Antes de nos atermos à principal questão deste texto, que é a crítica precoce, feita através do Dr. Simão Bacamarte, por Machado de Assis, no livro “O Alienista”, à construção e manutenção dos hospitais psiquiátricos, façamos um breve passeio pela história para entendermos a transformação da loucura em doença.
No final do século XVII, na França, começam a brotar idéias que formarão as bases de uma nova visão de mundo. Esta visão inovadora florescerá no século XVIII, que ficou conhecido como o “Século da Luzes”, época em que reinava a valorização do pensamento científico e concomitantemente emergia uma nova ordem econômica denominada mercantilismo. Foi neste cenário fervilhante que a loucura foi transformada em doença mental.
Segundo Descartes, um dos principais pensadores do Renascimento: “Não havia pensamento louco, mas sim um homem louco. Portanto o que distingue o homem do animal é a racionalidade. Loucos eram vistos como animais a serem domados.” Nasce então as instituições asilares, com o objetivo de colocar ordem, ditando padrões para disciplinar a sociedade, servindo desta forma ao interesse da classe social dominante. O mais interessante é o paradoxo que existe entre a criação de instituições que geravam aprisionamento em uma sociedade que gritava por “Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”
Esse pensamento racionalista possibilitou que a medicina deixasse de ser uma filosofia e se tornasse uma realidade social, uma ciência normativa que levou à invasão da medicina sobre a vida do homem, diagnosticando loucura e sanidade através de parâmetros pré-estabelecidos pela sociedade. A tendência intrínseca da ciência médica em determinar o processo saúde-doença com base na unicausalidade e na díade normal/patológico levou à medicalização da loucura, de forma que indivíduos anatomopatologicamente e funcionalmente normais eram considerados doentes por terem comportamento diferente daquele era considerado usual . A parcela de culpa da sociedade para o processo de “desrazão” dos pacientes também era desconsiderado.
No final do século XVIII, na França, surge Phillippe Pinel, considerado por muitos como o pai da psiquiatria. Com a psiquiatria científica, ele libertou das correntes os pacientes e instituiu uma nova ideologia ao tratamento desses sujeitos. No entanto foi após a Segunda Guerra Mundial que começou a surgir questionamentos em todo o mundo sobre o modelo hospitalocêntrico e o saber absoluto do psiquiatria frente ao sujeito em sofrimento.
Em nosso país, o modelo psiquiátrico que nasce então a partir de 1852, com a construção do primeiro hospital psiquiátrico, o Hospital D. Pedro II, é -segundo Paulo Amarante – um “sistema terapêutico baseado na hospitalização. Como este modelo pressupõe um paciente portador de um distúrbio que lhe rouba a razão, um insano, insensato, incapaz, irresponsável, o sistema hospitalar psiquiátrico se aproxima muito das instituições carcerárias, correcionais, penitenciárias. Portanto um sistema fundado na vigilância, no controle e na disciplina”.
No Brasil, iniciam-se as críticas às instituições psiquiátricas a partir da segunda metade do século XX, influenciadas por diversos movimentos reformistas e, principalmente por Franco Basaglia, psiquiatra italiano. Nasce em 1987, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, uma mobilização dos profissionais da saúde mental, dos pacientes e dos familiares de pacientes com transtornos mentais, buscando – além do fim das instituições manicomiais – novas estratégias de assistência e tratamento aos sujeitos em sofrimento psíquico.
Ao relacionarmos a data de nascimento do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial no Brasil com a data de publicação do livro “O Alienista”, impressionamo-nos com a sagacidade do autor ao discorrer sobre um assunto que seria abordado com ênfase apenas um século depois: a Reforma Psiquiátrica no Brasil e o saber absoluto do médico.
Machado de Assis levanta esses questionamentos através da figura do Dr. Simão Bacamarte, um psiquiatra embasado na doutrina positivista que ao voltar da Europa para sua cidade natal, a Vila de Itaguaí, passa a se dedicar ao estudo da fronteira entre a loucura e a razão e funda a Casa Verde, um hospício onde começa aglomerar todos os considerados desequilibrados mentais.
A princípio o protagonista internou pessoas com hábitos ou atitudes discutíveis, condenáveis, porém – com o passar do tempo – ele muda sua teoria e se baseia em parâmetros inversos para caracterizar a loucura. Desta forma, solta todos os recolhidos no hospício e interna agora os leais, justos e honestos, tendo como terapêutica a abolição das virtudes. Com o tempo, passa a considerá-los normais, solta-os e acaba aprisionando a si mesmo no hospício, por acabar concluindo que ele seria o único louco da cidade. Após sua internação, morre pouco meses depois.
Dentro deste contexto, propomos fazer um exame mental do protagonista do livro, Dr. Simão Bacamarte, o qual viveu os dois lados da moeda, ora como médico detentor do conhecimento científico, ora como paciente psiquiátrico. Para tanto usaremos trechos da obra em questão.
Exame do Estado Mental do Dr. Simão Bacamarte
1. Descrição Geral
A. Aparência:
“…a nobre e austera fisionomia daquele grande homem…”
“Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista.A cabeleira cobria-lha uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da ciência.Os pés, não delgados e femininos,não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto,eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão.”
B.Comportamento
“Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicos de primeira ordem, digeria com facilidade,dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista;estava assim apta para dar-lhes filhos robustos,sãos e inteligentes.”
“Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração.”
“ O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível…”
“…ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo”
“ …e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos.”
2.Humor e Afeto
“As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista.”
“…não ficou sequer consternado.O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro,liso,eterno,nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de botafogo…”
3.Sensório e Cognitivo
A. Consciência
“ O alienista caminhou para a varanda da frente…”
“Simão Bacarmate fez um sinal pedindo para falar…”
“Direi pouco,ou até não direi nada, se for preciso…”
B.Orientação
“…Simão Bacarmate achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral…”
“…Alta noite,seria hora e meia,acordo e não a vejo;levanto-me,vou ao quarto de vestir…”
C.Memória
“O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.
– Onze mortos e vinte e cinco feridos! Repetiu duas ou três vezes o alienista…”
“Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta…”
D.Atenção
“Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os olhos dele,empanados pela cogitação,subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro,cegos para a realidade exterior,videntes para os profundos trabalhos mentais.”
“Dona Evarista chamou pelo marido duas vezes,sem que ele lhe desse atenção…”
E. Juízo de Realidade
“A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí só insânia, insânia, e só insânia…”
“…e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades,e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto.”
Dentre as funções psíquicas possíveis de serem avaliadas, com base no livro, não foi encontrada nenhuma alteração capaz de enquadrar o protagonista em qualquer transtorno mental. Isso mostra o quanto é instável o conceito de normal e patológico, ou ainda, o quanto é difícil separar loucura e razão, já que o protagonista, mesmo mostrando equilíbrio das funções psíquicas, em dado momento do livro, foi classificado como louco.
Ao fazermos o exame mental de um psiquiatra doente mental, chegamos à conclusão de que a verdadeira necessidade de um sujeito em sofrimento psíquico não é a de ser classificado ou enquadrado em um conjuntos de nomes ou sintomas, e sim o direito a um ambiente em que ele não seja julgado pelo seu CID-10. Nesse sentido concordamos com Costa-Rosa que diz: “É necessário um processo de desmistificação do conceito de loucura para que as pessoas possam conviver com a experiência da loucura em suas diferentes formas de expressão sem intenção de moldá-las”, pois afinal “Só é considerado normal quem não foi devidamente observado” (Autor desconhecido).
Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.