Black Mirror é uma série antológica de ficção científica criada por Charlie Brooker, que explora um futuro próximo onde a natureza humana e a tecnologia de ponta entram em um perigoso conflito (NETFLIX, 2016). A série trata de temas pertinentes à contemporaneidade, a solidão humana e as novas maneiras de estabelecer relações no mundo das mídias sociais, como é o caso do episódio “Be Right Back”, em português “Volto Já”.
O episódio conta a história de Martha e Ash, um casal de apaixonados que decidem morar juntos numa casa do interior, onde os pais de Ash moraram por muito tempo. Um dia depois da mudança, ao devolver a van usada para transportar os pertences de ambos, Ash se envolve num acidente de carro fatal. No funeral, uma amiga de Martha recomenda um serviço novo que ajuda pessoas em luto a lidar melhor com a situação, criando um Ash “virtual” que se comunica por meio de informações e dados obtidos através de mídias sociais, e-mails de Ash em vida e tudo quanto havia gerado no mundo virtual até então. Ela não aceita bem a indicação da amiga, mas esta acaba por inscrevê-la no serviço – o que Martha só descobre quando recebe um e-mail do “novo” Ash. A partir daí, ela começa a ter vários embates pessoais e morais sobre manter ou não essa relação e a trama se desenvolve justamente nesse cenário de conflitos internos (CARVALHO, 2016).
Existem certos aspectos que serão analisados a partir do ponto de vista da cibercultura e da teoria do apego de John Bowlby e Mary Ainsworth, responsáveis por estudos voltados ao desenvolvimento infantil que reverberam em possíveis tendências comportamentais para a vida adulta. Faz-se necessário neste primeiro momento, a elucidação das bases que constituem esta análise em concomitante aplicação aos principais pontos analisados do episódio.
Para Pierre Lévy (2007), o gênero canônico da cibercultura é o mundo virtual, mas vai além, diz respeito a preferência da conexão em detrimento do isolamento, é mais precisamente a universalização da comunicação. São as possibilidades de se relacionar com qualquer pessoa de qualquer parte do mundo por intermédio da internet em ferramentas como celulares e computadores, nos mais diferentes métodos, seja por troca de e-mails ou por interação via redes sociais.
Existem aspectos claramente enfatizados no episódio da série que mostram o quão dependente Ash era da comunicação virtual. Até mesmo em momentos de fragilidade emocional ele se vê na necessidade de compartilhar tudo em suas redes sociais. Um exemplo claro desse fato é quando, ao entrar na casa de seus pais pela primeira vez depois de anos, se depara com uma foto de sua infância, que rapidamente o faz recordar das disfuncionalidades de sua família e de quando seu irmão e pai morreram, a reação de sua mãe foi esconder todas as fotos deles no sótão da casa na esperança de que suas dores fossem também abafadas. Mesmo sendo um fato doloroso, Ash prefere compartilhar a foto, divulgando apenas aspectos positivos, evitando o contato com seus conflitos e também de refletir profundamente sobre seus próprios sentimentos em relação ao que viveu naquele lugar.
A teoria do apego de Bowlby e Ainsworth se refere a estudos sobre o desenvolvimento socioemocional durante os primeiros anos de vida e o quão este pode ser influenciado pela maneira como os cuidadores primários tratam as crianças, além dos fatores genéticos, psicológicos e ambientais (DALBEM; DELLAGLIO, 2017). Para eles, existem quatro tipos de apego que são: o seguro, evitante, ambivalente e o desorganizado. Durante todo o episódio, Ash está sempre mergulhado em seu celular, que de alguma maneira poderia indicar comportamentos ligados ao apego evitante, onde há uma falta de interesse em aprofundar as relações, a intimidade gera desconforto e ele se refugia nas relações virtuais que podem ser em níveis superficiais. Martha por vezes fala da necessidade que sente de haver mais interação entre eles, mas Ash acaba por evitar esses momentos.
Para Bowlby (1989), as experiências precoces com o cuidador primário iniciam o que depois se generalizará nas expectativas sobre si mesmo, os outros e do mundo em geral, com implicações importantes na personalidade e nos modelos internos de funcionamento desse indivíduo, que são caracterizados pela habilidade de constituir representações mentais cada vez mais complexas. Cortina & Marrone (2003) afirmam que a teoria do apego contempla os processos normais de desenvolvimento e a psicopatologia humana, além de abordar os processos de informação para a compreensão dos mecanismos psicológicos utilizados na vivência de um trauma ou uma perda.
Como é o caso de Martha ao ser informada da morte de Ash. Porém, quando sua amiga a incentiva no uso da ferramenta online para “trazer de volta” seu marido, vê-se claramente que o tipo de apego estabelecido por ela com o Ash tanto real como o virtual, que é uma versão “materializada” dele, é o apego ambivalente, visto que de todas as formas ela busca ser aceita e também por maiores níveis de intimidade e receptividade. O que acaba por não encontrar nem naquela versão computadorizada e superficial de Ash ou mesmo no Ash real.
Para Barcelos (1993) ancorar-se no passado é a pedra angular de toda dependência afetiva. Martha não consegue se desvencilhar de todas as possibilidades de vida que teria ao lado de Ash e ao descobrir que está grávida dias após sua morte, se apega à esperança de que esse Ash “virtual” preencha todo seu vazio e dê sentido à sua vida, porém todas as suas esperanças são frustradas.
No fim, a dependência emocional está tão fortemente estabelecida, que ela não consegue de modo efetivo se desprender da esperança de um dia poder ter o verdadeiro Ash de volta. O que se nota em Martha é um apagamento do “eu”. Para fugir de suas próprias dores e sentimentos, ela faz como a mãe de Ash, resolve guardar a versão “materializada”, computadorizada dele no sótão da casa, como último recurso para entorpecer seus próprios temores.
REFERÊNCIAS:
BARCELOS, Carlos. Criando sua liberdade: Amor sem dependência. São Paulo: Editora Gente, 1993.
CARVALHO, Claudio. PlotSummary – Black Mirror: Be Right Back. 2016. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt2290780/plotsummary?ref_=tt_ov_pl>. Acesso em: 02 set. 2017.
CORTINA, M. & MARRONE, M. (2003) Attachment theory and the psychoanalytic process. London: WhurrPublishers.
DALBEM, Juliana Xavier; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco. Teoria do apego: Bases conceituais e desenvolvimento dos modelos internos de funcionamento. Arquivos Brasileiros de Psicologia,Rio Grande do Sul, v. 57, n. 1, p.01-13, 02 ago. 2017.
BOWLBY, J. Uma base segura: Aplicações clínicas da teoria do apego. 1 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2007. 264 p. Tradução de Carlos Irineu da Costa.
NETFLIX (Brasil) (Emp.). Black Mirror. 2017. Disponível em: <https://www.netflix.com/title/70264888>. Acessoem: 31 ago. 2017.