inflado como o do Homem de Ferro Tony Stark. Trata com desdém os profissionais aos eu redor e escolhe a dedo apenas os casos médicos mais desafiadores para ele. Guiando velozmente o seu carro esporte ao som de Interestellar Overdrive, música do primeiro disco do Pink Floyd (sutil referencia ao psicodelismo dos anos 1960, década na qual Doutor Estranho estreou nos quadrinhos da Marvel), simultaneamente olha para relatórios médicos (Strange pode ser inteligente, mas seu ego o faz parecer invulnerável) quando sofre um brutal acidente com o carro devido a uma momentânea distração no volante.

Suas mãos são as mais atingidas no acidente, o que é fatal para um neurocirurgião: cheias de cicatrizes e sem mais precisão e firmeza, são agora uma pálida lembrança do profissional de sucesso que era. Mas isso não faz repensar sua vida. Após sucessivos fracassos em cirurgias, torna-se cada vez mais agressivo e retraído, a ponto de bater em sua ex-amante e colega de trabalho Christine Palmer (Rachael McAdams), a única pessoa em quem poderá confiar. Strange vê todas as soluções da Ciência e da Medicina falharem, ao mesmo tempo que conhece um ex-paciente, recusado por ele, chamado Jonathan Pangborn. Um paraplégico que voltou a andar após um período sob a tutela da Anciã (Tilda Swinton) no Nepal, onde aprendeu o controle do corpo através da mente.

Falido e carregando no pulso o último relógio da sua cara coleção (simbolismo importante no filme), Strange junta o pouco de dinheiro que sobrou e viaja ao Nepal para encontrar a cura. Mas lá encontrará muito mais: um novo mundo se abrirá (literalmente, para outras dimensões) com ajuda não só da Anciã, mas também de Mordo (Chiwetel Ejiofor). Acabará aprendendo como a magia é utilizada para proteger o planeta de “fanáticos” como Kaecilius (Mads Mikkelsen), um ex-discípulo da Anciã que abandonou o Templo para se associar a Dormammu, Deus da Dimensão Negra cujo propósito é a de consumir a nossa.

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Tempo e Imortalidade

Toda a narrativa gira em torno do tema do Tempo e da Imortalidade. Para a maga suprema, a Anciã, proteger o planeta é lutar pela manutenção a ordem da Natureza, que a Dimensão Negra pretende quebrar. “O mundo não é o que deveria ser. A humanidade anseia pela vida eterna. Um mundo além do tempo, pois o tempo nos escraviza. O Tempo é um insulto. Não queremos governar esse mundo, queremos salvá-lo”, diz a certa altura Kaecilius na primeira luta com Doutor Estranho.

Aqui temos nessa linha de diálogo uma síntese da crítica Gnóstica à falha fundamental da imperfeição do nosso Cosmos – cópia imperfeita da Plenitude, o chamado “Pleroma” para os gnósticos. A combinação dessa crítica ao Tempo com o toque místico budista da Anciã do Nepal, converge à própria visão da mortalidade/reencarnação como a essência da prisão em que se torna esse mundo, capturando as almas e obrigando-as à reencarnação (a Lei da Repetição) até que conseguam “fugir” por meio da iluminação espiritual – escapar da “Roda do Samsara”, para o Budismo Tântrico.

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O Yantra Místico

Curiosamente, essa filosofia libertária (de filmes como Matrix ou séries como Sense8) é o propósito dos vilões da Dimensão Negra. Anciã, Doutor Estranho e Mordo travam batalhas invisíveis aos humanos no Universo Espelhado (que lembram bastante as sequências do filme A Origem – Inception, 2010) justamente para manter a Ordem. Ironicamente o design dos escudos energéticos manipulados tanto pela Anciã como pelo Doutor Estranho possuem uma gestalt semelhante ao dos manuscritos originais do Livro Tibetano dos Mortos, assim como do Yantra Místico, a representação simbólica do aspecto de uma divindade, inestimável para ajudar o caminho espiritual.

Na tradição tibetana são símbolos para alcançar a união com Deus e escapar da Roda do Samsara, encerrado o ciclo de mortes e renascimentos. Ao contrário, em Doutor Estranho ajudam a manter a “ordem natural” da seta do Tempo, a falha cósmica que mantém a lei da Repetição. E todas as lutas serão travadas em torno do hospital no qual Stephen Strange trabalhava – nada mais simbólico: é no hospital onde médicos travam a batalha contra a seta do Tempo, a entropia e a morte.

tibetanoYantra: Livro Tibetano do Mortos e no filme “Doutor Estranho”
Fonte: http://migre.me/vAdL6

Quebra e retorno à Ordem

Por isso, Doutor Estranho trabalha com uma clássica variação do clichê “quebra-da- ordem-retorno-à-ordem: quem quebra as regras deve ser punido, inclusive os próprios super-heróis. Em repetidas linhas de diálogo do filme repete-se o mantra: “Mas um dia é preciso pagar a conta”, diz Mordo seguidas vezes. Anciã salva a Terra por meio da própria quebra das regras pelas quais luta – drena a energia da Dimensão Negra para ter uma vida longa e fugir da morte. Enquanto Doutor Estranho, através da joia chamada “Olho de Agamotto”, manipula o Tempo – avança e retrocede os eventos de acordo com as necessidades das batalhas contra a Dimensão Negra.

Por isso, é simbólico o relógio quebrado no pulso de Doutor Estranho, a única coisa que restou da antiga vida: ele também deverá quebrar as regras do Tempo, assim como almeja a Dimensão Negra. E por que a ênfase na autodivinização nos HQs originais de Doutor Estranho é substituída pelo clichê da punição à quebra da ordem na adaptação cinematográfica? Para pesquisadores como o alemão Dieter Prokop, essa é a essência ideológica da linguagem do entretenimento para manter todos os espectadores na linha. Ao se divertir e, subliminarmente, receber essa mensagem sobre as consequências e punições sobre desobediências à Ordem (qualquer ordem), o espectador sai do cinema disposto à enfrentar, resignado, mais um dia seguinte de trabalho e disciplina – saiba mais sobre esse conceito.

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Narrativa inverossímil

Além disso, Doutor Estranho peca por outra velha narrativa clichê hollywoodiana que é totalmente inverossímil: a história de um homem branco que viaja para uma terra “exótica”, cuja cultura e pessoas não respeita, e muito menos conhece a língua. Apesar disso, de alguma forma, descobre que tem um dom natural pela magia e rapidamente fica bom o suficiente para bater os praticantes que têm vivido nisso há séculos! Na verdade, Stephen Strange não muda e o seu ego permanece tão inflado como no início: tudo deve acontecer de acordo com seus próprios termos.

Mas, apesar de tudo isso, Doutor Estranho tem um virtude irônica: pelo menos os civis inocentes estão à salvo das batalhas amorais dos super-heróis, capazes de realizar destruições em larga escala para derrotar inimigos que também querem destruir tudo. O que deixa duas opções para os pobres civis: ou são mortos pelos super-heróis como efeitos colaterais, ou mortos pelos vilões como vítimas de atentados terroristas. Em Doutor Estranho, as batalhas ocorrem no Universo Espelhado, plano dimensional invisível para os humanos – apesar de em alguns momentos sentirem alguns efeitos. Com exceção na batalha em Hong Kong na qual a Dimensão Negra destrói o prédio do Sanctum Sanctorum – um dos escudos etéricos que protegem a Terra das forças do mal.

Mas, prontamente Doutor Estranho gira o Olho de Agamotto retrocedendo o Tempo e reconstruindo tudo, o prédio e a vida das vítimas. Mais do que dinheiro, as adaptações cinematográficas do sub-zeitgeist gnóstico das HQs da Marvel parecem cumprir uma função místico-ideológica bem clara: no lugar da autodivinização libertária, super-heróis que lutam para que a Ordem seja mantida sob a ameaça da punição. Afinal, sempre chega o dia de “pagar a conta”.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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DOUTOR ESTRANHO

Direção e Roteiro: Scott Derrickson
Elenco: Benedict Cumberbatch, Tilda Swinton, Chiwetel Ejiofor, Mads Mikkelsen
Ano: 2016
País: EUA
Classificação: 12
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