Os X-Men surgiram nos quadrinhos da Marvel Comics em 1963, criados por Stan Lee e Jack Kirby, em um período marcado por tensões sociais nos Estados Unidos. O movimento pelos direitos civis, a luta contra a segregação racial e as disputas ideológicas da Guerra Fria criavam um cenário de conflito, no qual questões ligadas à diferença e à aceitação estavam no centro do debate público, nesse contexto, a figura dos mutantes foi apresentada como metáfora para grupos marginalizados.
Na narrativa, os mutantes são pessoas que nascem com o gene X, responsável por conferir habilidades especiais. Alguns desenvolvem poderes relacionados à mente, como telepatia e telecinese, enquanto outros possuem capacidades físicas ampliadas, como superforça, manipulação de energia ou transformações corporais. A origem desses poderes não é escolhida, tampouco pode ser controlada em muitos casos, o que torna os mutantes alvo de medo, preconceito e perseguição.
A história dos X-Men se organiza em torno da relação entre diferença e convivência social. Por um lado, os mutantes possuem potencial para proteger a humanidade de ameaças externas. Por outro, são considerados uma ameaça pela própria sociedade que buscam defender. Essa contradição aparece em discursos políticos dentro da trama, em manifestações de ódio, em leis discriminatórias e até em violência direta contra comunidades mutantes. A figura dos Sentinelas, robôs criados para caçar e eliminar mutantes, simboliza o esforço institucionalizado de controle e exclusão.
O grupo busca uma convivência pacífica, defendendo que humanos e mutantes podem compartilhar o mesmo espaço social. Em contrapartida, personagens como Magneto consideram impossível essa integração e propõem a luta pela supremacia mutante. Esse conflito revela não apenas estratégias diferentes de lidar com a rejeição social, mas também os dilemas de identidade que os mutantes enfrentam.
A relevância cultural dos X-Men se consolidou ao longo das décadas. Os quadrinhos foram adaptados para séries animadas, filmes e jogos, sempre carregando metáforas que dialogam com questões sociais contemporâneas. O preconceito sofrido pelos mutantes já foi lido como uma alusão ao racismo, à homofobia, à xenofobia e a outras formas de exclusão. A obra, portanto, extrapola o entretenimento e se torna um recurso de reflexão sobre como sociedades lidam com as diferenças.
Para compreender essa dinâmica, é útil recorrer ao pensamento de Erving Goffman em sua obra Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, em que o autor analisa como determinados atributos, quando socialmente classificados como negativos, passam a definir de maneira reduzida a identidade de um indivíduo. O estigma opera como um rótulo que deteriora a imagem social da pessoa, colocando-a em uma posição de desvantagem.
Goffman distingue entre a identidade social virtual e a identidade social real. A primeira diz respeito às expectativas e aos pressupostos que a sociedade projeta sobre o indivíduo. Já a segunda corresponde ao que ele de fato é, em sua complexidade. O estigma emerge quando há discrepância entre esses dois níveis: a sociedade enxerga apenas uma característica considerada indesejável e desconsidera as demais dimensões da pessoa.
No caso dos mutantes, ainda que alguns sejam cientistas, professores, amigos e familiares, suas identidades são reduzidas ao fato de serem mutantes. A marca biológica do gene X opera como estigma, transformando-os em sujeitos cuja presença desperta medo e rejeição. A identidade social virtual construída pela sociedade humana se limita a uma imagem de perigo, apagando suas realizações e suas singularidades.
Outro ponto discutido por Goffman diz respeito às estratégias de manejo do estigma. Indivíduos estigmatizados podem tentar ocultar suas marcas para se aproximar de uma convivência social mais estável. Entre os mutantes, isso é recorrente em personagens como Jean Grey ou Tempestade, que podem aparentar normalidade, tentam viver discretamente em certos contextos, evitando revelar seus poderes. Outros, porém, como Noturno ou Fera, cujas transformações corporais são visíveis, não conseguem se camuflar, o que os coloca em posição de exclusão constante.
Há também aqueles que optam por assumir sua identidade estigmatizada e ressignificá-la como o Magneto, que representa a radicalização da recusa em se submeter à visão estigmatizante. Para ele, ser mutante não é motivo de vergonha, mas sim de orgulho e reivindicação política. O Professor Xavier, embora busque a integração, também defende que a identidade mutante não deve ser escondida, mas reconhecida como legítima. Assim, os personagens encarnam diferentes formas de negociar a identidade deteriorada, seja pela ocultação, pela aceitação pacífica ou pela confrontação direta.
Garcia e Bastos (2021) destacam que as HQs se consolidaram como espaço de debate sobre representatividade e minorias sociais, incorporando narrativas de preconceito, diversidade e emancipação cultural. Os autores evidenciam como a metáfora mutante se conecta à realidade de grupos sociais marginalizados, demonstrando a importância das HQs para a reflexão crítica sobre preconceito e aceitação.
O estigma se manifesta quando a diferença é reduzida a uma marca depreciativa, a identidade social é tensionada pela discrepância entre o que o sujeito é e o que os outros acreditam que ele representa. A exclusão gera sofrimento, mas também mobiliza resistências, que podem assumir diferentes formas de luta por reconhecimento. Os mutantes, portanto, são metáforas da experiência de indivíduos e grupos que, por atributos incontroláveis ou por construções sociais, são transformados em “outros”. Assim, os X-Men são uma obra da ficção que ilustra processos sociais reais.
REFERÊNCIAS:
GARCIA, Yuri; BASTOS, Thiago Freitas. A representatividade das minorias sociais nas histórias em quadrinhos dos X-Men e sua importância para a sociedade. Revista lcanepa, v. 1, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2021.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.