“Ame na prática, na ação. Amar é ação. Amar é arte” (Paulo Gustavo)
Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros, 42 anos, foi um ator, comediante, roteirista, produtor e diretor, que invadiu nossas casas com suas diversas expressões de sentimentos e emoções, por meio de seus variados personagens, sendo o mais conhecido, o de Dona Hermínia, um papel que deu destaque ao ator e principalmente ofereceu um diálogo próximo da realidade de quem o assistia.
Iniciou sua carreira no teatro, onde teve a oportunidade de trabalhar em diversas peças, mas o encontro do ator com essa arte foi um verdadeiro presente para todos que o acompanhavam. Seus personagens eram pessoas vivas na vida do seu público, uma identificação surgia e cada vez mais Paulo Gustavo se tornava um vínculo afetivo, um ente querido, uma pessoa íntima, aquele que de alguma forma conhecia um pouquinho do que se passava no cotidiano de cada brasileiro.
Dona Hermínia e seu repertório, lembrando sempre alguém que a gente conhece, com um coração enorme, trazendo lições de respeito e aceitação, algo que refletia a própria vida do comediante. No personagem Valdomiro, o humor esperto, numa linguagem bem brasileira. A Mulher Feia era uma forma de falar ao seu público que a aparência é apenas um detalhe. Aníbal nos trouxe a amizade como algo primoroso e vários outros personagens que partilhavam afeto e naturalidade.
O riso foi o seu combustível e como ele mesmo falava, o riso o preenchia e fazia o enlace entre ele e o seu público. Na sua amorosidade Paulo Gustavo demonstrava a importância de estar nos palcos de teatros pelo Brasil, se alimentando do riso de seu público e principalmente, oferecendo momentos marcados na memória de muitas pessoas.
Costumava trazer para sua arte a figura do seu cotidiano. Nascido e criado em Niterói, ambiente que o ator fazia constantemente uma releitura em seus filmes, mas sempre trazendo a imagem de algo que remetia as suas melhores lembranças e se aproximando ainda mais do seu público, nos permitindo sentir parte do cotidiano daquele que na sua simplicidade, nos chamava atenção para a valorização do simples, dos laços, das palavras, mas principalmente das ações, por isso retratou tão bem o seu cotidiano nas telas dos cinemas do Brasil, conquistando recordes de bilheteria, nos preenchendo com seu humor e modificando nossa forma de ver as relações afetivas.
Dona Hermínia invadiu nossas casas e também nossas vidas. Logo que surgia numa tela, mesmo sem falar nada, se expressava de uma forma que a comunicação se estabelecia. Um olhar, um cumprimento, um levantar, um abaixar, qualquer atitude era suficiente para que o diálogo entre dona Hermínia e seu público acontecesse. Em várias de suas entrevistas Paulo Gustavo relatou se sentir mais à vontade quando se apresentava através de seus personagens, por que ali ele conseguia expressar o seu amor pela sua arte e principalmente se alimentar daquilo que verdadeiramente o fazia feliz, o riso vindo do seu público.
Apesar do ator ser visivelmente “Hiperativo”, ligado no “220 volts”, tendo na sua trajetória o “Surto” criativo de trazer para a sala de nossas casas o riso, parafraseando os títulos de suas principais peças de teatro, Paulo Gustavo deixa um vazio intenso, uma falta de alguém tão próximo, que intimamente nos conhecia, que adivinhava nossos pensamentos e que o traduzia em palavras para tantas pessoas. O ator falava o que o seu público sentia, por isso a sua passagem por esse plano é tão cheia de amor, algo que ele repetia, declarava e agia.
No dia 04 de maio desse ano, esse ator que tão bravamente lutou pela vida nos deixou, vítima da COVID-19, levando o Brasil aos prantos. A alegria que muitas vezes invadiu nossas casas com seus filmes que nos pregavam sempre uma “peça”, deu lugar a tristeza. Fomos terrivelmente surpreendidos com a notícia de sua morte, algo que parecia ser inacreditável, principalmente por que o riso deu lugar ao choro, por que a presença deu lugar a ausência e agora também à saudade.
O legado de Paulo Gustavo é o amor pela vida, pela arte, pela família, pelas pessoas. Em todo o seu discurso, seja através dos seus personagens, ou mesmo quando estava somente de Paulo Gustavo sempre nos alertava sobre os valores como a caridade, a amizade, o afeto, o respeito, a aceitação, então podemos falar que o recado foi dado, precisa somente ser vivido. Seu talento e carisma estão marcados na história da arte do nosso país, mas principalmente no coração de todos os brasileiros.
Não é fácil definir um relacionamento abusivo, muito menos identificar se você é o abusador ou o abusado. Claro, algumas situações são óbvias, como por exemplo, quando a esposa apanha do marido, quando há uma violência explicita. Mas o relacionamento abusivo não se limita a surras e a danos físicos. O dano psicológico é até mais devastador do que o corpo machucado. Mulheres gostam de apanhar? A não ser em casos de masoquismo, a resposta é “não”. Então por que não se defendem? Por que não delatam o companheiro violento? Por que continuam com ele e ainda inventam desculpas para suas surras? Simples, porque antes de serem abusadas fisicamente, elas foram abusadas psiquicamente.
Antigamente, somente os homens trabalhavam. Eram eles que sustentavam a família. Eram eles que recebiam salário. Eram eles que detinham o poder dentro de casa. O marido mandava e a mulher obedecia. Simples assim. Em famílias mais machistas, o homem poderia trair a esposa, agredi-la física e verbalmente, inclusive diante de outras pessoas, controlar suas amizades, seus relacionamentos familiares, enfim, o homem era o dono e a mulher, a propriedade. A maioria aceitava o fato como se fosse uma lei. No entanto, mesmo aquelas que se revoltavam contra isso, eram obrigadas a aguentar, ou porque não tinham como se sustentar sozinhas, dependiam do marido para tudo, ou porque a família era contra a separação. O aspecto religioso também tinha muita influência na submissão da mulher. O homem era a cabeça, dizia a igreja, e a esposa tinha obrigação de obedecê-lo. Em algumas partes do mundo, até hoje isso é realidade.
Mas e quanto às mulheres que são independentes, livres da dominância masculina e religiosa? Por que não se rebelam contra o relacionamento abusivo? Por que continuam dia após dia ao lado do abusador? Por que inventam desculpas que protegem o homem que as espanca?
Fonte: encurtador.com.br/jrIJ5
Alguns esclarecimentos
Para efeito desse artigo, usarei sempre o exemplo de um homem, como abusador, e sua companheira, como abusada. Mas antes de mais nada, é preciso deixar alguns pontos bem claros. Nem todo abusador usa da violência física. A violência psicológica é mais poderosa e duradoura. Não deixa marcas e o dano pode ser irreversível.
Nem sempre o abusador é o homem. Mulheres também podem ser, e muitas vezes são, abusivas.
Qualquer relacionamento pode ser abusivo. Entre pessoas de sexos opostos ou não.
Qualquer relacionamento pode ser abusivo, não apenas entre casais. Pode haver abuso entre amigos, entre pais e filhos, entre professores e alunos.
Nem sempre o abusador sabe que está abusando e nem sempre o abusado percebe que está sendo dominado.
O abusador não tem cara de vilão e o abuso começa aos poucos, discretamente, disfarçadamente. Normalmente ele é encantador, cativante e você não acredita na sorte que teve de encontrá-lo.
Muitas vezes o abusador se torna abusador porque o abusado lhe confere muito poder. Nem sempre é fácil resistir ao poder.
Fonte: encurtador.com.br/vDFQV
Mas no que consiste o abuso?
Como saber se você está em um relacionamento abusivo?
Você começa a perder a voz. Sua voz não é mais ouvida, não tem mais valor.
Você começa a perder os amigos. De repente, não há mais nenhum amigo em sua vida.
Você começa a se afastar dos parentes. Frequenta cada vez menos os eventos, as festas, as reuniões sociais.
Você muda a maneira de se vestir, você para de beber, não dá mais aquelas gargalhadas altas, não faz mais nada divertido.
Você frequentemente se sente inadequada.
Você frequentemente se sente indigna de amor.
Você já não tem mais autoestima.
A única pessoa que te ama verdadeiramente é aquela que está ao seu lado.
Nada do que você faz está certo. Nada do que você faz tem valor.
Você não serve para nada.
Você se olha no espelho e não mais se reconhece.
Quando é maltratada, você acha que mereceu, que a culpa foi sua.
Você tem medo de perdê-lo, pois ninguém mais vai te querer.
Fonte: encurtador.com.br/hJM45
A armadilha
Júlio é encantador. Não necessariamente bonito, mas charmoso. Desde o começo trata Amanda como se ela fosse uma joia rara e delicada. Ele lhe dá presentes lindos, leva a amada a diversos restaurantes, conquista toda a sua família e até os amigos dela incentivam o namoro.
Ele pede que Amanda vá morar com ele e ela prontamente aceita.
Um dia, vão sair para jantar e ele diz, com todo o cuidado, que a roupa dela está muito decotada. Mulher de respeito não usa roupas daquele jeito. O que vão pensar dela? Se ela quiser sair assim mesmo, tudo bem, ele só está zelando por sua imagem. A mulher gosta de sua roupa, mas talvez ele tenha razão. E não custa nada agradá-lo, só dessa vez.
Mas aos poucos, ela começa a usar, cada vez mais, roupas mais sérias e sóbrias. Afinal, não quer que ninguém pense mal dela e seu companheiro só está tentando protegê-la.
Eles vão a uma festa na casa de alguns amigos e na volta ele fica amuado. Quando ela insiste em saber o que aconteceu, Júlio lhe diz que seus amigos são falsos e não gostam dela de verdade. Com exceção do Rafael que está dando em cima dela e só ela não percebe.
A mulher não acredita, mas quando saem com seus amigos novamente, ela começa a procurar sinais em todos eles. Aos poucos, vai se afastando dos homens e restringe sua amizade só às mulheres.
Mas as mulheres também não prestam. A Luciana tem inveja dela e a Raquel está sempre se insinuando para ele. Assim, Amanda começa a evitar suas amigas. Com o tempo, os convites ficam mais escassos e logo a mulher não tem mais com quem sair, a não ser os amigos de Júlio, de quem ela não gosta muito.
O homem também começa a implicar com a família de Amanda. Nada muito óbvio, nenhum insulto claro. Apenas algumas alusões à fatos que ele percebeu: sua família nunca a amou de verdade. O preferido sempre foi seu irmão. Seu pai, obviamente não gosta dele e faz com que ele se sinta um intruso na família.
Aos poucos, Amanda começa a se afastar também da família. Não tem problema, ela está com Júlio, o único que a ama de verdade.
Então, ele começa a fragilizar a confiança da mulher. Ela está engordando. Em tom jocoso, começa a chamá-la de bolota. Seus cabelos estão muito compridos. Seus cabelos estão muito curtos. Ela não vai envelhecer muito bem. Ela está com aparência de doente. Ainda bem que ele não liga para as aparências. Mas ela podia se esforçar um pouquinho mais.
Júlio sempre caçoa de Amanda, chamando-a de burrinha. Tudo o que ela diz, é bobagem. Ela não sabe de nada. Tão tapadinha, coitada.
Ele vai minando as forças da mulher em todas as áreas. Quando ela fica zangada ou ofendida, no dia seguinte ele lhe dá uma dúzia de rosas.
Em um dia, ele lhe agrada. No dia seguinte, ele a despreza.
Amanda passa a viver em uma montanha russa de emoções. Quando acha que não vai suportar mais suas grosserias, Júlio a surpreende com algum presente ou a leva para jantar em seu restaurante favorito. Ele a eleva um pouquinho, para em seguida deixá-la cair de cabeça.
Ninguém jamais vai te amar como eu te amo. Você é burra mesmo. Nossa, você está cada dia mais feia. Quem vai olhar para você? Seu gosto para roupas é muito cafona. Deixa que eu escolho o que você vai vestir. Você não percebe que todo mundo caçoa de você. Fala menos que é melhor. Não sei o que vi em você. Mas não se preocupe, estarei sempre ao seu lado.
A autoestima de Amanda nunca esteve tão baixa. Uma mulher linda, inteligente, independente. Competente em seu trabalho. Respeitada pelos colegas. Mas quando ela se olha no espelho, tudo o que ela vê é uma mulher gorda, acabada, velha, burra, desprezada, um zero à esquerda. Ela não tem mais valor. Ela não tem mais opinião própria. Era viva, alegre, sorridente. Agora mal sorri. Mas Amanda não conta nada a ninguém. Não quer que julguem seu companheiro. Afinal, ele é muito bom para ela. Se às vezes ele a magoa é porque só quer o seu bem. Ele a ama.
Depois de um tempo nesse relacionamento tóxico, Amanda já se acostumou a ser maltratada. Os insultos ficam cada vez piores. As gentilezas cessam. A sutileza some. Uma vez, a comida está sem sal. Ele joga o prato que se espatifa no chão. Furioso ele manda a esposa limpar aquela sujeira. Amanda se recusa. Está magoada e assustada. Júlio, então lhe dá um tapa na cara. Mais tarde, ele vai procurá-la no quarto e diz que ela o força a fazer essas coisas. Ele não quer, mas ela precisa aprender. Amanda, já com seu psicológico completamente fragilizado, passa a acreditar que realmente tudo é culpa dela.
Um dia a mulher chega ao trabalho com o olho roxo. Os colegas perguntam o que aconteceu e ela responde que caiu e bateu o rosto no móvel da sala.
Outro dia ela liga para o trabalho alegando que está doente. Mas quando ela volta a trabalhar, as marcas em seus braços ainda são visíveis.
A violência física e verbal vai se tornando cada vez pior. Amanda pensa constantemente em se separar, mas e se nunca mais alguém gostar dela? Ela é muito amada, tem certeza disso. Quem mais a amaria? Quem mais cuidaria dela como Júlio cuida? Ela não vale nada. Ela é feia, gorda, burra, incompetente. Quem mais ficaria ao lado dela?
E assim acontece com muitas mulheres, nesse mundo moderno, ainda nos dias de hoje. Não há, necessariamente violência física. Nem todos os relacionamentos abusivos chegam até esse ponto. Mas certamente há violência psicológica. E essa é a chave de tudo.
Fonte: encurtador.com.br/kvxGZ
Como então, se proteger?
Você pensa: ah, isso jamais aconteceria comigo. Será? Imagine uma torneira pingando uma gota de água incessantemente. No começo, você não presta atenção. Depois, começa a ficar levemente irritado. Depois acha que vai enlouquecer. Mas as primeiras gotas, você nem percebe. É muito fácil se deixar influenciar sem perceber. Depois de ser bombardeado com determinada informação, o cérebro passa a acreditar naquilo que está ouvindo constantemente. E quem manda é o nosso cérebro.
Lembre-se, nem sempre percebemos essa lavagem cerebral. Precisamos estar constantemente atentos. Isso é possível? Se estivermos sozinhos, será muito difícil. A armadilha é sutil. Nenhum homem maltrata uma mulher logo que a conhece. Primeiro ele a conquista. Depois ele vai minando sua confiança pouco a pouco. As mulheres abusadas não são burras, não gostam de apanhar, não são carentes, não escolheram ser abusadas.
Então não tem saída? Sim, tem. Nunca se isole. Converse sempre com alguém de sua confiança. Você precisa ter pelo menos alguém na sua vida com quem possa conversar sobre tudo, nem que seja um terapeuta. Alguém que não vai julgar, não vai condenar, e vai mostrar uma perspectiva que você não está enxergando. Uma pessoa que possa devolver a sua voz.
Compartilhe este conteúdo:
Senado aprova por unanimidade projeto de Kátia Abreu que exige laudo psicológico para soltura de agressor de mulher
10 de outubro de 2019 Sonielson Luciano de Sousa
Notícias
Compartilhe este conteúdo:
Projeto, aprovado em caráter terminativo, agora será analisado pela Câmara dos Deputados.
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou nesta quarta-feira (09), por unanimidade, projeto de lei da senadora Kátia Abreu (PDT-TO) que determina que a revogação da prisão preventiva de agressor de mulheres ocorra somente após a emissão de laudo psicológico. A matéria foi aprovada em caráter terminativo e agora será analisada na Câmara dos Deputados.
A medida, que complementa a Lei Maria da Penha, visa a evitar que os agres sores reincidam após a soltura. Determina que, no caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer revogação de prisão, seja em flagrante ou preventiva, deve ser precedida de uma avaliação psicológica do agressor que verifique o grau de probabilidade de ele voltar a agredir a ofendida.
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Autora do projeto, a senadora Kátia Abreu lembrou que, somente em 2016, 4.600 mulheres foram assassinadas no Brasil, uma média de 12 homicídios por dia, conforme o Atlas da Violência 2017.
“A maioria desses crimes foi cometida por maridos e namorados das vitimas. Muitas das mulheres assassinadas por seus companheiros já recebiam ameaças ou eram agredidas constantemente por eles. Os agressores se sentem legitimados e creem ter justificativas para matar, culpando a vítima”, observou Kátia.
Compartilhe este conteúdo:
Bullying e imagem corporal na infância: um relato de experiência
No último dia 22 de agosto participei de um debate em meio ao CAOS, Congresso Acadêmico de Saberes em Psicologia, sobre o tema Violência. O debate foi um dos grandes eventos e possuía tamanha importância, sendo apresentado pela Psicóloga egressa do Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP), Michelle Sales Zukowski. A psicóloga apresentou o seu Trabalho de Conclusão do Curso (TCC), orientada pelo Dr. Pierre Brandão com o seguinte tema: “Bullying e imagem corporal na infância”.
Zukowski apresentou uma breve definição para a palavra Bullying, segundo Tognetta, sendo indisciplina, incivilidade. Complementa com Olweus dizendo: todo comportamento agressivo que se repita e que tenha provocação, é Bullying. Ela expõe que essa prática é dividida em duas partes: Bullying direto e Bullying indireto. O bullying direto é a agressão física, verbal, moral, psicológica e danos materiais. Dentro de sua pesquisa, Zukowski concluiu que essa prática é mais frequente entre meninos. Existe também o bullying indireto, fofocas ou rumores desagradáveis. Está ligado à parte relacional e social. Concluiu que essa prática é mais frequente entre as meninas.
Fonte: https://goo.gl/1tkAvS
No decorrer da apresentação, Zukowski mostrou que os meninos agridem tanto os outros meninos, quanto as meninas, e as meninas agridem apenas as outras meninas. Complementou que a prática do Bullying começa aos 3 anos de idade, estágio pré-operatório segundo Piaget. A falta de compreensão faz com que nessa fase o bullying seja direto, ou seja, agressões físicas, verbais, etc. A violência aumenta conforme o aumento das relações.
Sales mostrou características que as crianças agressoras e vítimas podem apresentar. Os agressores apresentaram problemas de satisfação pessoal, autoestima baixa e problemas com a autoimagem; são influenciados socialmente a anular sua empatia com as vítimas, buscam vítimas vulneráveis, nas quais identificam os seus pontos fracos. Já as vítimas experimentam sensação de extrema angústia ao ir para a escola; podendo levar ao comportamento autolesivo e tentativas de suicídio, ansiedade e insegurança. A egressa foi a fundo, dando dicas para identificação de crianças agressoras e vítimas. As agressoras apresentam ganho de objetos e falam muito de si. Já com as vítimas acontece o oposto, há perda de objetos e marcas no corpo.
Zukowski fala sobre a Imagem Corporal, e afirma que desde bebê começamos a percepção da nossa própria imagem corporal. Baseado em Schilder (1980), diz que o processo da nossa própria imagem é figurativo, como exemplo: identificação de gorduras onde não há. Para a interação fisiológica ela cita três aspectos: os Aspectos Neurais, os Aspectos Emocionais e os Fatores Sociais. Por fim, Michelle citou que usou metodologia de natureza quantitativa em seu estudo e apresentou em números os resultados de sua pesquisa desenvolvida em uma escola de rede privada de Palmas.
O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons. Martin Luther King
A série “13 Reasons Why” produto da Netflix, chegou recentemente ao Brasil e tem sido foco de muitas opiniões controversas. Trata-se da história de Hannah Backer, adolescente norte-americana, que comete suicídio após sofrer uma série de intimidações na escola que passa a frequentar, após sua família mudar de cidade em função dos negócios do pai.
Ao se matar, deixa com Tony, colega de escola, um conjunto de 13 (treze) fitas-cassete, cada uma dedicada a um dos responsáveis, segundo ela, pela sua decisão de se matar. O que representa essa atitude de Hannah? Crueldade? Morbidez? O que ela realmente está querendo dizer? Vingança, simplesmente? Chamar a atenção, como acreditam alguns dos envolvidos?
Fonte: http://zip.net/bctJhq
Quando não me sinto pertencente
Antes de tentar responder a todos esses questionamentos, vamos analisar aqui o que a história de Hannah nos conta. Em primeiro lugar, fala das dificuldades que muitos adolescentes encontram de pertencer em suas escolas – sejam eles novatos ou não. Por pertencer, queremos dizer ser aceitos e respeitados em suas particularidades, em suas diferenças e se sentirem valor em seu espaço de convivência, a escola.
Fonte: http://zip.net/bbtJfP
Em paralelo à história da protagonista, correm as de Jessica e Alex, novatos como ela, que se submetem – mesmo em desacordo, na maioria das vezes – aos populares da escola e por isso acabam se afastando de Hannah e a de Courtney, a garota com fama de boazinha, reprimida na expressão de sua opção sexual, entre outras razões, por ser filha de um casal homossexual. Ainda há a história de Clay, o amigo mais próximo da protagonista, o espectador, que já havia vivido os seus dias de alvo anteriormente.
O Bullying e Cyberbullying
O segundo ponto abordado pelo seriado é sem dúvida o Bullying/Cyberbullying, contato da perspectiva de quem o sofre, o alvo. Seu sofrimento relatado nas treze fitas provoca diferentes repercussões em quem o pratica – os autores – bem como em quem assiste, os espectadores. Evidencia aqui que, numa situação de bullying, todos sofrem – alvos, autores e espectadores.
Além disso, chama a atenção para dois outros pontos presentes sempre que situações de intimidação sistemática acontecem: o fato de ocorrer longe dos olhos das autoridades e a importância do olhar atento aos sinais de quem educam – a família e a escola.
Assim, o seriado define claramente o que entendemos por bullying, as características dos personagens envolvidos em tal fenômeno, bem como a sua inter-relação. Comecemos pela definição, e aqui optaremos pela de Dan Olweus, da Universidade de Bergem (Noruega), por ter sido ele o primeiro pesquisador a chegar a uma definição precisa deste tipo de violência, diferenciando-a das brincadeiras comuns entre pares e incidentes pessoais.
Diz o autor que um aluno torna-se alvo de bullying quando sofre ações agressivas, repetidas e intencionais ao longo do tempo, praticada por um ou mais alunos, causando um sofrimento constante, caracterizado por angústia e dor. Aponta ainda para a existência de uma relação desigual de poder, já que “[…] o (a) aluno (a) exposto (a) às ações negativas tem dificuldades para defender-se” (OLWEUS, 1993, p.139).
Fonte: http://zip.net/bptJ2H
Certamente identificamos Hannah (Alex, Jessica, Courtney, Clay e tantos outros da ficção ou reais) nesta definição, não? A tais características somam-se a presença das testemunhas, notórias na ficção aqui descrita, e o fato de que essa violência ocorre entre pares, ou seja, neste caso, entre alunos.
Passemos agora aos personagens envolvidos em uma situação de bullying e aqui, Hannah será nosso foco inicial. Começaremos então a falar do alvo de bullying, que caracterizado como frágil, se vê com tão pouco valor, a ponto de acreditar que mereça ser provocado, diminuído, não tendo força para reagir (TOGNETTA, 2013). Fala-se ainda de indefensibilidade própria e pessoal (AVILES, 2006) na medida em que não dispõe de ferramentas psicológicas de defesa para afrontar o maltrato.
No episódio 6, uma reflexão de Hannah traduz o que foi dito anteriormente: “Não pude me mover, não pude levantar ou ir embora ou gritar. Qualquer coisa teria sido melhor que sentar lá, pensando que de algum modo tinha sido minha culpa. Pensando que ficaria sozinha para sempre.” O alvo nem sempre é tímido, calado e sensível e acaba reagindo de forma a irritar ou a provocar ainda mais os seus algozes, caracterizando um perfil que vem sendo denominado de vítima provocadora (TOGNETTA, 2013; AVILES, 2013).
Seria Hannah uma vítima provocadora? Acreditamos que não era o seu perfil. Ela era uma garota frágil, que foi aceitando todas as provocações que foram lhe sendo feitas, como se não se importasse com elas – e como se as merecesse – muito mais por não saber o que fazer e ver fracassar todos os seus pedidos de socorro, vendo no suicídio a única saída para o seu sofrimento.
Fonte: http://zip.net/brtJmQ
O que ela faz ao gravar as fitas além de buscar responsabilizar cada um dos envolvidos em sua história, é uma tentativa de sensibilizá-los com a sua dor, para que talvez eles mesmos pudessem enfrentar as suas próprias, já que todos, de uma forma ou de outra também as tinham e buscavam, na intimidação, uma forma de lidar consigo mesmos.
Falemos então do autor – ou dos autores – de bullying. No seriado, representado por Alex, Jessica, Justin e principalmente por Bryce. Unidos na intimidação que fazem a Hannah, a protagonista, muitos deles já foram alvos de violência daqueles com os quais se associaram, como forma de se protegerem de suas próprias fragilidades e da exposição delas pelos demais.
Assim, a caracterização dos autores de bullying apontados pelas pesquisas (TOGNETTA, 2010; TOGNETTA & VINHA, 2013; TOGNETTA & ROSÁRIO, 2012) fica claramente retratada no seriado, ou seja, o autor de bullying tem uma hierarquia de valor invertida, prevalecendo os valores individuais (valentia, intimidação, etc.) sobre os morais (humildade, justiça, etc.). Além disso, carecem de sensibilidade moral, ou seja, a capacidade de se sensibilizar com a dor do outro.
Certamente, o próprio funcionamento do “High School” americano favoreceria a prevalência dos valores não morais – força, beleza, rendimento esportivo… Clay, um dos expectadores, no episódio 13 (treze) aponta: “Acho que em nossa sociedade os valores estão invertidos”, quando Bryce é ovacionado ao chegar a escola, após seu desempenho em uma partida e todos sabiam o quanto ele era responsável pelas intimidações e outras formas de violência que ocorreram na escola.
Para completar a tríade envolvida nas situações de bullying, não podíamos deixar de falar dos expectadores, representados aqui por Clay, mas também pelos demais personagens envolvidos na trama quando não estavam à frente das intimidações. Como se viu no último episódio, nenhum dos envolvidos estava indiferente ao que acontecia com Hannah, ou seja, todos haviam presenciado – e executado – algum tipo de constrangimento sofrido pela protagonista.
A teoria mostra que grande parte dos que contemplam seus colegas sendo maltratados acredita que o que está acontecendo não lhes diz respeito, que é um assunto entre o autor e o alvo, e que eles devem resolvê-lo. Estes são os chamados espectadores indiferentes (AVILÉS, 2013). Entretanto, muitos deles acreditam que deveriam fazer algo, mas não o fazem porque não sabem exatamente como ajudar, ou ainda temem ser os próximos alvos – aqui podemos encaixar principalmente Clay, que ao longo dos 13 (treze) episódios vai tomando consciência de que a máxima “Não fazer nada já é fazer alguma coisa” se aplica a situações de bullying.
Fonte: http://zip.net/bvtJPj
Salmivalli et al (1996) realizaram estudos em que nomearam os espectadores de acordo com o seu posicionamento na situação de bullying que presenciam. Desta forma, nomeou-se assistentes e reforçadores aqueles que se juntam aos autores (idealizadores dos maus tratos) e fornecem um feedback positivo para as intimidações (por exemplo, rindo, aplaudindo, ou apenas dando audiência) – no seriado, todos os demais autores quando não estavam envolvidos diretamente na agressão.
Podem ser também espectadores propriamente ditos, os que ficam afastados das situações de bullying, como no caso da participação de Clay, na maioria das situações. Finalmente, os defensores, aqueles que tomam partido das vítimas, consolando e apoiando-as.
O papel da educação – a família
Além de caracterizar a situação de bullying, o seriado traz pelo menos mais um ponto extremamente importante de reflexão: o papel daqueles responsáveis pela educação, nas figuras da família de cada um dos envolvidos e da escola, representados pelos professores, o diretor e mais especificamente, o orientador.
Comecemos pelo papel da família e depois da escola, ambas envolvidas e complementares na tarefa de educar. É sabido que a família tem papel importante no fortalecimento de meninos e meninas para não serem vítimas e/ou agressores de bullying. Para tanto, a educação que recebem deve direcionar crianças e jovens a admirar valores morais tão desejáveis como o respeito, a tolerância e a justiça e não o poder sobre o outro, ou a não aceitação da diferença.
Fonte: http://zip.net/bftJjP
Além disso, é primordial que a relação dentro da família seja pautada na confiança e desenvolvida através do diálogo. Agrega-se a esses fatores o olhar atento dos pais às mudanças de comportamento de seus filhos, tais como isolamento, irritação, agressividade, resistência a ir à escola, poucos amigos, entre outros.
No desenrolar dos episódios é possível observar diferentes estilos de educação parental, do negligente – notadamente a família de Bryce, sempre viajando, completamente ausente da vida do filho; passando pelo permissivo – em que o afeto é valorizado, mas pouquíssimas regras são colocadas (aqui podemos pensar em Courtney e porque não em Hannah e Clay); alguns exemplos do estilo mais autoritário, como Alex e Jessica e finalmente, a busca por uma modelo autoritativo, [1]especialmente pelos pais de Clay que vão alterando a forma de relacionamento com o filho. Contudo, seria a família a única responsável por essa formação do sujeito?
O papel da educação – a escola
A resposta à pergunta anterior de que a família seria a única responsável pela formação humana de crianças e jovens ainda parece ecoar em nossos ouvidos – não é possível mais acreditar que seja verdadeira essa resposta. Savater (2005), filósofo espanhol contemporâneo, afirma que a família e a escola têm papéis complementares na formação do indivíduo, ressaltando ainda que se houver falha na primeira – no âmbito da família – não significa que a segunda – de responsabilidade da escola – não terá êxito.
Passemos então a tratar da escola: o que cabe a ela? Além dos conteúdos das diferentes disciplinas descritas no currículo da escola, à essa instituição de educação cabe também o cuidado com as relações interpessoais, para além das campanhas puramente informativas.
Fonte: http://zip.net/bbtJfS
Na série, o posicionamento da escola, em relação à formação mais global dos alunos, acontecia sempre após um incidente em que esses estivessem envolvidos. Foi assim após a morte de Jeff, que a escola avaliou ser por embriaguez e no dia seguinte espalhou cartazes orientando a não beber e dirigir e após a morte de Hannah, quando a escola ateve-se à questão do suicídio, orientando, novamente através de cartazes, os jovens a procurar ajuda, além de promover uma palestra aos pais sobre o tema.
Nessa, quando o tema bullying é levantado por alguns dos presentes, ele é negado pelo diretor, até que a mãe de Hannah Baker entra na reunião e evidencia um problema até então não visto pela escola: o desrespeito que permeava a relação entre os alunos da instituição, pelos registros ofensivos nas paredes do banheiro.
Certamente, a escola é um espaço público, é a instituição em que o indivíduo irá aprender a viver em sociedade, o que possibilitará ao sujeito “o reconhecimento do outro e a busca por coordenar perspectivas distintas, administrar conflitos de uma maneira dialógica e justa, estabelecer relações e perceber a necessidade das regras para se viver bem” (VINHA & TOGNETTA, 2013, p. 4).
Fonte: http://zip.net/bltHSy
As cenas marcadas pelo desrespeito que foram o foco da trama revelaram que as relações entre os alunos eram pautadas no individualismo e na competitividade. O outro, que não fosse considerado amigo, era visto, na melhor das hipóteses, com indiferença e, na pior delas, com inimigo e por isso passível de ofensas, intimidações e outras tantas formas de desrespeito. A forma com a escola lidava com os conflitos interpessoais só reforçava esse panorama.
Indubitavelmente já sabemos muito a esse respeito: a perspectiva construtivista, que tem em Piaget uma das suas mais fortes referências teóricas, considera os conflitos interpessoais como uma possibilidade de aprendizagem e fundamentais para o trabalho com valores e regras. Assim, as intervenções pautadas no diálogo têm como finalidade maior, auxiliar os envolvidos a reconhecer os pontos de vista dos outros e a resolver seus problemas de forma mais assertiva (YOON et al., 2011).
Ao falarmos tomamos consciência de nossos atos e os elaboramos. Aquilo que vira palavra é passível de intervenção, de mudança. Nada disso ocorria na escola de Hannah. Os alunos não eram ouvidos – e quando o eram, de forma superficial – e os conflitos resolvidos de forma punitiva, sem reflexão. É evidente que em um contexto em que falta a intervenção ou o olhar cuidadoso daqueles que educam a intensidade das agressões tende a aumentar (YOON et al., 2011).
Fonte: http://zip.net/bbtJfX
Numa escola em que a convivência ética fosse um valor (COWIE, 2005), certamente o sofrimento de Hannah não passaria despercebido, fosse ele produto das relações estabelecidas, fosse ele fruto de um estado depressivo, ou uma combinação dos dois. Sabemos que o suicídio destacado na série evidencia também uma espécie de eufemismo moderno que torna o suicida, um herói. Desvencilhar –se dessa ideia seria então possível no mundo adolescente de hoje?
É possível quando se tem um clima de “pertencimento” na família e na escola cujos espaços de diálogo assegurem a certeza de que o jovem que tanto deseja ser valor, realmente o seja podendo dizer o que pensa, tendo espaços para expressar o que sente. Isso posto, há evidências deste feito na literatura: quando os relatos são desacreditados ou minimizados pelos adultos que não intervêm, há um aumento da sensação de desamparo nas vítimas (CRAIG et al., 2011).
Em resposta às primeiras perguntas
O que representa essa atitude de Hannah? Crueldade? Morbidez? O que ela realmente está querendo dizer? Vingança, simplesmente? Chamar a atenção, como acreditam alguns dos envolvidos?
As respostas a esse conjunto de perguntas devem ter sido percebidas pelo leitor ao longo do texto quando caracterizamos os pontos envolvidos na trama pós-moderna que confunde pais e professores se devem ou não permitir que seus filhos ou alunos a assistam.
Em outras palavras: a série gera uma crise. E a cada crise, um desequilíbrio cuja volta ao equilíbrio é um desejo. Equilibrar-se novamente, nesse sentido, é fazer valer a ideia de que os alertas estão dados; resta-nos a esperança de que pais e professores possam, pelo estudo e pelo diálogo, se inteirar sobre as novas perspectivas que existem. E a questão da convivência e como fazer com que ela seja ética na escola e fora dela, de uma vez por todas, ser repensada também em nossos cursos de licenciaturas.
Fonte: http://zip.net/bttJ4b
REFERÊNCIAS:
AVILÉS, J. M. (2013) Bullying: Guia para educadores. Campinas (SP): Mercado das Letras.
COWIE, H. “El problema de la violencia escolar: trabajando las relaciones”. In: Sanmartín, J. (Coord.) Violencia y escuela.. Valencia: Centro Reina Sofía para el estudio de la violencia. pp. 183-187, 2005.
CRAIG, K., BELL, D., & LESCHIED, A. (2011). Pre-service teachers’ knowledge and attitudes regarding school-based bullying. Canadian Journal of Education, 34(2), 21-33.
OLWEUS, D. Bullying at school: what we know and what we can do. Blackwell: Oxford, 1993.
SAVATER, F. O valor de educar. São Paulo: Planeta do Brasil, 2005.
TOGNETTA, L. R. P. (2010) Bullying e intervenção no Brasil: um problema ainda sem solução In: Actas do 8º. Congresso Nacional de Psicologia da Saúde: Saúde, Sexualidade e gênero. ISPA – Instituto Universitário. Lisboa, Portugal. Anais eletrônicos. ISBN 978-972-8400-97-2
TOGNETTA, L.R.P.; VINHA, T. Reconhecimento de situações de bullying por gestores brasileiros e as intervenções proporcionadas. In: LINARES, J. J. G. et al. Investigación en el ámbito escolar: un acercamiento multidimensional a las variables psicológicas y educacionales. Almeria/Espanha: Editorial GEU, p. 227-232, 2013.
TOGNETTA, L.R.P.; ROSÁRIO, P. Bullying: dimensões psicológicas no desenvolvimento moral. Revista Estudos em Avaliação Educacional, 24(56), 106-137, 2013.
YOON, J., BAUMAN, S., CHOI, T., & HUTCHINSON, A. S. (2011). How South Korean teachers handle an incident of school bullying. School Psychology International, 32(3), 312-329. doi: 10.1177/0143034311402311
Em uma dessas viagens que se faz por acaso e sem muita vontade, acompanhei meu pai até um povoado onde ele iria tratar de negócios. Enquanto ele resolvia seus interesses, fiquei na varanda da casa de seu sócio, sentado em uma daquelas cadeiras de madeira que deixam a coluna terrivelmente ereta. E tão logo sentei, saquei do bolso minha arma contra o tédio: palavras-cruzadas. É bom entretenimento que exercita a mente. E falando em mente, estava com a minha bem distante daquele local inerte, quando algo me arrastou para o não-mundo-das-palavras-cruzadas, o tal do mundo real: um homem com cerca de 35 anos, pele maltratada pelo sol, camisa do flamengo, “olhos de vidro” e algo mais que não estava ao alcance da minha percepção imediata.
Quando digo que tinha “olhos de vidro”, é a melhor qualidade que encontrei para adjetivar aquele olhar fixo que formava uma perpendicular à minha estrutura corpórea. Ficou parado, olhando por uns 5 minutos, mas meu desconforto me fez pensar que havia se passado 5 anos. Então, ele resolveu se mexer e foi quando pensei que voltaria de onde surgiu. Ingênuo engano. Como se tivesse sido convidado, sentou-se no pequeno muro de meio metro que fazia a fronteira da rua com a casa, que para mim tinha a conotação de uma fortaleza que ruiu. Mas antes de sentar-se, ele tratou de limpar cuidadosamente uma sujeira que eu não consegui enxergar. O olhar do moço se transformou; parecia um quadro bizantino com aquele típico olho que fita o infinito sem muita esperança.
Como se tivesse ouvido um chamado, saiu atônito para algum lugar que meus olhos não conseguiram acompanhar. Reconheço que senti alívio. Por quê? Ele não havia feito nada que atingisse minha integridade física ou moral. Por que reagi internamente daquela forma? Pouco me questionei no momento e logo voltei para o mundo perfeito das palavras-cruzadas.
Decorrido pouco tempo, meu pai saiu à porta, continuando sua extensa conversa como quem quisesse colocar ponto final na prosa. Mas da outra parte, ele recebia cada vez mais interrogações. Nesse mesmo momento, o homem de olhos cansados apareceu para limpar e sentar-se no mesmo local.
Dessa vez, sentou-se somente por alguns segundos e tornou a perder-se nas ruas. Então, meu pai questionou ao dono da casa quem era o indivíduo. A resposta veio com tom de tanto faz. “Ele já foi ‘normal’, mas quando era pequeno, a mãe fez uma ‘macumba’ pra matar o pai dele, por isso o menino bebeu tanto que ficou ‘doido’ assim”.
Sabe-se que existem ervas pouco estudadas cujas propriedades são desconhecidas, de modo que podem afetar o organismo humano de inúmeras formas. Ele teve a sorte de viver, pois afinal a bebida foi feita para matar. No entanto, por infelicidade, ficou com sequelas. O dono da casa continuou o relato, dizendo que ele estava “atacado” naquele dia e que era só falta de trabalho que o ocupasse.
A conversa acabou e seguimos viagem de volta para casa. No caminho, meu pai comentava algo sem muita importância, enquanto eu refletia sobre aquele homem. Uma criança havia sido vítima de um crime direcionado a outro. E eu, com meus pensamentos ridículos, acabara de matar essa criança adulta dentro de mim. Sim, terminei o serviço que a mãe dele havia começado, pois meu visível desconforto à presença daquele moço era o resultado do preconceito intrínseco à maioria das pessoas quando se trata de alguém com distúrbios ou doenças mentais. Ele não pediu para ser assim. Qual a vítima que pediu para ser vítima? Ainda que fosse vítima do acaso, da genética, das pressões sociais, da dor… ninguém pede para ser assim, visto como fora dos padrões.
Senti-me mal. Senti-me péssimo. Espero que minha reflexão, meu arrependimento e mudança de postura possam reviver aquele homem e tantas outras vítimas do descaso e preconceito. Além de repensar meus atos como ser humano, refiz minhas ideias como futuro profissional. Afinal, como ser bom profissional da saúde, trancafiado no meu mundo controlado com meus conhecimentos específicos e casos “rotineiros”? Agora que revi minhas ideias, posso atuar bem na minha profissão. Além disso, vou repassar essa simples experiência que mudou meu constructo para que outros mudem sua forma de pensar e agir. E, enfim, a saúde possa acontecer de forma plena, pois aquela criança gritou por ajuda. E vou jurar nunca negar socorro a ninguém.