Narrando a transexualidade rumo a uma psicologia compromissada
2 de março de 2022 Bruno Riordan de Oliveira
Insight
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A medicalização dos gêneros transexuais e travestis tem sido um confronto espinhoso e diversos setores contribuem, tal como grupos da sociedade e trabalhadores. No atual momento feitos significativos a esse respeito já podem ser detectados, um deles é a retirada da seção dos transtornos mentais na CID-11, colocando como condições relativas à saúde sexual.
A Psicologia tem se dispondo segundo as normas institucionais desde 2011 a favor da não medicalização dos gêneros, especialmente via Sistema Conselhos (Federal e Regionais). Há pouco tempo introduziu-se mais um feito, e principal determinação a respeito das identidades de gênero, a Resolução nº 01/2018 que estabelece normas de atuação para psicólogas/os em relação às pessoas trans (Resolução Nº 1, 2018).
Entretanto, é sabido que o ambiente político e a condição atual do país dão indícios de um penoso percurso a ser trilhado para a vitória sobre os estigmas e impedimentos de direitos e deveres do cidadão que são maiores que uma normativa; é necessário memorar que o Brasil é o primeiro do ranking internacional em episódios periódicos de transfobia. A própria Resolução já se projeta como foco de ensaios inerentes à classe e extrínsecas de boicotagem, também do desconhecimento de sua presença pela grande maioria de psicólogas e psicólogos.
Os saberes psi (Psiquiatria, Psicanálise e Psicologia) são desbravadores em internalizar o dialogo de sexualidade e gênero, mas não os pioneiros a desfazê-la. A instigação se estende aos dias de hoje, o que é observado por meio do diálogo quebradiço com os estudos de gênero, feministas e queer.
Bem como nos demais macrossociais, essa consequência incide na Psicologia hegemônica de forma que se instituiu a ideia de corpos desviantes anexados à loucura, criminalidade, com direção ao tratamento ou recolhimento. Um modelo ilustrativo dessa circunstância é o período higienista brasileiro, onde internavam de maneira compulsória sujeitos contraditórios há norma: prostitutas, dependentes químicos, LGBT. O que se assemelha há uma memória obsoleta, na realidade acompanha a atual história da Psicologia Brasileira que completa 57 anos.
Desta maneira, fica evidente a criação de modelos legítimos de existência; o que impõe o estabelecimento da contradição entre normal e patológico. Desta forma, veem-se as identidades de gênero e orientações sexuais serem foco desse ato ferrenho, ganhando terminologias diversas: histeria, perversões sexuais, homossexualismo, lesbianismo, transexualismo… por que será que não se ouve falar em heterossexualismo?
O sujeito é um ser de linguagem, prontamente, a maneira que a comunicação acontece é fruto da nossa cultura e também se comporta na constituição subjetiva. Vale pensar na disseminação do termo trans, ao mesmo tempo em que o termo cis é desconhecido. Ou, que o termo cis aparece 70 anos depois do termo trans, bem como o termo heterossexual aparece depois do homossexual.
REFERÊNCIAS
Bagagli, BP (2018). A retirada da transexualidade da classificação de doenças e sofrimento psíquico. Recuperado de https://transfeminismo.com/a-retirada-da-transexualidade-da-classificacao-de-doencas-eo-sofrimento-psiquico/
Bento, B. (2014). O que pode uma teoria? Estudos transviados e despatologização das identidades trans. Florestan, 1(2), 46-66.
Butler, J. (2003). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Conselho Federal de Psicologia – CFP. (2013). Nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans. Brasília, DF: o autor. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/09/Nota-t%C3%A9cnica-processo-Trans.pdf
Rita Von Hunty, a persona drag queem idealizada e executada pelo professor Guilherme Terreri Lima Pereira, atua como arte educadora, colunista da revista Carta Capital, instagramer, youtuber no canal Tempero Drag e apresentadora nos programas de televisão Saia Justa do GNT e Drag-me as a Queen do canal DIRECTV GO.
Neste sentido, ao se apresentar como palestrante do evento Psicanálise e Cultura – Esperança e Ato promovido pelo curso de psicologia da Universidade Federal do Tocantins e pelo grupo de estudos FALA – percurso de Freud a Lacan, Von Hunty faz questão de indicar o seu lugar de fala, “o lugarzinho que habita” para se diferenciar dos “sabichões da internet” como sendo professora de língua e literatura inglesa, atriz farsante, marxista hoje tem como campo de atuação os estudos de cultura.
Nos aspectos físicos, Rita se apresenta com o estereótipo de uma dona de casa americana dos anos 50, com perucas estruturadas, maquiagem marcada, mas delicada, roupas coloridas, porém respeitáveis surge uma senhora de meia-idade que se autodescreve como professora de humanas e faz lembrar a tia de alguém. Mas é preciso dizer que ela é muito mais do que o impacto visual e uma performance.
Rita é um fenômeno relevante, especialmente no Brasil que carrega os tristes títulos de: ser a 12 anos campeão mundial de crimes contra minorias sexuais e de país que mais mata pessoas LGBTQI+ no mundo; ser o 5º país do mundo em feminicídio e o 4º colocado em casamento infantil de mulheres.
Rosto de drag queen Rita Von Hunty estampa o Minhocão em SP.
O Tempero Drag, protagonizado por Von Hunty desde 2015, tem quase um milhão de inscritos no youtube. O que por si só já seria um marco relevante em termos de quantidade de seguidores. E que se destaca ainda mais pela peculiaridade dos temas abordados que tratam das questões contemporâneas e cotidianas com extensa fundamentação teórica nos estudos de cultura e nas ciências humanas, e pela assertiva a escolha da arte como forma de educação e difusão de saberes.
No que se refere aos temas tratados por ela, vale destacar o espanto de dizer que centenas de milhares de pessoas estão interessadas nas aulas teóricas e bem referenciadas sobre sociologia, filosofia e literatura nas quais a “professora Rita” traduz com humor e linguagem simples aos leigos da cultura erudita o pensamento de autores da cultura ocidental tais como: Raymond Williams; Adorno; Foucalt ou Frederic James.
Ainda na tentativa de indicar os inúmeros significantes agregáveis ao fenômeno Rita, é preciso dizer sobre sua posição declaradamente marxista, sua posição na luta pela defesa por direitos humanos para todos, especialmente para os corpos mais vulneráveis e desprotegidos pela biopolítica brasileira, e, por fim seu compromisso várias vezes declarado com as propostas teóricas e técnicas do fazer educação de Paulo Freire considerando história e consciência de classe.
Fonte: YouTube
No que tange à psicologia e à psicanálise, Von Hunty estuda a teoria lacaniana sobre ética, no seminário 7, no qual analisa o texto clássico da tragédia grega de Antígona e a partir dele nos convida a pensar a necessidade de adotarmos uma postura política ativa e de somarmos esforços concretos a uma construção coletiva de uma realidade distinta em termos de direitos humanos.
Rita se fundamenta na afirmação de que ele, Lacan, não tinha pretensão de ser entendido, pois tudo que existe entre nós é mal-entendido: é o campo possível para nós, justamente para afastar-se da suspensão neurótica e passarmos a uma esperança transformadora.
Para ela, esperança não é uma coisa que você sente no sofá, é uma coisa que você sente quando você está ligado aos seus por um projeto pelo qual você se lembra que vale a pena lutar.
Fonte: YouTube
A esperança deve, então, ser compreendida como verbo, uma ação que seja de fato combustível para a construção de outro sentido, outra direção, orientada à luta por direitos humanos. Neste sentido, durante a mencionada palestra aos estudantes de psicologia de Palmas-TO, a fala de Rita convida a seguir com Raymond Williams (seu Raimundinho) e Paulo Freire para adotar a na prática profissional a esperança radical, como verbo.
Pois é preciso ter consciência de que as pessoas e os poderes estabelecidos têm necessidade de nos comunicar afetos tristes, de nos persuadir que a vida é dura e pesada e de nos angustiar para desestimular nossas ações de mudança. Nesse momento ser verdadeiramente radical é tornar a esperança mais possível do que os afetos tristes, do que o desespero convincente impresso nas notícias, nas redes sociais e no discurso oficial das instituições.
Fonte: YouTube
A fala de Rita aos estudantes de psicologia da Universidade Federal do Tocantins nos orienta a divulgar qualquer pequena vitória, também. Para fazer face ao acúmulo de estímulos à manutenção da angústia estagnante e de outro modo fazer o sujeito refletir: quais vitórias nos são possíveis agora? Para além da defensiva, para além do esperar.
Diante deste quadro, fica o convite imperativo à psicologia e à psicanálise, enquanto áreas de estudo e prática da saúde mental capazes de manejar por meio da linguagem (cura pela fala e escuta ativa) sentimentos e imaginação mobilizando afetos distintos da angústia inibidora a serem ativados pelo desejo de cada sujeito de modo a tornar, um a um, a “esperança verbo” mais possível.
Referências.
¹ Dados do Trans Murder Monitoring (“Observatório de Assassinato Trans”) https://exame.com/brasil/pelo-12o-ano-consecutivo-brasil-e-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo/
² (https://www.youtube.com/watch?v=Slm2ib2j5c0)
Lacan, J. (1997). Seminário 7 – A Ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1985.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 23. O Sinthoma. Editora Zahar. Brasília, 2017. https://lotuspsicanalise.com.br/biblioteca/Jacques-Lacan-O-seminario-Livro-23-O-sinthoma.pdf
Miller, J.-A. (1997). Lacan elucidado: Palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Sófocles. (2009). A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona / Sófocles (15a ed.). (M. G. Cury, Trad.). Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor.
Vieira, M. A. (2000). Entre desejo e gozo: Freud, Lacan e a ética da psicanálise. Saúde, sexo e educação. 20(VII), 42-50 Recuperado em 30 setembro, 2015 de http://www.litura.com.br/artigo_repositorio/entre_ desejo_e_gozo___a_etica_da_psicana_1.pdf
“Haja vista que o adoecimento mental das pessoas trans advém muito das questões relacionadas a todo o contexto de marginalização e exclusão que essas pessoas sofrem. Então a psicologia e os profissionais de psicologia são extremamente importantes no processo de minimizar e atenuar esse sofrimento, e de ajudar que essas pessoas tenham um pouco mais de qualidade de vida durante a pandemia”.
O Portal (En)Cena entrevista a gestora pública Bianca Lopes, mestranda em saúde coletiva pela Universidade Federal de Goiás, pesquisando sobre o processo transssexualizador no SUS, atua como técnica de referência e Subcoordenadora para políticas para a população LGBT no âmbito da Secretaria de Saúde do Estado de Goiás.
A gestora e mulher-trans identifica em sua fala a relevância dos aspectos sociais da pandemia para a saúde mental das pessoas trans, aponta boas práticas de políticas públicas de saúde desenvolvidas no Estado de Goiás e indica a relevância do comprometimento da psicologia e dos profissionais de psicologia em conhecer conteúdos básicos e experiências das pessoas trans para saber tratar adequadamente esse público apoiando o acesso a direitos e a qualidade de vida.
(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala de: mulher, gestora pública, gestora pública, mestranda em saúde coletiva, subcoordenadora para a políticas para a população LGBT no âmbito da Secretaria de Saúde em Goiás e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID 19?
Bianca Lopes – Se pensamos todo um legado da história do Brasil, em um país que tem uma história baseada na colonialidade, regado com culturas e imposições cristãs, machistas, patriarcais que fora de tempos pandêmicos já era opressor em relação à mulher e a sua condição de subserviência dentro da sociedade. Tido isso como um valor amplamente retroalimentado em todas as classes sociais, a pandemia se traduz como potencializador de opressão e de violência de todas as naturezas contra a mulher.
De tal forma que a pandemia veio mostrar que o vírus não é biológico somente, ele é social também, porque se observamos todos os contextos de vulnerabilidades que o país tem, ela está entrelaçada com a desigualdade de gênero e a violência de gênero que as mulheres em todos os seus recortes sofrem neste país. Então eu creio que ser mulher durante a pandemia no Brasil é um fator da mais de risco à vida dessas brasileiras.
(En)Cena – Na sua opinião, como podemos compreender o sofrimento emocional das mulheres trans no Brasil?
Bianca Lopes – Penso que a pandemia, com tudo que ela trouxe de ruim, talvez o aprendizado que possamos tirar disso é que o capitalismo mostra suas piores faces quando olhamos para as diferenças sociais e o quanto isso nos afeta. O quanto a nossa sociedade está mal estruturada. O quanto a falta de justiça social vulnerabiliza e mata pessoas. Quantas vidas poderiam ter sido salvas, se o governo se preocupasse com a vida das pessoas de fato, tanto quanto com a economia do país, como se essas questões fossem ambivalentes.
(En)Cena – Como a pandemia pode afetar a saúde mental das mulheres trans?
Bianca Lopes – O sofrimento emocional das mulheres trans e travestis neste país é carregar nos ombros toda a força do ódio e opressão que a desigualdade de gênero pode proporcionar, e que pode ser mil vezes potencializada nessas duas formas de identidade.
Vivemos no país que mais mata pessoas trans no mundo, em que essas mulheres são assassinadas simplesmente por serem quem são e expressarem suas identidades.
De uma maneira muito contraditória, esse mesmo país, que ostenta esse vergonhoso ranking de exterminador de mulheres-trans e travestis[1], é um dos maiores consumidores de conteúdo adulto que tem a temática trans. Isso reverbera como um sistema de marginalização que potencializa bastante a vulnerabilidade dessas pessoas em um contexto completamente estruturado na família, na escola, no mercado de trabalho formal. E isso influencia muito o adoecimento mental dessas pessoas, o desenvolvimento de transtornos depressivos, de ansiedade, compulsivos. A exclusão social e o isolamento social não é uma problemática para as mulheres trans de agora, durante a calamidade da COVID 19. O isolamento social para as mulheres trans e travesti sempre existiu. Elas sempre foram excluídas da sociedade. Então agora, a pandemia vem potencializar esse extermínio, porque antes elas só tinham a rua a noite para trabalhar e garantir sua subsistência, agora está mais potencializado ainda porque, em tempos de distanciamento social, uso de máscaras, de higienização das mãos a atividade de emprego que elas têm não faz o menor sentido. E se a gente pensa num apoio do Estado para que elas possam de alguma maneira manter sua renda e tentar manter a sua saúde íntegra sem se expor ao risco de contágio, a gente está falando de algo completamente inacessível. A exemplo disso o próprio auxílio emergencial que foi uma política cheia de restrição desde o início, haja vista que a maior parte da população trans que está nas suas, nem documentos têm. Então quem nunca foi enxergada continua sendo negligenciada como sempre foi. Então a falta de dinheiro implica em mais vulnerabilidade, mais exposição às violências e todo um contexto de abandono nas ruas. Outras precisam voltar para famílias que são opressoras e passam a sofrer outros tipos de violência dentro do seio da família. Então, não existe saúde mental que dê conta, que faça com que as pessoas se sintam em paz, tranquilas, em relação a toda essa pandemia social que a gente vive também.
(En)Cena –Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?
Bianca Lopes – Penso que, para as mulheres no pós-pandemia nós precisamos ter mais consciência de classe. Nós enquanto mulheres precisamos nos organizar e nos articular mais politicamente, fortalecer nossas classes. Conseguirmos reverberar consciência de classe, fomentar isso dentro da sociedade em todos os níveis, em todas as classes, para fortalecer e enaltecer a força da mulher como uma forma de revolucionar e promover mudanças, romper com paradigmas na nossa sociedade para que a gente possa um dia olhar para trás e perceber que pudemos caminhar um pouco com os aprendizados que tivemos durante a pandemia, para a emancipação da mulher. Para que nós consigamos diminuir um pouco mais essa diferença de gênero e romper um pouco mais com as garras nefastas do capitalismo e do machismo que tanto nos fere, nos rouba e nos corrompe enquanto seres plenos que somos.
(En)Cena –Como funciona o seu trabalho como subcoordenadora para a políticas para a população LGBT no âmbito da Secretaria de Saúde em Goiás (SSG)?
Bianca Lopes – Meu trabalho é oferecer apoio técnico na estrutura e para os 243 municípios goianos para implantação da política nacional de saúde integral da população LGBT+, conforme ela está instituída desde dezembro de 2011 pela portaria ministerial. Eu ofereço apoio técnico, consultoria e capacitação para a Secretaria de Saúde em Goiás (SSG) e para os municípios em relação ao enfrentamento do preconceito institucional e sistêmico, no combate à discriminação pelas questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transsexuais. No que tange a temas como o respeito ao nome social, às especificidades relacionadas à linha de cuidados do processo transsexualizador. Condução dos processos técnicos burocráticos dentro das câmaras colegiadas de discussões dentro da estrutura de Estado. Além de promover a cooperação da gestão com as instituições de ensino e os serviços da linha de frente, tentando promover a articulação para que os profissionais e estudantes da saúde e áreas afins possam ter contato com a base conceitual e as experiências da população LGBT+ como parte da sua formação. Para que possam, no futuro, compreendendo o público em questão, de modo crítico reflexivo, não estabelecer dificuldades de acesso à saúde, mas promover o cuidado específico para que essas pessoas se sintam acolhidas nos serviços de saúde e, é claro, no SUS – Sistema Único de Saúde. Então o profissional de psicologia e a própria psicologia se traduzem em instrumentos importantes para mitigar os efeitos negativos que a pandemia tem para a sociedade, mas sobretudo para a população trans que está mais vulnerável.
(En)Cena – A partir das suas experiências neste trabalho, como você definiria os maiores desafios e as maiores conquistas em termos de políticas públicas para mulheres trans na atualidade?
Bianca Lopes – Atuando como gestora pública na Secretaria de Saúde em Goiás (SSG) o que eu avalio como grandes avanços em termos de políticas públicas que contemplem direitos e acesso à cidadania de pessoas trans, sobretudo de mulheres trans, destaco talvez a rede de ampliação do processo transsexualizador no SUS, tanto em serviços ambulatoriais quanto hospitalares. Considero um avanço muito grande a conquista do nome social, o decreto do nome social no estado de Goiás que existe desde 2016.
A participação na audiência pública da Defensoria Pública da União para a escrita da minuta do provimento que dá direito às pessoas trans de retificarem seus nomes, prenomes e gênero no registro civil no cartório, foi um momento histórico em que pudemos estar presentes, foi representativo, com muitos avanços.
Penso que todas as atividades que desenvolvemos até agora, os fóruns e as capacitações, em que a temática da população LGBT+, sobretudo as questões interligadas à identidade de gênero, como capacitação profissional contribuíram muito para o acesso dessa população à saúde no âmbito do Estado de Goiás.
Ainda temos outro avanço exclusivo no Estado de Goiás e referência nacional. Foi uma apresentação que fizemos no nosso plano estadual de saúde do quadriênio 2019/2023, por meio da Secretaria de Saúde, em que conseguimos colocar como prioridade um cofinanciamento estadual para que fomente que municípios possam implementar a política do processo transssexualizador de uma maneira descentralizada.
Mas ainda temos muitos desafios. A interseccionalidade ainda não é uma realidade muito concreta. Haja vista que precisamos fazer com que o reconhecimento das mulheres trans seja feito de maneira mais ampla dentro da estrutura técnico burocrática estatal. Os textos das políticas, das portarias, dos decretos, das notas técnicas contemplam de uma maneira sistematizada e reiterada os direitos que essa população tem. Mas os sistemas de informação e de reconhecimento de gênero ainda se baseiam muito ainda em sexo biológico. Isso ainda inviabiliza muito o acesso à cidadania e a direitos da população trans num âmbito geral.
Outro quesito de desafio são os reconhecimentos dos direitos sexuais reprodutivos das pessoas trans. Que isso seja resguardado sobretudo o direto de serem pais e mães. Que sejam respeitadas de acordo com sua identidade de gênero as condições dos homens-trans que sejam pais gestantes e as condições das mães-não gestantes, nos casais trans centrados.
São avanços para os quais ainda temos que caminhar muito investindo no fomento de pesquisas relacionadas à saúde da população trans que levem em consideração todas as questões relacionadas à saúde e à harmonização, as intervenções cirúrgicas a médio e longo prazo, as transformações bioquímicas que esses corpos terão ao longo do tempo. É preciso que invistamos mais nessas questões para que essas pessoas tenham mais qualidade de vida e segurança no seu processo de afirmação de gênero.
(En)Cena – Como a psicologia pode colaborar para apoiar pessoas trans, especialmente, durante a pandemia?
Bianca Lopes – A psicologia sempre foi fundamental no processo de afirmação de gênero das pessoas trans. Principalmente para as pessoas trans que recebem o acesso a uma psicologia verdadeira, que acompanha, aconselha e faça uma escuta ativa para essas pessoas. Uma psicologia preparada e capaz de fazer esse acompanhamento. Haja vista que o adoecimento mental das pessoas trans advém muito das questões relacionadas a todo o contexto de marginalização e exclusão que essas pessoas sofrem. Então a psicologia e os profissionais de psicologia são extremamente importantes no processo de minimizar e atenuar esse sofrimento, e de ajudar que essas pessoas tenham um pouco mais de qualidade de vida durante a pandemia. A problemática maior diz que, apesar de nem todos os profissionais da psicologia terem habilidades para lidar com todas as questões que demandam da população trans, que não se esgotam apenas nas questões de identidade de gênero mas toda a completude e a complexidade que atravessa a vivência dessas pessoas, o distanciamento social, a suspensão de serviços de saúde não essenciais, que não estejam ligados à COVID 19, afastaram a maioria dessas pessoas dos serviços de saúde e dos profissionais que as acompanham. Foram poucos os serviços que conseguiram manter o atendimento por meios de telemedicina, ou de alguma maneira. Isso inviabilizou muito a continuidade desse processo. Mas os profissionais e serviços que conseguiram manter esse elo, essa assistência continuada, mesmo que a distância, com certeza mitigaram um pouco o impacto da pandemia na saúde mental das mulheres trans e são fundamentais para que essas pessoas tenham mais qualidade de vida nesse período tão difícil para todo mundo.
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CAOS 2020: Encerramento tematiza possibilidades de avaliação de pessoas trans
Evento também discutiu métodos de avaliação psicológica envolvendo o uso de testes.
No dia 6 de novembro de 2020 às 19 horas, ocorreu a palestra de encerramento do Congresso Acadêmico de Saberes em Psicologia (CAOS 2020), organizado e promovido pelo Centro Universitário Luterano de Palmas. A palestra de encerramento, mediada pela professora Muriel Correa Neves Rodrigues (CRP23/377) recebeu a psicóloga, Bruna Sofia Morsch de Souza (CRP 12/16721) que trouxe o tema da primeira palestra “A clínica, a pessoa trans e os laudos psicológicos”.
A psicóloga Bruna debateu criticamente o método de avaliação de pessoas que estão no processo de realizar a cirurgia de transição à luz da psicanálise de Freud e Lacan. A palestrante explicitou que na comunidade acadêmica, que utilizam a psicanálise como base científica, a pessoa trans é vista automaticamente como psicótica e por isso o laudo para a autorização da cirurgia não é concedido e desse modo, há uma barreira na escuta da pessoa trans.
Fonte: Arquivo Pessoal
A palestrante também expôs que é necessário avaliar o que sustenta a transexualidade para desenvolver o laudo para o procedimento cirúrgico. Além disso, também é de grande importância o trabalho juntamente com a/o profissional de psicologia antes e a após a cirurgia, e se não ocorrer, pode ocorrer as ideações e tendências de desvalorização da vida. Pois haverá o luto do corpo que se vai e a atenção ao corpo que se revela.
A segunda palestra foi apresentada pelo psicólogo egresso do CEULP/ULBRA Ruam Pedro Pimentel (CRP 23/1394) com o tema “Quando a avaliação envolve testagem: como escolher?”. O palestrante desenvolveu sua fala de modo técnico, explicando o objetivo da avaliação psicológica, a metodologia envolvida no processo avaliativo, qual os testes que podem ser utilizados, de acordo com as demandas que surgirem.
Fonte: Arquivo Pessoal
O psicólogo Ruam também mostrou alguns exemplos que envolvem escalas, inventários, autorrelatos, heterorrelatos, observação de comportamentos, entre outros, que podem ser utilizados durante o processo. Além disso, deu ênfase em como o planejamento é importante e necessário no decorrer das avaliações psicológicas assim como as devolutivas e o rapport. Ruam diz que “A relação entre o sujeito e o avaliador não se constrói de um dia para o outro”, mostrando o quando a vínculo irá interferir no andamento.
O CAOS 2020 trouxe como tema Psicologia e Profissão: a avaliação psicológica em destaque. O evento teve início no dia 3 de novembro e se encerra no dia 7 do mesmo mês com a Assembleia geral dos estudantes de Psicologia do Tocantins (9h de sábado, 7). O congresso contou com palestras, rodas de conversa, minicursos e sessões técnicas.
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‘Meu nome é Ray’ alerta para os desafios de uma criança trans
Meu nome é Ray, filme lançado em 2015, dirigido por Gaby Dellal, estrelado por Elle Fanning e Naomi Watts, traz por enredo a vida de um menino transgênero e os desafios durante a caminhada de transição de sexo.
Fonte: encurtador.com.br/iwzES
Ramonna (Elle Fanning) nasceu menina em sua forma biológica, no entanto, aos quatro anos de idade não se identificava como uma menina, mas sim como um menino. Nesse momento, Ramonna não quis mais ser chamada por esse nome e passou a ser chamada de Ray.
O processo de identificar-se com o sexo masculino ou feminino é chamado de Identidade de Gênero. Neste, o corpo biológico não é determinante para a identificação, uma vez que o indivíduo pode nascer em um corpo biologicamente feminino, mas não se identificar com o sexo feminino, e sim com o masculino (SILVA; BEZERRA e QUEIROZ, 2015).
O papel dos cuidadores é de grande influência nessa caminhada, e Maggie (Naomi Watts) consegue transmitir toda a compreensão e conhecimento sobre o assunto na tentativa de ajudar seu filho. Tal suporte colabora muito para o alívio do sofrimento causado pelo preconceito que Ray vivencia na escola por parte de alguns alunos.
Fonte: encurtador.com.br/sHJS5
O grande desejo do personagem principal é conseguir iniciar o processo de transição do sexo feminino para o masculino, e para isso ele precisa do consentimento dos seus pais. E essa é umas das grandes questões que o filme ressalta, fazendo o telespectador refletir sobre o sofrimento que Ray passa por ter o destino do seu próprio corpo e percepção de si entregue nas mãos de outros.
Apesar de esse sofrimento ser genuíno, Ray ainda tem a possibilidade de tentar o processo de transição, o que muitas vezes não é a realidade das pessoas transgêneros que não tem acesso gratuito à transição, e/ou não podem pagar por ela.
As adversidades durante a jornada de obtenção da autorização dos pais mexem muito com Ray, que já se sente cansado de ter fingido ser alguém que ele não é. Tal consternação é representada por ele, em uma fala muito marcante à sua mãe, em resposta a pressão que ela dizia estar sentindo para assinar logo os papéis. Ele então verbaliza: “Uma decisão difícil? Para mim tem sido uma existência difícil!”.
As pessoas transgêneros não se sentem pertencentes ao corpo em que nasceram, experimentando um enorme desconforto em se verem dentro desse corpo, e relatam que a sensação é de despersonificação e falta de identidade. Muitas vezes elas alegam sentir repulsa e nojo por seus órgãos genitais, visto que o órgão não é representativo de como eles se veem como indivíduos.
Fonte: encurtador.com.br/sTUV4
Há também a recusa em performar os papéis de gênero do sexo biológico com o qual nasceram, sendo essa recusa motivo de preconceito e conflitos, tanto com os familiares como com pessoas desconhecidas que se sentem no direito de impor como essas pessoas devem existir no mundo. No filme, Ray não gosta de usar vestidos ou acessórios que são “delegados pela sociedade” como pertencentes ao sexo feminino, ele não possui cabelo comprido e se veste de forma compatível a maneira como se vê.
Mas o que é um papel de gênero? Como ele se constrói? De acordo com Grossi (1998) apud Sayão (2002, p.6) “(…) papéis de gênero são as formas de manifestação ou representação social de ser macho ou fêmea (…).” Essas formas são pré-estabelecidas pelos indivíduos que vivem na comunidade social em que estão inseridos, e a partir delas, eles esperam que todos os novos seres humanos que nasçam sigam essa forma de existir.
Mas então onde está a liberdade de escolha do que ser ou não ser? É por essa liberdade que Ray luta desde os seus quatro anos de idade, sofrendo imposições e cobranças de todos ao seu redor para que se comportasse como um menina.
A sexualidade humana e sua experimentação individual, diz respeito apenas ao próprio sujeito, dono de seu corpo e de sua existência. O teórico da Psicologia Fritz Pearls, já dizia sobre isso, “Eu não estou neste mundo para viver as suas expectativas. E você não está neste mundo para viver as minhas. Você é você, e eu sou eu, e se, por acaso, nós nos encontrarmos, será lindo. Se não, nada se pode fazer.” Ray, assim como qualquer outro ser humano deseja ter seus desejos respeitados, independente se tais desejos estão ou não, dentro dos padrões estabelecidos como socialmente aceitáveis.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
MEU NOME É RAY
Título original:3 Generations Direção: Gaby Dellal Elenco:Elle Fanning, Naomi Watts, Susan Sarandon Ano: 2016 País: EUA Gênero:Drama, Comédia
REFERÊNCIAS:
MISKOLCI, Richard; PELðCIO, Larissa. FORA DO SUJEITO E FORA DO LUGAR: REFLEXÕES SOBRE PERFORMATIVIDADE A PARTIR DE UMA ETNOGRAFIA ENTRE TRAVESTIS. Gênero, Niterói, v. 7, n. 2, p.257-269, jan. 2017. Disponível em: <file:///C:/Users/gabri/Downloads/155-430-1-PB.pdf>. Acesso em: 08 jan. 2019.
SAYÃO, Deborah ThomÉ. A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E PAPÉIS DE GÊNERO NA INFÂNCIA: ARTICULANDO TEMAS PARA PENSAR O TRABALHO PEDAGÓGICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL. Pensar A Prática, Florianópolis, v. 5, n. 1, p.1-14, jun. 2002. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/fef/article/view/43/39>. Acesso em: 08 jan. 2019.
SILVA, Rodrigo Gonçalves Lima Borges da; BEZERRA, Waldez Cavalcante; QUEIROZ, Sandra Bomfim de. Os impactos das identidades transgênero na sociabilidade de travestis e mulheres transexuais. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, [s.l.], v. 26, n. 3, p.364-372, 26 dez. 2015. Universidade de Sao Paulo Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBiUSP. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v26i3p364-372. Disponível em: <http://www.periodicos.usp.br/rto/article/view/88052/109664>. Acesso em: 08 jan. 2019.