(En)Cena entrevista o psicólogo, sociólogo, professor e escritor Marlon Reikdal, comunicador nato que vem fazendo um trabalho extraordinário de divulgação da Psicologia para o cotidiano, enfatizando a importância do autodescobrimento como filosofia de vida, no intuito de que as pessoas vivam com mais consciência. Marlon vive atualmente em Londres e sua tônica de trabalho é o autodescobrimento, na intenção de criar uma comunidade engajada na transformação que se dá de dentro para fora. Como educador, opõe-se aos desencontros superficiais, às mudanças puramente comportamentais e à positividade tóxica. Sua abordagem é bem reflexiva e provocativa, com um estilo que nos tira do sossego e nos aponta que o autodescobrimento não é um simples mapeamento do que somos, para ele, o autodescobrimento transforma as pessoas.
Marlon Reikdal é formado pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Psicologia Analítica pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Sociólogo pela Middlesex University (Reino Unido). É autor do Programa “Vai pra dentro!”, disponível no YouTube e no Spotify, alcançando milhares de pessoas. Em seu site www.marlonreikdal.com.br, oferece também cursos sobre como lidar com os complexos.
Marlon Reikdal possui obras publicadas pela Editora Vozes: Em busca de si mesmo – o poder do autodescobrimento como filosofia; Qual é o seu legado?; Qual é o seu valor? e Qual a sua dor?
Fonte: Instagram – @marlonreikdal
(En)Cena – O que é o Programa “Vai pra dentro”? Qual foi o objetivo desse Programa?
Marlon Reikdal – O Programa “Vai pra dentro” foi uma iniciativa que eu tive para ajudar as pessoas a lidar com a pandemia. Naquela época, eu via os discursos das pessoas dizendo que a gente precisava se amar, que a gente precisa se unir, mas como vamos praticar o exercício do amor e da união se estamos sendo forçados a ficar em casa, isolados uns dos outros?
Eu acho que a COVID-19 nos obrigou a ir pra dentro pela necessidade de isolamento. Então, pensando sobre o que a sociedade estava vivendo, isolada, eu fui refletir o quanto era difícil viver sem as distrações do mundo; sem as relações que a gente estava acostumado e também a dificuldade em estar bem naquele momento, e tentei ajudar as pessoas nesse processo.
Entendi que o vírus estava fazendo um convite para “ficar dentro de casa”, ficar em sua própria companhia, e a ideia do Programa “Vai pra dentro” foi dar suporte psicológico para as pessoas, através da compreensão do processo de autodescobrimento.
(En)Cena – Vivemos em uma sociedade líquida, nos termos do Bauman, onde as relações sociais, econômicas e políticas são frágeis e maleáveis. Reina na sociedade a dissolução de laços duradouros, há uma transitoriedade das identidades, gerando conflitos entre ter e ser. Aí vem você falando da importância do autodescobrimento como filosofia de vida e da busca pelas nossas verdades. Você compreende a proposta do “Programa Vai pra dentro” como um movimento contrário a essa sociedade líquida?
Marlon Reikdal – Eu acredito que a denúncia que Bauman fez sobre a sociedade líquida representa um contraste com as relações tão arraigadas e rígidas que nós vivíamos antes, onde a identidade, o casamento, o gênero, a profissão eram questões fixas e inamovíveis. Depois nós fomos para esse movimento da sociedade líquida, onde tudo se tornou sem forma, efêmero, passageiro e volátil. Penso que precisamos caminhar para um meio-termo: nem tanta rigidez, nem tanta fluidez.
Vejo que a proposta de autodescobrimento nos ajuda a encontrar esse meio-termo. Ele faz um movimento contrário à rigidez, porque, ao nos conhecer melhor, percebemos que a nossa personalidade está em constante transformação e que as nossas percepções estão se desenvolvendo o tempo todo. Mas, ao mesmo tempo, há algo que precisamos valorizar e nos apegar: certos elementos de nossa identidade, o sentido da vida e a importância das relações.
Assim, o autodescobrimento me parece um meio-termo, porque ele nos ajuda a nos apoiar em algo que não é rígido, estanque e definido. Cada pessoa que vive o processo de autodescobrimento percebe o quanto é possível ser fluido – não no sentido de não ter nada para se segurar – não no sentido de perda de identidade, mas no sentido de abertura para questionamentos e transformações, entendendo que nossas bases podem ser flexíveis e estar em constante evolução.
(En)Cena – Quando falamos sobre a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, naturalmente, as pessoas referem a algo muito confuso e de difícil entendimento, principalmente pela profundidade que a teoria traz em si. Como foi possível tornar acessível ao público, de forma tão clara, os principais conceitos junguianos, sem perder a profundidade e importância que o tema requer?
Marlon Reikdal – Eu sempre critiquei os jungianos por fazerem palestras e escreverem textos que parecem direcionados apenas para quem já é da área, como se criassem um gueto que se alimenta desse conhecimento, mas que não consegue extrapolar esse círculo menor. Meu objetivo sempre foi compartilhar as teorias psicológicas, os estudos de Freud, de Jung e também os meus estudos de Sociologia de uma forma acessível ao cotidiano das pessoas.
Acredito que a Psicologia é muito mais do que uma teoria para fundamentar uma prática clínica. Ela é uma maneira de pensar a vida, de compreender o ser humano, e deve ter um alcance muito maior do que apenas a prática terapêutica. Por isso, meu desejo é que a Psicologia vá para o dia a dia das pessoas, ajudando-as a entender suas próprias vidas.
Talvez alguns psicólogos jungianos pensem que eu sou reducionista ou que simplifiquei demais a teoria, mas não estou preocupado com isso. Meu compromisso é divulgar a Psicologia para ajudar as pessoas a se conhecerem melhor. É importante lembrar que isso não substitui uma psicoterapia. Muitas pessoas vão precisar fazer terapia, e eu mesmo faço terapia, porque acredito que, ao conhecer a Psicologia e entender suas linhas gerais, a pessoa consegue se compreender melhor e realizar aquilo que chamamos de autoanálise. Isso torna o processo terapêutico ainda mais enriquecedor quando ela está em uma psicoterapia.
(En)Cena – A Psicologia analítica trabalha com a finalidade da busca da Individuação como um processo de encontro com o Si mesmo. E, nesse processo, a grande questão refere-se ao encontro com nossas sombras e a união dos opostos, principalmente das partes nossas que insistimos em negar. Em seu Programa “Vai pra dentro”, era visível o desespero dos participantes quando enxergavam seus lados sombrios e a pergunta que mais aparecia era como me livrar disso? Por que é tão difícil enxergar nossas sombras e integrá-las como parte de nós?
Marlon Reikdal – A nossa forma de pensar sobre quem somos e o que nos compõe ainda é muito influenciada pelo pensamento medieval, embora a gente viva em pleno século vinte e um. A lógica de pecado, de culpa, de medo e de inferno ainda está presente na mentalidade das pessoas, independentemente se elas vêm de famílias religiosas ou não.
Então, é muito difícil olhar para as nossas características e enxergar nossas sombras, sem esse julgamento de certo e errado e pensar que todas as energias e todas as forças dentro de nós podem ter uma manifestação saudável ou adoecida. O grande desafio é sair de um julgamento de bom ou mal, certo e errado, para pensar a natureza da energia que cada característica trás em si e qual o lugar dela no mundo e nas nossas relações.
A agressividade, por exemplo, pode ser uma manifestação extremamente positiva e necessária para a vida e o amor pode tomar traços patológicos em relações destrutivas. Então, precisamos fazer o exercício de sair do julgamento, sair da aparência, da imagem, da exterioridade, dos discursos sociais, das construções culturais, para enxergar a nossa totalidade. Isso é essencial para que a gente consiga se analisar com mais profundidade.
(En)Cena – Foi perceptível, em seu Programa “Vai pra dentro” e também nos seus cursos, a participação de um público formado, em sua maioria, por mulheres na meia-idade. A meia-idade é realmente o melhor momento de encontrar-se?
Marlon Reikdal – A meia-idade não é o melhor momento para encontrar-se. A meia-idade é o período em que nos sentimos obrigados a rever nossas escolhas para que a vida ganhe sentido e um novo colorido, como uma revisão de rota porque fomos conduzidos pela vida de forma inconsciente. Então, diria que o melhor momento para se encontrar é desde quando a gente nasce.
Na medida em que aprendemos a olhar para os nossos sentimentos, nossas necessidades, nossas dores, frustrações e desejos, vamos nos conhecendo melhor e entendendo melhor a forma como conduzimos a vida, para não sermos dragados por nossos medos, dificuldades e limitações. A gente só tem crise de meia-idade porque não aprendeu a nos conhecer melhor e a nos perceber desde a infância.
Por exemplo, quando uma criança de três anos, tem dificuldade de esperar e quebra um copo e a mãe diz: “você está com muita raiva”, “percebe que você tem dificuldade de esperar?”, “você vai ter que aprender isso”. Esse é um momento incrível de autodescobrimento.
Aquela criança não tem a menor noção de psicologia ou de quem ela é, e a mãe não precisa ser psicóloga para fazer isso, mas já começa a perceber traços da sua personalidade. Ela entende que há um desafio ali, e a criança começa a perceber que: o mundo não atende às suas necessidades do jeito que ela quer, no tempo que ela deseja. Certamente, ao reconhecer essas características e necessidades a tempo, olhará diferente para vida, mais consciente de si, mais engajada em suas relações, mais atenta ao seus desejos e possibilidades.
(En)Cena – Todo seu trabalho de comunicador é voltado para tornar a Psicologia mais acessível na vida cotidiana, levando as pessoas a viverem com mais consciência, e, mesmo você deixando claro sobre a importância da terapia, algumas pessoas resistem em buscar um processo terapêutico. Em sua opinião, o que isso revela?
Marlon Reikdal – A dificuldade de buscar uma psicoterapia é uma questão multifatorial que envolve vários aspectos que não aprendemos a considerar. Penso que a primeira questão tem a ver com uma lógica elitizada, onde a psicoterapia ficou relacionada como uma prática de acesso apenas às famílias abastadas, porque muitas vezes o valor é caro. Se olharmos a média do valor sugerido pelo conselho regional de psicologia, ela não é uma média acessível para a maioria das pessoas, embora haja muitos programas de clínica social.
Ao mesmo tempo, também existe muito desentendimento sobre o que é a psicoterapia. As pessoas acreditam que tem a ver com buscar um profissional que vá aconselhar, que se intrometa na sua vida, que diga o que você tem que fazer. Isso não é verdade.
Outro fator que me chama atenção é a falta de boa formação e da qualidade profissional de muitos psicólogos. Como em todas as áreas, temos bons profissionais e maus profissionais. Na psicologia, temos uma dificuldade grande de garantir uma formação de qualidade, porque o psicólogo é o seu próprio instrumento de trabalho.
A psicologia não faz parte das ciências exatas; ela está nas ciências humanas, e muitas intervenções dependem da forma como o profissional enxerga a vida. Quando alguém descreve um problema, posso fazer várias perguntas — talvez dez ou mais. Mas se outro psicólogo ouvir a mesma descrição, ele também pode fazer outras dez perguntas diferentes, pois somos influenciados pela nossa personalidade.
Um bom psicólogo está muito atento às suas próprias limitações e complexos, para que seus conteúdos pessoais não interfiram na prática profissional. E isso é muito difícil de fazer. Um bom profissional precisa de uma boa formação inicial, mas, depois disso, ainda há um longo percurso para se consolidar como tal; investindo na sua própria análise, fazendo supervisão, e desenvolvendo-se como ser humano.
(En)Cena – Marlon, para encerrar, gostaria de saber se após todo esse trabalho dos últimos anos (Programa no YouTube, no Spotify, Livros, Cursos, Grupos terapêuticos), o que mais podemos esperar? Quais os seus projetos futuros?
Marlon Reikdal – Agora tenho me dedicado especialmente a dois projetos: a criação de uma comunidade online onde as pessoas possam se encontrar, fazer grupos, aprender umas com as outras, estudar e cultivar seu processo de autodescobrimento, e um novo livro, mais robusto, sobre o ego, que acredito que será bem oportuno nesses dias onde todos falam de ego, combatem o ego, mas não sabem o que estão falando e quais os impactos disso.