Cegos e surdos esquecemos daquilo que buscamos na vida em “A Grande Beleza”

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Freud revelou que o homem é capaz passar uma vida inteira repetindo, compulsivamente, uma cena traumática – revisitando essa cena-clichê de diversas maneiras com roupagens diferentes. 

Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014, muitos críticos consideram “A Grande Beleza” (2013), de Paolo Sorrentino, quase uma refilmagem de “A Doce Vida”, filme de Fellini de 1960. Roma, a “Cidade Eterna”, vista pelos olhos de Jep Ganbardella, um escritor de apenas um livro que vive no centro de uma vida mundana de festas e exposições de artistas, intelectuais, jornalistas e editores de revistas culturais. Cínico, zomba de todos, mas principalmente de si mesmo pelo vazio, desilusão e niilismo. Todos parecem zumbis, vagando em festas barulhentas e ensurdecedoras atrás da “grande beleza” esquecida, lá atrás na juventude. Cegos e surdos pelas distrações que criamos, esquecemos daquilo que passamos uma vida inteira procurando. No clássico filme “Cidadão Kane” era o “Rosebud”. E o que Jep Gambardella procura em “A Grande Beleza”? 

Era uma vez o Esclarecimento, o movimento filosófico Ocidental que libertaria o homem das mentiras, ilusões e mitificações, cujo empenho racional conduziria o homem para a felicidade, quebrando a compulsão da covardia, preguiça e comodismo. Mas nessa jornada da Razão alguma coisa deu errada.

Nietzsche falava em “eterno retorno”. Freud revelou que o homem é capaz passar uma vida inteira repetindo, compulsivamente, uma cena traumática – revisitando essa cena-clichê de diversas maneiras com roupagens diferentes. 

Adorno e Horkheimer (os temidos “marxistas culturais”, fantasmas que assombram a atual política brasileira) apontavam que a Razão paradoxalmente trouxe de volta os mitos, tidos como sepultados pela Modernidade – e o nazismo e o Holocausto foram a principal evidência disso.

Filmes como Cidadão Kane, 1941 (talvez, o mais freudiano filme jamais feito), mostram como uma vida inteira de um personagem pode ser marcada pela busca de um simples objeto emblemático da infância – o “Rosebud”. A procura de alguma coisa (objetos, cenas, conquistas etc.), até a morte, que trouxesse de volta aquilo que foi perdido numa vida: carinho, afeto, amor, segurança. Inconscientes, damos voltas e voltas em torno desse objeto ou cena mítica perdida no passado, procurando alguma coisa que nos traga de volta aquela experiência.

Fonte: encurtador.com.br/ruXZ1

Mas coube ao filósofo alemão Peter Sloterdijk o diagnóstico do estágio final dessa viagem do Esclarecimento: o momento em que a Razão desemboca na desilusão cínica. O Esclarecimento finalmente realizou sua missão (a ausência de ilusões), mas o resultado foi a paralisia do “cinismo esclarecido”.

Cinismo e desespero

É de tudo isso que trata o filme italiano A Grande Beleza (La Grande Bellezza, 2013), Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, do cineasta Paolo Sorrentino, num estilo barroco e envolvente. Muito consideram praticamente uma refilmagem do clássico A Doce Vida (1960) de Fellini – sob as aparências de uma sociedade contemporânea jovem e enérgica, o cinismo que esconde a desilusão, niilismo e desespero.

A Grande Beleza aspira à universalidade, a partir do olhar do protagonista Jep Gambardella (o brilhante Toni Servillo) para Roma atual – Jep é um escritor de apenas um livro que vive no centro de uma vida mundana de festas e exposições de artistas, intelectuais, jornalistas e editores de revistas culturais. Cínico, zomba de quem assume ares pseudo-intelectual, com discursos sobre ética, arte, ativismo político e eterna juventude.

Mas, principalmente, zomba de si mesmo. Como todos, quer permanecer sempre jovem (tem 65 anos) desfilando com seu cinismo e ironia pelas intermináveis festas. Botox e cirurgias plásticas de milhares de euros ajudam bastante. Mas apenas criam máscaras que encobrem vazios profundos.

A Grande Beleza é um verdadeiro estudo desse “abismo das aparências” (Jean Baudrillard) – enquanto turistas de acotovelam pelas ruas de Roma para fotografar as ruínas de um Império que desapareceu (“acho os romanos insuportáveis, as melhores pessoas em Roma são os turistas”, dispara Jep a certa altura), a elite cultural dança freneticamente entre toda aquela herança cultural que de nada serve – são apenas ruínas de algo que não existe mais. Serve para criar uma imagem de exportação da Itália, ao lado de pizzas e moda.

Todos cínicos e esclarecidos: paralisados no comodismo e covardia, apenas festejam uma espécie de melancolia hiperativa. Porém, Jep, assim como todos, está inconscientemente em busca de um “Rosebud”.

Fonte: encurtador.com.br/vwxzZ

O Filme

No olho da tempestade está Jep Gambardella, um playboy sessentão que fez sua fortuna e reputação como jornalista e escritor de um livro de décadas atrás chamado “O Aparato Humano”, “obra-prima da literatura italiana”, mas que, apesar do título pretensioso, foi lido apenas pelos leitores frívolos daquela alta sociedade romana.

Quando o filme começa, Jep está celebrando seus 65 anos. Uma abertura impactante na qual parece que o diretor Sorrentino quer nos cegar e ensurdecer com imagens e música – de um lado um turista japonês ansiosamente tira fotos do horizonte romano, até cair na rua aparentemente com uma overdose do puro esplendor das imagens que tem diante de si; e do outro, a frenética festa com tipos fellinianos totalmente indiferentes ao cenário ao redor.

Parece querer nos dizer que do Coliseu àquela festa que rola sobre o terraço diante da majestosa cidade, tudo está em ruínas – ruínas físicas e psíquicas.

Jep reconhece em si mesmo tudo que é feio e provinciano em Roma. A partir dessa abertura feérica, a narrativa de A Grande Beleza começa a misturar o presente e a realidade com as memórias e, talvez, até sonhos. 

Sorrenttino quer transformar o seu filme num Grande Colisor de Partículas. A cada encontro de Jep com personagens da “doce vida” da elite cultural romana, parece uma colisão que esmaga o Sagrado e o Profano um contra o outro: o encontro com a stripper inteligente Ramona (Sabrina Ferili), cujo romance vazio acaba revelando o “Rosebud” de Jep – a primeira vez que viu o seio da mulher amada à beira-mar na juventude.

Ou o encontro com um cardeal respeitado, cotado para ser o próximo Papa, e que nada tem a compartilhar do que dicas de culinária; uma versão da Madre Tereza de Calcutá (a “Santa”) que fala em voto de pobreza em meio a uma celebração mundana; a performance vazia de uma artista que bate a própria cabeça nas ruínas do aqueduto romano; o dramaturgo mal sucedido que tenta buscar opiniões sobre sua próxima peça de artistas em meio às festas turbinadas por longas carreiras de cocaína.

Fonte: encurtador.com.br/dTY78

A Grande Beleza aplica o mesmo princípio da acumulação dos filmes de Fellini: a cada cena adiciona significados, ao invés de fatos. Aparentemente, nada acontece. Porém, a cada cena Sorrentino vai inserindo novos personagens para criar dicotomias e justaposições que serão progressivamente diluídas num imenso painel de figuras vazias, alienadas e entediadas. 

Cinismo esclarecido

Parece que a “Grande Beleza” da qual trata o filme refere-se aos meios utilizados pela sociedade para expressar esse mal-estar: através da arte, música, memórias pessoais e coletivas (ruínas), amizade e amor.

Mas aqui a jornada do Esclarecimento e da Arte se deteriora em cinismo e paralisia: todos os personagens, e principalmente Jep, são conscientes das máscaras vazias que portam em festas que celebram novas obras artísticas que são sempre mais do mesmo. São “cínicos esclarecidos”, como certamente os definiria o pensador Peter Sloterdijk.

Um tipo de cinismo característico de pessoas integradas aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou diretores) que mantêm um autodistanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmos e ao que faz, uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios – leia SLOTERDIJK, Peter, Crítica da Razão Cínica, Estação Liberdade, 2012).

Fonte: encurtador.com.br/gKMZ3

É uma razão que se pretende transparente e livre de ilusões e mentiras. Porém, como aponta Sloterdijk, “o marketing da falsidade é ser honesto” – uma transparência que alimenta as commodities do cinismo. A mentira parece que veio à luz e deixou de ser o fundo podre da civilização, como dizia Freud. O cinismo esclarecido tornou-se o bem de primeira necessidade.

Porém, por trás de todo esse mal-estar pulsa o “Rosebud”: como no personagem Jep Gambardella, ele, assim como todos os outros personagens, vagam como zumbis naquelas festas ensurdecedoras atrás daquela experiência marcante e decisiva na juventude, incompreendida e deixada lá atrás e esquecida.

Esse o principal tema gnóstico de A Grande Beleza: nos tornamos cegos e surdos com as distrações que criamos para nós, esquecendo que aquilo que procuramos (o nosso “Rosebud”) já está dentro de nós mesmos. 

E a Razão e o Esclarecimento falharam nessa busca.  

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Título Original: La grande bellezza
Direção: Paolo Sorrentino
Elenco:  Toni Servillo, Carlo Verdone, Sabrina Ferilli,
Produção: Indigo Film, Medusa Film, Pathé
País: Itália, França
Ano: 2013
Gênero: Comédia, Drama

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O SUS de portas abertas

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Aos 14 anos contraí dengue pela segunda vez. Alguns sintomas ao qual me lembro de ter sentido foram febres, dor de cabeça intensa, moleza e dor no corpo e um extremo cansaço. Tendo se manifestado esses sintomas, meus familiares já suspeitaram que poderia ser o vírus da dengue se instalando em meu organismo e com isso me levaram ao UPA/NORTE. Tendo o diagnóstico comprovado e por perceberem que minhas plaquetas estavam abaixo do padrão de normalidade, fiquei internada por alguns dias no hospital, sendo medicada e com um acompanhamento contínuo.

Foram dias bem exaustivos, pois o ambiente hospitalar não é agradável. Porém, a equipe médica que me assistiu foi bem acolhedora, demonstrando afeto e preocupação. Essa foi uma das experiências em que tive contato com o SUS, na qual foi experenciada de forma positiva, sendo acompanhada por uma equipe médica apta a atender o paciente na situação em que se encontra de forma humanizada.

Confesso que há algum tempo em que apresento dificuldades para comparecer em algum serviço ofertado pelo SUS, seja em Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Unidades Básicas de Saúde (UBS), seja para realizar consultas, marcar agendamentos ou mesmo em situações em que meu estado de saúde não está satisfatório, na qual apresento sintomas em meu organismo, porém, vou adiando e evitando o contato com esse ambiente.

Mesmo tendo aversão ao ambiente hospitalar, quando preciso esse sistema está de portas abertas a me atender. Percebo a importância e a contribuição do SUS para com a sociedade. Esse sistema garante que todos possam ter acesso aos serviços de saúde (Universalidade), articulando aspectos curativos e preventivos (Integralidade) e tratando os indivíduos de maneira justa, de acordo com sua necessidade (Equidade).

Sendo assim, esse serviço prestará assistência a todo brasileiro. Como cidadãos temos acesso aos variados níveis de atenção oferecidos pelo SUS, de acordo com cada necessidade. Somos seres únicos, compostos por subjetividades e particularidades, inseridos em contextos diferentes, com hábitos distintos, porém, todos temos um bem precioso em comum: nossa SAÚDE, e dela devemos zelar. Nos tornarmos frágeis a partir do momento em que uma doença nos acomete, por isso precisamos cuidar do nosso corpo.

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Reforma Psiquiátrica No Brasil

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Para que haja uma melhor compreensão da reforma psiquiátrica é necessário atentar para dois pontos marcantes nesse processo. Inicialmente a desconstrução da ideia de que o louco é uma ameaça para sociedade e não pode ter convívio com as pessoas consideradas normais, por isso deveria ter um lugar para abarcar o indivíduo no seu decurso de loucura. E posteriormente precisamos compreender o fortalecimento dos serviços substitutivos, ou seja, substituir a lógica manicomial de que existe um lugar específico para esses loucos, o manicômio e somente a psiquiatria poderia tratar esses problemas (MELO, 2012, pág 86)

Melo (2012) cita Amarante (2007) em seu texto, onde ele afirma que a reforma psiquiátrica é um processo amplo que se utilizou de diversas estratégias na remodelação e avanços dos cuidados a saúde mental. Abrangendo 4 dimensões principais: Teórico-conceitual, onde a saúde é entendida como um processo saúde-doença; desinstitucionalização; Técnico assistencial que é a construção de serviços substitutivos ao manicômio CAPS/NAPS, livre de isolamento, repressão e disciplina; Jurídico-política que são as mudanças na legislação, sanitária, civil e penal que vinculavam a loucura com periculosidade, incapacidade social e irresponsabilidade; Sócio-cultural onde há a construção de um novo lugar social para abrigar o sujeito na sua insanidade, trabalhando no imaginário social e o conceito de loucura construído a anos.

A Reforma Psiquiátrica se consolida como marco fundamental da política de assistência à saúde mental oficial com a virada do século, a influência de suas ideias vem-se expandindo no campo social, jurídico, e nos meios universitários que formam os profissionais da saúde. Apesar das dificuldades enfrentada pelo sistema de saúde pública do Brasil, o cenário psiquiátrico vem mudando, os mais de mil Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) espalhados pelo país vem modificando rapidamente a estrutura da assistência à saúde mental.

Fonte: goo.gl/4riQjY

A proposta da criação do CAPS é de substituir o modelo hospitalocêntrico e manicomial, de características opressivas, excludentes e reducionista. Ao invés desse modelo antigo, vem sendo construído com base nos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS) sendo eles a equidade, universalidade e integralidade, cujo alcance ultrapassa as práticas de saúde e atinge o social e as formas culturalmente validadas de compreensão da loucura.

A proposta da Reforma Psiquiátrica se desdobra em vários planos, situados em diversos campos: Plano Assistencial, pensar em modelos e intervenções, além de inovadores, adequados e mais abrangentes, sem se fixar em apenas um modelo, pois há diversas culturas e contextos compondo a sociedade brasileira; Formação de Recursos Humanos, por se tratar de pessoas jovens a maior parte dos novos profissionais, não foi vivido por eles o processo da luta antimanicomial, de um lado é preciso dar-lhe uma formação teórica e técnica sólida, por outro, é necessário que fomente uma vocação crítica e criativa para atender aos desafios que surge no processo de transformação contínua; nos planos Jurídico e Político, o tema de direitos humanos e defesa da dignidade da pessoa, tem sido acrescido de iniciativas que avançam na discussão dos direitos civis e sociais dos indivíduos portadores de transtornos mentais; no Plano Sociocultural, transformar a loucura e o sofrimento numa questão que ultrapasse discursos técnicos e do saber psiquiátrico, insistindo na dimensão existencial e humana que é facilmente deixada para trás da fala e protocolos médicos-psicológicos.

Após toda uma trajetória de movimentos sendo o resultado de um árduo processo científico-político-social, iniciado na década de 1950 nos países europeus e no final da década de 1970 se enquadrando no contexto brasileiro, deu-se início às mudanças do modelo hegemônico no Brasil, para o modelo de atendimento psiquiátrico comunitário, baseados em serviços de saúde mental descentralizados, multiprofissionais e diversificados que visavam acabar com as condições precárias e trazer a humanização no tratamento existente antigamente em manicômios, os protestos que aconteciam fizeram com que a reforma fosse ganhando consolidação.

Fonte: goo.gl/4n8bXd

A retomada de uma das conquistas mais importantes para a reforma psiquiátrica brasileira foi quando a Lei 10.216 foi posta em vigor, no dia 6 de abril de 2001. Houve início o processo ao qual se tinham uma atenção mais abrangente, incluindo prevenção, promoção, recuperação e ressocialização das pessoas com transtornos psiquiátricos, substituindo os descasos existentes no principio. Com o passar do tempo também foi exigido à existência de equipes multiprofissionais, acomodações adequadas, espaços para recreação e terapias complementares para o tratamento dos pacientes institucionalizados.

Por fim, o processo de reforma psiquiátrica brasileiro acontece de forma contínua, a desinstitucionalização ocorrida ainda é vista em andamento, gerando questionamentos e enfrentando dificuldades. Todavia, vem constituindo um desenvolvimento muito importante para a garantia dos direitos humanos e a cidadania das pessoas com transtornos mentais, visando sempre o aprimoramento dos serviços de saúde mental.

REFERÊNCIA:

MELO, Anastácia Mariana da Costa. Apontamentos sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Santa Catarina, v. 4, n. 9 (2012). 

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