O que me faz ser um bom Profissional?

Compartilhe este conteúdo:

“O que me faz ser um bom profissional?” Você já se questionou sobre isso?

 

Não é preciso trabalhar na área da saúde para observar o que as pessoas esperam dos profissionais que irão atendê-las. Basta sermos o “outro lado”, nos colocarmos no lugar do outro, para sabermos, sem nenhuma sombra de dúvidas, o que é ser atendido por um bom profissional.

 

 

Dois anos e alguns dias depois da graduação em psicologia foram o suficiente para eu ter a audácia de escrever sobre o que, nitidamente, as pessoas esperam de nós. Esta não é a primeira vez que menciono que antes de termos uma profissão somos seres-humanos que necessitam igualmente das mesmas coisas: alimentação, educação, lazer, saúde, bem estar. Portanto, temos o conhecimento natural da importância de tudo isso em nossas vidas. E por termos essa consciência é que, possivelmente, desenvolvemos esta paixão pelo o cuidar do outro.

Trabalho há um ano em uma Unidade Básica de Saúde e tenho observado que o que realmente cura e dá conforto aos meus pacientes é a maneira como eles são recebidos e a forma como os problemas deles são tratados, sejam esses problemas graves ou “simples”. Tal como diz Rubem Alves “o que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio”. Talvez o segredo não está nas técnicas, mas no acolhimento e atenção. Sentir-se acolhido.

 

“O que me faz ser um bom profissional?” Antes de tudo, aprenda a se questionar sobre isso. Foram os anos de estudos, teorias, leituras, trabalhos e provas intermináveis? O diploma e o registro no conselho? É sua convivência passiva com seus colegas de trabalho, o respeito aos demais profissionais? A forma como você atende o outro, como o escuta, como trata seu problema e suas aflições? É manter-se humano e centrado, apesar dos percalços e dos problemas pessoais? É sua remuneração? O status atribuído ao longo dos anos?

 

Eu arrisco dizer que é justamente isso. Isso é  toda a trama, é um imenso emaranhado de linhas que sustentam o profissional que você é. Qualquer que seja a falta dessas características acima, faz com que deixamos de ser um bom profissional e nos tornamos apenas mais um profissional. É como em uma daquelas provas em que se errar uma questão, anula uma certa, compreende? Um sustenta o outro. De nada adianta sua teoria, se na prática você não consegue exercer metade do que os livros e suas notas “10” te apresentaram. Não adianta você ser ótimo na prática, se você nem sequer sabe o nome daquele que está à sua frente, esperando por uma resposta.

 

Para chegar onde realmente deseja é preciso, muitas vezes, ir além de um diploma. Não é o diploma que te faz profissional, serão seus pacientes, serão aqueles que trabalham com você, serão todos que estão intimamente ligados ao seu trabalho.

Compartilhe este conteúdo:

O Óleo de Lorenzo: a família diante do Adoecimento

Compartilhe este conteúdo:

O menino Lorenzo levava uma vida tranquila e normal. Interagia com os pais, estudava, brincava, assim como todos os garotos de sua idade. Até os cinco anos seu desenvolvimento físico e cognitivo pareciam seguir normais. Até que, por volta dos seis anos, a criança começa apresentar uma disruptura de comportamento – social e físico -, tais como; dificuldades de se locomover e na fala. Após alguns exames e muitas observações médicas os pais de Lorenzo recebem a noticia de que a criança é portadora de ALD (Adrenoleucodistrofia), uma doença rara, degenerativa e que causava danos de ordem neurológica.

 

 

Segundo a literatura médica, a ALD é uma patologia genética, de caráter progressivo que acomete o cromossomo X. É transmitida por mulheres, afetando, assim, exclusivamente os homens. Dentre algumas formas da doença, podemos encontrar a forma neonatal, clássica e adulta. Na primeira, a doença manifesta-se logo nos primeiros anos de vida da criança, a expectativa de vida é de apenas cinco anos. Já na forma Clássica, considerada a mais severa, começa a se manifestar por volta do quarto ao décimo ano de vida.

 

 

A criança que desenvolve a doença a partir dos quatro anos de idade, geralmente, sofre uma série de complicações, como problemas de fala, demência, dificuldades de se locomover, perda de memória, audição, fala e visão. Na fase adulta, a doença é descoberta na adolescência, e é considerada uma forma leve da ALD. Segundo estudos, na forma adulta, o paciente pode viver algumas décadas com a doença. Os problemas mais comuns são; deterioração neurológica, impotência e incontinência urinária. Embora atinja, em sua maioria, o sexo masculino, há também algumas manifestações no sexo feminino, porém os sintomas são menos agressivos, geralmente apresentam paralisia nas pernas ou fraqueza nos músculos.

 

 

Todas essas informações hoje parecem  simples, claras e objetivas. Sabe-se a causa, os efeitos e o tratamento, embora não exista um tratamento definitivo, mas existem formas de estabilizar a doença e evitar que a enfermidade seja rapidamente fatal.

 

Para os pais de Lorenzo nada era claro. Era tudo muito novo, sem uma explicação concreta e o mais difícil: sem um tratamento.

Com o adoecimento de Lorenzo, toda a família passa por um processo de luto, justamente pela perda de um filho saudável. Micaela, a mãe, não aceita o diagnóstico, resistindo ao máximo  compreender sobre toda a situação que agora permeia o seio familiar. Já o senhor Augusto Odone, que também não aceita a condição de ver seu filho morrer aos poucos, começa uma luta interrupta atrás de tratamentos que possam reverter o caso ou amenizar o sofrimento de Lorenzo.

 

 

Após o diagnóstico e a posição da equipe médica, ao afirmar que a medicina não é uma ciência exata e que não se sabe se irão receber resultados precisos e decisivos, a estrutura familiar sofre mais um abalo. De um lado temos uma mãe desnorteada, sem esperança e que se recusa a aceitar que o filho possui uma doença grave, do outro lado temos um pai que não aceita a posição dos médicos e nem da ciência. Lorenzo não adoeceu sozinho, sua família também adoeceu com ele.

A Família é um grupo organizado, onde cada pessoa tem seu um papel estabelecido. No momento em que um dos componentes desse grupo adoece, todos os outros que pertencem a esse mesmo grupo também adoecem, portanto, ocorre uma desestruturação familiar, onde os papéis desses familiares terão de ser reorganizados. Andrade, Lustosa e Melo (2009) trazem como exemplo dessa reorganização, uma família onde o Pai adoece, ou seja, “o homem da casa”, com esse familiar doente, quem passa a ter papel de líder é a Mãe, portanto, os encargos e responsabilidades da casa se voltam todos, praticamente, para essa mulher. Agora ela é uma mãe solitária, sem o apoio do seu cônjuge.

 

Após o adoecimento de um ente querido, os familiares apresentam necessidades específicas que devem ser acompanhadas e apoiadas por uma equipe especializada. É comum apresentarem frequências elevadas de estresse, distúrbios do humor e ansiedade durante o conhecimento da doença e a internação desse ente, podendo, em muitos casos, persistirem após a morte do paciente (Soares, 2007).

Segundo Cirqueira e Rodrigues (s/d) o momento em que a família descobre a doença da criança é considerado como uma fase de maior desespero, pois não sabem sobre a doença, suas consequências, gravidade e nem entendem sobre o tratamento e as implicações que terão no dia-a-dia da criança e da própria família. Permanece um sentimento de inutilidade e/ou de incapacidade, não sabem se poderão confortar a criança ou se terão condições de ajudá-la durante todo esse processo.

É importante o acompanhamento psicológico da família do paciente, uma vez que, durante esse processo de adoecimento e internação, os familiares exercem papel fundamental na vida do daquele familiar doente, pois as suas reações diante de toda essa situação também influencia nas reações do paciente (Andrade, Lustosa e Melo, 2009).

 

 

Os familiares merecem um cuidado especial, desde o instante da comunicação do diagnóstico, uma vez que esse momento tem um enorme impacto sobre eles, que veem seu mundo desabar após a descoberta de que uma doença potencialmente fatal atingiu um dos seus membros. Isso faz com que, em muitas circunstâncias, suas necessidades psicológicas excedam as do paciente e, dependendo da intensidade das reações emocionais desencadeadas, a ansiedade familiar torna-se um dos aspectos de mais difícil manejo. (Adrande, Lustosa e Melo, 2009. apud Oliveira, Voltarelli, Santos e Mastropietro, 2005).

 

Segundo Barreto e Amorim (s/d) a descoberta de uma doença desencadeia uma série de sentimentos, que variam de acordo com o grau de conhecimento e informações sobre a mesma, tanto para a pessoa que adoeceu quanto para sua família, além disso, as consequências de um tratamento demorado também influenciam nos sentimentos daqueles que estão envolvidos intimamente com a sujeito doente.

 

 

Portanto, é cada vez mais importante que os profissionais da área (equipe de médicos e psicólogos) acompanhem os familiares desde o momento da descoberta da doença e durante todo o processo de internação, reabilitação e/ou luto. Ajudando-os a extravasarem suas aflições e angustias, contribuindo para uma melhor compreensão da situação que estão presenciando.

Como mencionado na análise do filme 50%, o acompanhamento de um psicólogo hospitalar auxilia não só o paciente no enfrentamento de sua enfermidade como também auxilia os familiares desse paciente e presta assistência a equipe médica. “A medicina está voltada para curar a patologia, enquanto a psicologia hospitalar busca maneiras de ressignificar a posição do individuo frente à doença” (Rocha, 2014).

 

 

A falta de informação é uma das principais causas do desespero da família do paciente, sem uma resposta ou algo que possa diminuir as dúvidas dos familiares acerca da doença que atinge um ente querido, a aflição e angustia contribuem para um desequilíbrio na estrutura desse grupo.

As dificuldades da ciência em diagnosticar a doença de Lorenzo, a postura rígida e fria do médico ao dar o diagnóstico,  com sua resposta direta ao afirmar que não havia nenhuma possibilidade de cura para Lorenzo, traz a tona as discussões acerca da “arrogância” da ciência frente ao sofrimento humano.

 

 

Muitos artigos relacionados ao filme O Óleo de Lorenzo trazem como ponto principal de discussão justamente esse termo: Arrogância Cientifica. Embora a presente análise não traz como objetivo principal a discussão dessa temática, é importante ressaltar a importância de se observar todas as reflexões que o filme nos instiga a fazer.

 

 

Como dito, a falta de informação e de atenção por parte da equipe médica responsável por Lorenzo, faz com que a família Odone’s atravesse uma linha tênue entre o desespero e a esperança de ver a doença do filho ao menos estabilizada. É então que o filme nos apresenta um tipo de desafio e de luta entre a Ciência, o saber mítico constituído x o Saber popular e a intuição.

 

 

Os pais de Lorenzo, com as informações obtidas através do médicos, e através dos inúmeros livros que passaram a ler, buscam a compreensão dessa doença rara que agora faz parte de suas vidas. Eles buscam principalmente compreender o fenômeno que interfere no processo bioquímico que causa a degeneração neurológica da criança. Com essa atitude os pais de Lorenzo são vistos como inimigos pelos representantes da ciência, pois deixam de se curvarem ao diagnóstico e passam a enfrentar diretamente a natureza, controlando, através de um óleo (mas especificamente uma mistura de óleo/azeite de oliva e colza) a, até então, incontrolável Licodistrofia.

 

 

A produção “O Óleo de Lorenzo” exibe a arrogância, dos guardiões do saber científico que não permitem concorrência, conduzindo o espectador a uma profunda reflexão acerca da contradição entre o saber científico acumulado pela academia e o saber não reconhecido no ambiente acadêmico (MARQUES, s/d).

Quando o óleo começa a apresentar os resultados positivos, estabilizando a doença de Lorenzo, os pais têm suas esperanças renovadas. Lorenzo tem melhoras significativas e junto com ele toda a família também estabiliza o sofrimento e a estrutura familiar é reconstruída.

O filme O óleo de Lorenzo, é uma história real, e que nos intiga a pensar sobre questões éticas profissionais e a importância do apoio familiar durante o processo de adoecimento e na recuperação de cura de um dos membros da família.

 

 

Lorenzo Odone faleceu aos 30 anos de idade, vinte anos a mais do que as especulações médicas, após complicações devido a uma pneumonia. Segundo seu pai, Augusto Odone, ele não havia recuperado a fala nem os movimentos, mas estava presente e não sofria, não reclamava de dores. Os pais de Lorenzo permanceram esperançosos até o fim.

 

Referências:  

AMORIM, R.C; BARRETO, T.S. A Familia Frente ao Adoecer e ao Tratamento  de um Familiar com Câncer. Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.facenf.uerj.br/v18n3/v18n3a22.pdf

CIRQUEIRA, R. M; RODRIGUES, J.  S. M. A Família diante  da Criança Terminal: Uma revisão da literatura. Rev. Rede de Cuidados em Saúde. s/d. Disponível em: http://publicacoes.unigranrio.br/index.php/rcs/article/viewFile/927/635

MENDES, J. A; LUSTOSA, M. A,  e  ANDRADE, M. C. M. Paciente terminal, família e equipe de saúde. Rev. SBPH [online]. 2009, vol.12, n.1, pp. 151-173. ISSN 1516-0858.

MARQUES, E. L. A Arrogância Ciêntifica no Filme: O Óleo de Lorenzo. http://www.webartigos.com/artigos/a-arrogancia-cientifica-no-filme-039-039-o-oleo-de-lorenzo-039-039/26711/

ROCHA, A. C. O. 50% – Um Equilibrio Entre a Vida e a Doença. 2014. Disponível em: http://ulbra-to.br/encena/2014/07/28/50-Um-equilibrio-entre-a-Vida-e-a-Doenca

Saiba mais sobre a Adrenoleucodistrofia: http://www.saudemedicina.com/adrenoleucodistrofia/

 

Trailer:

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

O ÓLEO DE LORENZO

Direção: George Miller
Elenco: Nick Nolte, Suzan Saradon, Peter Ustinov,
Gênero: Drama
Nacionalidade:EUA
Ano de Lançamento:1993

Compartilhe este conteúdo:

O Homem Duplicado: modernidade x perda de identidade

Compartilhe este conteúdo:

 

Certamente você já assistiu muitos filmes que são adaptações de grandes obras literárias, isso porque essa prática é muito comum dentro do cenário cinematográfico, principalmente quando se tratam de obras que ganharam grandes destaques e foram, de certa forma, ovacionadas por aqueles que as leram.

No entanto, é comum, também, que as pessoas façam comparações entre o livro e a adaptação cinematográfica. Raramente as adaptações atingem as expectativas ou a mesma emoção que os livros provocaram. Não podemos nos esquecer que se trata de uma adaptação, como já mencionado, isso implica que não será fielmente a tradução do livro, que terá cortes e algumas mudanças, o que, ainda assim, não muda o assunto do livro ou o seu sentido.

Dito isto, essa análise pretende traçar um paralelo entre livro e filme, juntamente com algumas considerações sob o ponto de vista da psicologia. A obra em questão trata-se do romance de José Saramago, O Homem Duplicado, escrita em 2002  e adaptada para o cinema em 2013, com direção de Denis Villeneuve.

José de Sousa Saramago (1922-2010) foi um escritor, mundialmente conhecido, romancista e poeta português. Publicou diversos romances e em 1998 foi galardoado com o Nobel de Literatura. Algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema, dando ainda mais destaque para seu grande talento, dentre essas obras temos: Ensaio Sobre a Cegueira (2008) dirigido por Fernando Meirelles, Embargo (2010) com direção de Antônio Ferreira e o mais recente O Homem Duplicado (2013) sob a direção de Denis Villeneuve.

Segundo Alves (s/d) os inúmeros romances publicados por José Saramago podem ser divididos em dois grupos: os de temática histórica (aqueles que misturam personalidades e lugares reais do passado com fatos e personagens ficcionais) como é o caso de Memorial do Convento (1982) e os de temática universal (aqueles em que entra os problemas da contemporaneidade, individualismo, perda da identidade, e todas ocorrem em uma grande metrópole) este é o caso de Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e o Homem Duplicado (2002).

Para alguns estudiosos, Saramago trazia em seus romances descrições bem detalhadas de seus personagens, fazendo com que suas estruturas fossem trabalhadas de forma profunda e não somente superficialmente.  Sobre isso Marilise Vaz Bridi (Bridi, 2005, apud Alves, s/d) ressalta que:

(…) o escritor (José Saramago) elabora uma pertinente crítica aos modelos sociais convencionais. Essa inquietante postura ideológica do autor lusitano é marcada pela crítica aos excessos da contemporaneidade numa construção narrativa fabular (Bridi, 2005, p.1)

É dentro deste conjunto de obras com temática universal que, também, encontramos O Homem Duplicado, que aborda principalmente a perda de identidade de um indivíduo.

Adam (Jake Gyllenhall) é um professor de história, que leva uma vida monótona. Repete todos os dias os mesmos comportamentos. Nada é diferente, desde o assunto trabalhado em sala de aula até o momento em que vai dormir, ao lado de sua namorada Mary (Mélanie Laurent). É tudo automático e preparado, o que parece ser reflexo da modernidade. Institucionalizado pela sua rotina, programado e mecânico, desanimado, solitário e desmotivado.

Em um dia comum aos outros, Adam recebe de um colega de trabalho uma indicação de filme. Ainda receoso, ou não querendo curvar-se a quebra de rotina, Adam decide aceitar a indicação do colega. Durante a sessão, algo lhe chama a atenção. Um dos atores coadjuvantes do filme é igual a ele. Praticamente idêntico. O mundo de Adam começa, agora, a girar de forma contrária. Tudo está desorganizado, em conflito. Quem seria aquele sósia? Tão igual e desconhecido? Adam, que antes vivia escravo de uma rotina sem grandes surpresas -ou nenhuma-, começa uma busca incansável para saber a identidade daquele homem igual a ele.

Anthony é o outro homem – aquele que parece um reflexo vivo de Adam – é ator, casado e sua esposa, Helen (Sarah Gadon), está grávida de 7 meses. E que também, ao ser procurado por Adam, começa a entrar num mundo conflituoso e desesperador.

Embora semelhantes fisicamente, Adam e Anthony possuem gritantes diferenças comportamentais e psicológicas. São iguais e diferentes ao mesmo tempo, o que faz despertar em ambos a vontade de um viver a vida do outro, principalmente em tratando de relacionamentos extra-conjugais, o desejo por outras mulheres.

O filme não tem guinadas ou impulsos que deem uma empolgação a mais no telespectador, por vezes ele parece até mesmo se arrastar pelo o roteiro. É como se houvessem detalhes a esmo, sem muita importância. A exemplo disso tem-se a aranha no começo do filme e não encontramos nada, durante a trama, que explique essa aparição. Já o livro, trabalha mais detalhadamente a vida de Adam, no que se refere ao seu cotidiano, minuciosamente repetitivo. Levantando questões até mesmo laborais: toda essa vida monótona seria por conta do seu trabalho desmotivador?

Veja: no livro, Tertuliano (Adam) está vivendo sob um conflito entre sua vida e sua profissão. O narrador nos apresenta um indivíduo que levanta diversas críticas à todas as coisas que lhe cercam: vida solitária, monotonia, o próprio nome, e por fim o trabalho.

Desse mal, na suposição de que realmente o seja, todos nos queixamos, também eu quereria que me conhecessem como um gênio (…) em lugar do medíocre e resignado professor de um estabelecimento de ensino secundário que não terei outro remédio que continuar a ser, Não gosto de mim mesmo, provavelmente é esse o problema. (Saramago, 2012-p.14)

Tertuliano é um personagem mais carregado de falta de coragem, de iniciativa, para mudar o rumo da própria vida, embora cheio de pesares, recusa-se a abandonar a causa de seus sofrimentos, continuando, assim, com sua vida pacata.  Com a indicação de um filme, feita pelo companheiro de trabalho, ele resolve se refugiar, outra vez, na sua rotina. É daí, que tudo se transforma.

Existe uma diferença importante nos inícios de cada história – livro e filme- enquanto Tertuliano é um professor, casado -casamento esse que está em ruínas, lotado de frustrações e crises-, tem um relacionamento extra-conjugal com uma mulher mais jovem -que o mantém devido a insistência da jovem, e não por vontade própria-, não faz amizades, mantém-se isolado a maior parte do tempo e não interage com os colegas de trabalho.  Já Adam, personagem baseado em Tertuliano, é, de acordo com o que percebemos, apenas um professor, com uma vida monótona, que vive ao lado da bela namorada -embora também apresente alguns indícios de desafetos, pouco convívio, falta de diálogo-, o que encontramos em comum entre eles é o fato de isolarem-se e manterem-se submissos à monotonia.

Ao menos foi essa a impressão que pude ter de uma mesma história. No entanto, o filme nos toma a atenção novamente quando somos, de fato, apresentados ao sósia, ou suposto sósia. Antony apresenta características físicas semelhantes a Adam, mas as comportamentais, psicológicas e sociais são completamente o oposto. O que me fez recordar, em alguns aspectos, Tertuliano; Antony vive em um casamento que por algum motivo sofreu uma ruptura, uma quebra de confiança, e que agora marido e mulher tentam retomar suas vidas. Antony também demonstra ser um sonhador e conquistador.

Algumas cenas do filme nos deixam com um ponto de interrogação enorme pairando sobre a cabeça, porque algumas vezes recebemos informações que nos faz pensar que, de fato, existe outro Adam, e por outro lado, devido alguns diálogos, temos a nítida impressão que tudo não passa de uma segunda identidade, de uma realidade inventada por Adam, para fugir da vida real, da mesmice, do tédio que ela é. E isso é um dos pontos positivos do filme, pois o diretor consegue nos deixar tão confusos, perdidos e inquietos quanto o próprio Adam.

Mas o que realmente a história desses “dois” – entre aspas porque o filme é subjetivo, levantando questões que nos fazem mudar de ideia diversas vezes: é imaginação, é real- quer nos passar? Qual a reação intenção do autor?

 

Como dito no início desta análise, O Homem Duplicado traz uma reflexão acerca da influência da contemporaneidade na vida das pessoas e com isso a perda da identidade. Sobre isso, precisa-se saber: O termo identidade vem do latim Identitas. Trata-se de um conjunto de características e traços próprios que um indivíduo ou uma comunidade possuem. Tais características diferem o sujeito perante os demais. Além disso Identidade também é a consciência que um indivíduo tem de si mesmo e que o torna diferente das demais ou seja é autoconsciência. Sobre isso Vigotski diz que é devido ao fato do homem ter consciência sobre si mesmo como indivíduo, de suas possibilidades, capacidades e limites, também abre espaço para que ele compreenda a universalidade do gênero humano. Sobre identidade, Silva (2009) ressalta que no processo de constituição da identidade, os papéis que o indivíduo assume ao longo de sua vida fazem parte de sua construção, partindo de uma identidade pressuposta (o que o outro ou a própria pessoa idealizava em relação ao desempenho daquele papel), a vivida e a que será vivida enquanto projeto de vida.

É daí, então, que podemos levantar questões importantes acerca dos acontecimentos ao longo da trama: Adam exerce um comodismo e conduz uma vida sem grandes excitações, mudanças e novidades, se arrasta pelos os dias e não procura formas de sair desse marasmo. Antony é atleta, conquistador, eufórico, busca sempre formas de mudar a rotina, transparecer felicidade e euforia. Ambos têm mulheres lindas, embora levam vidas conjugais diferentes, como em todas as outras áreas da vida. A proposta, entrelinhas, era de um viver a vida do outro, uma troca, um alívio, uma mudança, experimentação.

Mas e se, na verdade, Antony fosse o segundo mundo de Adam? Uma criação, para satisfazer e alcançar a vida que realmente ele sempre desejou, mas lutou contra esse desejo? Quem é Adam de verdade?

Não se trata apenas de saber quem é, ou que significa para o mundo, O Homem Duplicado traz em seu roteiro a importância de descobrir sobre o mundo à sua volta, o outro lado da moeda, o famoso “sair do sofá”, parar de ver a vida passar pela janela. Vivemos em uma modernidade narcisista. Uma sociedade individualista onde pregamos a política de olharmos somente para o próprio nariz; defender nossas opiniões, crenças, esquivando-se sempre que pode de indivíduos que estão em desacordo com tais opiniões e crenças, estão do outro lado do nosso terreno.

A nossa reação diante daquele que é diferente de nós reflete muito sobre quem realmente somos. E quando estamos de frente a alguém que pensa da mesma maneira como nós? Reagimos diferentes ou não damos tanta importância assim, não nos afeta, não nós causa inquietação? Como já mencionamos; a história trata-se, também, da vontade imensa de mudar a situação, transformar a vida no que deseja mas ter medo de ir atrás de soluções capazes de fazer com que essas mudanças ocorram. É mais difícil lidar com o comodismo ou com o diferente?

 

 

O desfecho do filme traz ainda mais situações conflitantes para aqueles que o assiste, deixando uma espécie de lacuna que o diretor não fez questão de completar. Mas essa é uma das características desse filme denso; existem situações em que não teremos nenhuma resposta do porquê delas terem ocorrido. Assim como existem cenas que parecem nos pregar uma peça e nos deixar perdidos sobre a realidade da trama. Volto a falar, é sufocante, além das metáforas que o autor usa com frequência e que aumentam nossas incertezas em relação ao que está, de fato, acontecendo. Particularmente preferi abandonar as metáforas e buscar enxergar o óbvio, às vezes, o óbvio nos engana também. “O caos é uma ordem por decifrar” (José Saramago, 2002).

 

FICHA TÉCNICA

O HOMEM DUPLICADO

Título Original: Enemy
Direção: Denis Villeneuve
Duração: 90 minutos
Música composta por: Daniel Bensi, Saunder Jurriaans
Ano: 2014

Inspirado na obra homônima de José Saramago

Compartilhe este conteúdo:

“50%”: um equilíbrio entre a Vida e a Doença

Compartilhe este conteúdo:

Quando se fala muito de um determinado assunto e quando a arte investe pesado em um tema, sendo ele abordado diversas vezes, de diversas maneiras e encarados sob perspectivas diferentes, o público costuma taxá-los de clichê cinematográfico, ou rotular como “moda”. O que não parece muito correto, uma vez que por mais batido que o tema seja sempre há algo a mais para abordar, observar e absorver.

Entre esses assuntos, tem-se abordado com freqüência sobre pacientes terminais, mais especificamente com câncer. Não é algo inovador retratar a história de pessoas que de repente têm suas vidas transformadas por causa da descoberta de uma doença. Como exemplos clássicos temos: Um Amor Pra Recordar (2002), Antes de Partir (2007), Uma Prova de Amor(2009), Pronta Para Amar (2011), Antes de Morrer (2012) e o mais recente e que está atingindo um enorme sucesso A Culpa é das Estrelas (2014).

A temática é a mesma. O drama, a tristeza de estar de frente a certeza do seu próprio fim, todas as aflições, angústias e o luto antecipado, permeiam todas essas histórias, mas cada uma traz uma essência diferente; uma característica que difere das demais e é justamente por isso que não devemos colocá-las todos em uma caixa e falar como se fossem uma única história.

Considero que uma das melhores formas de tratar um assunto é procurar maneiras “leves” (se assim posso dizer) e que faça o público prender-se não como se tivessem chumbos nos pés, mas como se quisessem, de alguma forma, ajudar o personagem no que for preciso, como se fizessem parte da trama. O filme aqui analisado tem essa vantagem, ele não é envolto somente de um drama pesado, não é daqueles que já traz no título o amargo do tema que será abordado, nem mesmo nos faz pensar que será outro clichê, outro “chororô”.

50%, é um filme baseado em fatos reais, dirigido por Jonathan Levine e estrelado por Joseph Gordon-Levitt (500 Dias com Ela) e Seth Rogen (Ligeiramente Grávidos), segue o padrão de filme triste mas não apelativo. Embora tenha pecado no humor tachado, talvez pelo fato de Seth Rogen ser desses atores que já possui rosto de comédia, ou por causa de nos negarmos a aceitar que o amigo usa o câncer do outro para se dar bem nas paqueras. Ou no final tudo se encaixa perfeitamente e então compreendemos o porquê do humor tachado, o porquê das válvulas de escape do personagem cômico dessa trama.

Tudo aquilo que fazemos, tudo que apostamos, todos os campos da vida, há exatamente 50% de chance de dar certo e 50% de dar errado. É como se fosse uma teoria de equilíbrio. E quando recebemos a noticia que estamos com 50% de chance de sobreviver? O que pensar? É um número ruim? Podemos enlouquecer? ou encarar como “não é tão mal assim, é a metade!” ?

Adan (Joseph Gordon-Levitt) é um jovem adulto de 27 anos de idade, segue uma vida saudável (não fuma, não bebe e pratica exercícios diariamente), trabalha em uma rádio e segue uma rotina bem controlada e prevenida. Possui um relacionamento um pouco questionável; uma namorada que parece não estar, inteiramente, em um relacionamento. Seu melhor amigo, Kyle (Seth Rogen)  é parte cômica do filme, porém não é do tipo de amigo que o força a ter uma vida promíscua, o aceita como é e os dois seguem juntos em uma amizade realmente bonita.

A reviravolta do filme começa junto com as constantes dores nas costas que Adan está sentindo, o que faz procurar um médico. Após alguns exames e uma consulta “técnica”, eu diria, Adan recebe o diagnóstico de que tem um tumor na coluna.

“Consulta Técnica”. Usaremos esse termo para explicar o porquê de escolher este filme para analisar. Ao ser recebido pelo o médico, Adan, apreensivo por respostas, é simplesmente ignorado. O médico fala com um gravador, passa todas as informações contidas nos exames realizados por Adan, para aquele aparelho, balbucia uma infinita quantidade de termos técnicos e somente depois do paciente perguntar algo é que o profissional dá atenção a ele. Não muita, isto porque, Adan ao questionar sobre sua situação, o médico outra vez diz inúmeros nomes, termos desconhecidos pelo paciente, o que aumenta ainda mais o desespero do jovem. O desconforto aumenta à medida que o médico não direciona o olhar para o paciente, e finalmente resolve  dizer: Você tem um tipo de tumor. Dito isto, Adan permanece em estado de choque, tudo que o médico agora começa a explicar novamente vai ficando distante. “Vou morrer”.

Como um profissional deveria se portar ao dar uma noticia tão delicada quanto esta? Até onde vai nossa consideração pelo sofrimento do outro? E como dizer isso a ele? O impacto de receber uma noticia como esta pode influenciar até que ponto na situação atual do paciente? Durante essa cena, em específico, é que devemos nos perguntar: estamos lidando com a doença ou com o paciente que tem a doença?

Adan é aconselhado a procurar por apoio psicológico, para obter algumas informações e para que compreenda sua situação.

Katherine (Anna Kendrick) é uma jovem terapeuta que possui pouca experiência, e que também enfrenta dificuldade em desenvolver uma consulta que possa ajudar Adan no seu processo de enfrentamento da doença. Adan também a deixa um pouco insegura, quando questiona a idade ou o número de pacientes que já passaram por ela, outras questões se seguem e que prejudica um pouco o andamento da terapia.

É, então, que conhecemos a Psicologia Hospitalar.

Em 1818 foi fundado o Hospital  McLean, em Massachusetts, esta instituição possibilitou a formação de uma equipe multiprofissional, composta por: patologistas, fisiologistas, bioquímicos e psicólogos. Sendo assim, a primeira insitituição a possibilitar a inserseção de psicólogos no âmbito hospitalar. Tal processo se deu pela iniciativa dos profissionais envolvidos, pela demanda da população e pelas próprias instituições.

Vale ressaltar, no entanto, que o termo Psicologia Hospitalar é usado somente no Brasil, para designar o trabalho de psicólogos em hospitais. Não há precedentes em outros países. O movimento para demarcar “psicologia hospitalar” como uma especialidade surgiu a partir do final da década de oitenta, se concretizando em dezembro de 2000, quando o Conselho Federal de Psicologia promulgou a Resolução nº 014.

São tarefas atribuídas ao psicólogo especialista em Psicologia Hospitalar, de acordo com o CFP (2001); 1) atuar em instituições de saúde de nível secundário ou terciário; 2) atuar em instituições de ensino superior ou centros de estudo e de pesquisa voltado para o aperfeiçoamento de profissionais ligados à sua área de atuação; 3) atender a pacientes, familiares, comunidade, equipe, e instituição visando o bem estar físico e mental do paciente; 4) atender a pacientes clínicos ou cirúrgicos, nas diferentes especialidades médicas; 5) realizar avaliação e acompanhamento em diferentes níveis do tratamento para promover e ou recuperar saúde física e mental do paciente; e 6) intervir quando necessário na relação do paciente com a equipe, a família, os demais pacientes, a doença e a hospitalização (ROSA, 2005)

Um psicólogo hospitalar tem como função principal ser um suporte para o paciente, para ajudá-lo no processo de enfrentamento da doença, as angústias, aflições e duvidas acerca de tudo que está acontecendo. O paciente encontra-se fragilizado, assustado com sua situação, o intuito do psicólogo hospitalar é escutar, acolher o individuo em seu sofrimento, nas dificuldades que cercam essa fase, auxiliando o paciente durante o processo de adoecimento, visando à minimização do sofrimento causado pela descoberta da doença, o tratamento e a hospitalização. Além de tudo o psicólogo hospitalar também auxilia os familiares do paciente e presta assistência a equipe médica. A medicina está voltada para curar a patologia, enquanto a psicologia hospitalar busca maneiras de ressignificar a posição do individuo frente à doença.

Comumente, o processo de adoecimento traz em seu bojo uma desorganização da sua vida, de modo que provoca várias transformações em sua subjetividade, ou seja, o sujeito sai do conforto de seu lar e se depara com a hospitalização, muda seus hábitos, perde sua identidade e, muitas vezes, acaba virando um número de prontuário (PSICOLOGADO).

Infelizmente o filme não trabalhou muito a questão: paciente e terapeuta. O foco principal estava ligado aos relacionamentos de Adan com as pessoas à sua volta e como sua doença afetou seus relacionamentos, isso porquê quando uma pessoa adoece todos àqueles que fazem parte do seu convívio social também passam por um “processo” de desequilíbrio. Mas não por menos devemos deixar de abordar esse assunto: O cuidar do outro.

Tal como diz Willian Osler (1849 – 1919), tão importante quanto conhecer a doença que o homem tem, é conhecer o homem que tem a doença.

50% aborda as relações afetivas antes e após um processo de adoecimento e hospitalização. A ética profissional diante de um momento tão delicado e conflituoso para o paciente, os familiares e a própria equipe médica. Aborda, acima de tudo, o cuidado, a atenção e o “importa-se” diante do sofrimento alheio, seja de caráter médico, familiar ou social. Porque antes de sermos profissionais, somos, também, seres humanos.

Referências:

LIMA, A. A. T. Ética Profissional e Resoluções do C.F.P/ Série Concursos Públicos: Vade Mecum Psicologia. Vol. 1. Salvador – BA. Concursos PSI Empreendimentos Editoriais, 2013. 246 p.

Psicologia Hospitalar. Disponível em: http://psicologado.com/atuacao/psicologia-hospitalar/a-psicologia-hospitalar#ixzz34IMwBFvw

ROSA, A. M. T. Competências e Habilidades em Psicologia Hospitalar. Disponível em:http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7430/000544292.pdf?sequence=1

SALTO, M. C.  E. O Psicólogo no Contexto Hospitalar. Disponível em:http://www.febrap.org.br/pdf/psicologo_no_contexto_hospitalar.pdf.


FICHA TÉCNICA DO FILME

50%

Direção: Jonathan Levine
Elenco Principal: Joseph Gordon-Levitt, Seth Rogen, Anna Kendrick
Gênero: Comédia Dramática
Nacionalidade: EUA
Ano: 2012

Compartilhe este conteúdo:

Confiar: quando o silêncio fala mais alto

Compartilhe este conteúdo:

Dia 18 de Maio de 1973 entrou para a história como uma das datas mais tristes e comoventes do cenário brasileiro.  Araceli Cabrera, com apenas oito anos de idade, foi sequestrada, drogada, espancada, estuprada e assassinada. Seu corpo foi encontrado seis dias depois do crime, os agressores jogaram ácido por todo o corpo da vitima, principalmente no rosto para que não pudesse ser reconhecido. Por serem membros de uma tradicional família capixaba, poucas pessoas tomaram coragem para denunciar, sendo assim o silêncio falou mais alto, decretando, então, a impunidade dos criminosos.

Foi então que a data de 18 de Maio foi instituída como O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Lei 9.970/2000), para reafirmar a responsabilidade da sociedade brasileira em garantir os direitos e a proteção de todas as crianças e adolescentes.

Não há duvidas quando mencionamos que, entre as situações que mais nos comovem e nos despertam sentimentos de angústia, raiva e aflição, a violência praticada contra crianças e adolescentes está entre as primeiras, quiçá a primeira entre todas. Embora existam inúmeras tentativas de mostrar esse problema ao mundo, de expor que situações tão absurdas fazem parte da nossa realidade, a violência sexual contra crianças e adolescentes ainda parece manter um caráter velado, mantido num silêncio que parece querer proteger todos dessa comoção, do sentimento doloroso que é saber que uma criança pode ser alvo de algo tão cruel, essa proteção, no entanto, só não protege aquele que mais sofre: a criança. É preciso expor, mesmo que seja dolorido, o silêncio só dá forças para que esta situação permaneça.

O filme “Confiar” escrito e dirigido por David Schwimmer, é um exemplo de trama que trabalha de forma clara, direta e honesta um tema tão delicado: o abuso sexual de uma criança. Sem deixar para trás qualquer detalhe, qualquer veracidade dos fatos. Parece a realidade, nua e crua.

A base do roteiro de “Confiar” é a personificação do pior pesadelo da maioria dos pais atualmente. Engana-se porém, quem pensar que o longa trata do assunto com a trivialidade de um thriller. O filme dirigido por David Schwimmer (o Ross da série “Friends”) é na verdade um drama denso e angustiante que parte da perda da inocência infantil, através de um dos crimes mais comuns da era virtual, para expor as feridas de uma família em colapso (ATAIDE, 2011).

Will (Clive Owen) e Lynn (Catherine Keener) têm três filhos: o mais velho está prestes a entrar na faculdade, a do meio está entrando na adolescência e a mais nova está na fase das perguntas. Will e Lynn são pais dedicados, amorosos e que confiam fielmente em seus filhos. Procuram sempre estabelecer uma relação de amor e confiança, dando suporte necessário para todos, nos passando a imagem de uma família bem estruturada e saudável.

Annie (Liana Liberato), a nossa protagonista, é mais uma adolescente comum, enfrentando problemas como qualquer outra garota da sua idade: aceitação entre as colegas de escola, namorado, mudanças no corpo entre outras características comuns dessa fase, mas recebe total atenção dos pais.

Em seu aniversário de 14 anos, Annie é presenteada pelo seus pais com um computador moderno, sonho de toda adolescente. E, como uma adolescente comum, a garota encontra na internet uma forma de desabafar, de se descobrir, de encontrar formas de sair dos seus problemas. Como mencionado no inicio, a relação de confiança entre os membros da família de Annie é tão forte que os pais sabem perfeitamente sobre os amigos de internet que a adolescente tem, inclusive Charlie (o namorado virtual que Annie conheceu em uma sala de bate-papo).

Inicialmente, dócil e ameno, parece apenas uma amizade virtual. Annie desabafa e encontra em Charlie um amigo compreensivo e que divide com ela todos os anseios, dúvidas e preocupações do universo juvenil. A relação aumenta, as conversas se intensificam e a inocência começa a ser deixada para trás.

Charlie, que antes era um adolescente de 16 anos e que estava no colegial, agora diz que tem 20 anos e está na faculdade. Pouco tempo depois ele revela para Annie que tem 25 anos e que já é formado. Mas Annie está envolvida demais para saber os riscos que poderá enfrentar. A adolescente está ludibriada por tantas declarações, tanto apoio, sente-se cada vez mais apaixonada. Tudo muda radicalmente quando o relacionamento deixa de ser virtual e Annie se encontra com Charlie, sozinha, em um shopping.

Charlie aparenta ter cerca de 35 anos. A expressão de surpresa de Annie frente à Charlie não diferencia da nossa (logo substituída por repulsa). Mas a adolescente é manipulada emocionalmente por todas as investidas do seu agressor.

Depois deste primeiro encontro a família conhecerá de perto uma das situações mais tristes da humanidade: a violência sexual contra crianças e adolescentes.

A cena não agrada a ninguém. É possível viver junto com a personagem toda a angústia e o desespero que aquela situação provoca. Ficamos perplexos, imóveis.

Charlie domina lentamente Annie, ela por sua vez está estática, fita o teto e deixa que seu abusador faça dela o que quiser, e então a dor toma de conta da cena.

Quando falamos sobre violência sexual contra à criança e ao adolescente, usamos conceitos que parecem explicar um mesmo assunto. Equivocadamente tendemos a chamar todos os agressores de crianças e adolescentes de pedófilos. Os termos “pedofilia” e “abuso sexual” são usados constantemente como sendo sinônimos, dificultando as ações governamentais de enfrentamento dos problemas e da responsabilização de ofensores sexuais. Segundo José Raimundo Lippi, psiquiatra, o pedófilo é aquele que preferencialmente tem a sua libido exacerbada com a presença da criança, e principalmente muito pequenas. O conceito de pedofilia diz respeito, então, ao transtorno comportamental de indivíduos que sentem atração sexual por crianças.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a pedofilia é a preferência sexual por crianças pré-púberes ou no início da puberdade, já a Associação Americana de Psiquiatria destrincha um pouco mais o conceito, classificando a pedofilia dentro do grupo de parafilias: anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que causam sofrimento ou prejuízo na vida social e ocupacional do indivíduo. No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação a pedofilia está descrita como: “toda atividade sexual com um a criança pré-púbere -13 anos ou menos-“. O pedófilo deve ter acima de 16 anos e ser pelo o menos cinco anos mais velho que a criança a qual tem relação sexual ou deseja ter.

Já o abuso sexual é caracterizado pela utilização do corpo de uma criança ou adolescente para a satisfação sexual de um adulto, com ou sem o uso da violência física. Podem ocorrer dentro deste crime: desnudamento, toques e carícias nas partes íntimas da criança, levar o menor para assistir ou participar de práticas sexuais de qualquer natureza.

O filme começa agora. Annie parece perder-se nas suas angústias, somos tomados pela sensação de que a garota não faz a menor ideia do que aconteceu realmente, como se ela tivesse se desligado e ao mesmo tempo permanecer na ilusão do amor, da paixão, da ideia de que Charlie é a vida dela. Sim, ela nos mostra constantemente apaixonada por ele. Compreensível, devido a sua vulnerabilidade. Annie está refém de um trauma e nutre admiração pelo o seu agressor.

Em outras circunstâncias podemos dizer que Annie começa a desenvolver a Síndrome de Estocolmo, caracterizada pelo um estado psicológico particular onde a pessoa, que foi submetida a um tempo prolongado de intimidação,  passa a criar uma espécie de vínculo, simpatia, amor ou amizade pelo o seu agressor. Diante do estresse físico e mental o que está em jogo é a autopreservação por parte daquele que está sendo oprimido, aliada à ideia de que: se não há como fugir preciso manter-me próxima a ele e segura. Foi assim com Annie, durante sua reação estática diante de Charlie. No entanto, devemos levar em conta que ela criou  um vinculo com seu agressor antes de conviver com ele, de fato, envolveu-se na ilusão de que Charlie era um amante dócil e gentil.

De acordo com Trindade (2010) para que a síndrome seja diagnosticada alguns requisitos são exigidos, tais como: o evento traumático (sequestro, assalto, abuso sexual, violência); ameaça física ou psicológica; crença de que o desfecho irá acontecer; a vitima acredita que há gestos de atenção por parte do seu agressor e o sentimento de impotência para escapar. Ainda que tenha sido um vinculo construído antes do relacionamento físico, não podemos anular o fato de que Annie foi coagida e mantida sob o domínio e a manipulação de Charlie.

A estrutura familiar começa a ruir. O problema é finalmente exposto para os pais, para a escola. Um conflito é estabelecido entre Annie e Wiil, pois para a garota os pais querem afastá-la do seu amor, querem impedir que fiquem juntos e se não tivessem chamado o FBI, Charlie não lhe abandonaria. Quem sofre da síndrome de Estocolmo tenta de todas as maneiras evitar comportamentos que desagradem ou que afastem seu agressor. Bem explícito nas reações de esquiva de Annie quando se recusa a ajudar nas investigações.

(…) a pessoa que sofre a agressão passa a ignorar o fato de que o agressor é a origem do risco o qual ameaça sua sobrevivência, criando assim uma auto ilusão. A consequência disso é que quem está .“do lado de fora” deixa de ser um aliado, ao passo que busca ferir o ser com quem a vítima se identifica e possui afeição (HORTA, SANTOS, JARDIM, 2013)

Enquanto Annie nega sua situação de vitima, Will adota um comportamento obsessivo, tentando de todas as maneiras encontrar o agressor de sua filha, a família parece não retomar a normalidade, deixando que o problema tome proporções maiores. Mas é somente depois de ficar diante de outras vítimas de Charlie, de conhecer a história com todos os detalhes, e vê que não foi a única, é que Annie deixa a zona de distanciamento e se depara com a realidade que evitou a tanto tempo: foi vitima de estupro.

Após diversas reviravoltas e de ficarmos inquietos diante do desenrolar dos fatos, é que a família finalmente resolve retomar suas vidas, embora os danos permanecerão, mas entendem que o que resta é seguir em frente, e restabelecer o vinculo familiar que foi afetado por tamanho problema.

Mais do que mostrar a importância de ficarmos atentos às nossas crianças e adolescentes o filme apresenta aspectos relevantes que também merecem atenção: a confiança nas pessoas fora do ambiente familiar e os riscos que a internet oferece. Os laços familiares são fortes até que ponto? Os pais têm, realmente, controle sobre a vida dos filhos? Sobre os conteúdos que eles acessam constantemente na internet? Quando a liberdade deixa de ser saudável e se torna prejudicial à criança e/ou adolescente? Será que, mesmo com tantos meios de comunicação, com tantas exposições, de tantas informações acerca de abuso sexual infantil, violência contra crianças e adolescentes, ainda assim nossas crianças são inocentes a ponto de não saber com exatidão o conteúdo daquilo que acessam?

Schwimmer soube explorar com eficiência os conflitos internos de seus personagens e corajosamente deu uma outra dimensão ao tabu do abuso sexual infantil no cinema. Doloroso sem ser piegas, o longa mantém um bom ritmo narrativo e contrariando expectativas – ainda bem! – ruma para um desfecho de forte impacto emocional (ATAIDE, 2011).

 

 

FICHA TÉCNICA:

CONFIAR

Gênero: Drama
Direção: David Schwimmer.
Elenco Principal: Liana Liberato, Clive Owen, Catherine Keene, Chris Henry Coffey
Ano: 2011

Compartilhe este conteúdo:

A Esperança – Livro III – A Submissão finalmente dará lugar a Liberdade

Compartilhe este conteúdo:

“Guerra é Guerra” este é o único pensamento que nos faz aceitar o final da trilogia Jogos Vorazes, escrito por Suzanne Collins.

A guerra não escolhe quem vai destruir, quem vai se tornar cinzas. Ela simplesmente destrói quem quer que esteja por perto, seja forte ou fraco, inteligente ou disperso. Durante as batalhas vence aquele que está mais apto, talvez, ou aquele que sabe exatamente para onde correr, se é que existe algum lugar seguro.

Em “A esperança”, último livro da trilogia, tem-se uma Katniss exaurida, completamente perdida e desgastante em seus pensamentos. Precisei tirar uma força descomunal, sabe-se lá de onde, para continuar trilhando essa nova luta, a qual a tributo do extinto Distrito 12 (bombardeado pela Capital, deixando pouco mais de 900 habitantes vivos) está intimamente ligada . Abro parênteses para explicar o porquê da falta de entusiasmo, não é pela leitura em si, não se trata de algo confuso ou conturbado – até porque segue perfeitamente o raciocínio dos livros anteriores-, é desgastante no sentido de que agora olhamos para uma Katniss ainda mais torturada, o que significa que, na mesma ideia que percorreu em Jogos Vorazes e Jogos Vorazes: Em Chamas, ela passará a sensação de cansaço para você e isso quebra qualquer um.

Ainda que Katniss tenha a opção de não ser a cara da revolução, ela sabe que não existe essa possibilidade. Não com a vida de Peeta nas mãos do inimigo. A garota em chamas precisa, mais do que nunca, alçar voo em busca da liberdade de todos aqueles que ela ama. Ela precisa ser o Tordo.

O lendário distrito 13 é, enfim, apresentado. Os refugiados dos demais distritos, destruídos ou não, são alojados e preparados para uma nova revolução. Aqueles que ainda não se rebelaram são o principal alvo dos Rebeldes, que buscam -através dos programas protagonizados por Katniss- induzir que todos se rebelam. Se antes tínhamos uma Capital opressora, agora temos um Distrito 13 carregado de sede de vingança. Sim, embora defendam a ideia de que buscam a liberdade, o fim do domínio da Capital sobre o mais fraco, temos em evidência um Distrito movido a um único objetivo: Fazer justiça com as próprias mãos.

Coin (presidente do Distrito 13) é, inicialmente, um ser astuto, direto e com pontuações objetivas. Mas há uma intenção por detrás de suas ações, o sentimento que temos é que, ainda que em busca da autonomia dos outros distritos, a presidente almeja uma posição de poder maior do que a que tem, agora, nas mãos. E talvez tenha sido essa a real intenção de Collins, questionar a veracidade das intenções dos líderes de uma guerra.

Plutarch parece não ter se desvinculado do papel de Idealizador dos Jogos Vorazes, uma vez que, através de seus programas e as produções em cima de Katniss maquiada e preparada para encenar uma raiva não instintiva, o faz parecer artificial e pouco ligado, realmente, aos verdadeiros motivos da guerra entre os rebeldes e a Capital. Isso também fez com que eu conduzisse meus pensamentos a uma só direção: É o reflexo da Capital. Tudo está acontecendo da mesma maneira, só que no lado oposto. E não devemos abandonar a desconfiança, nem tomar partido nessa guerra, ao menos não no inicio.

Finnick, Haymitch e Boogs, merecem a melhor das atenções, porque desenvolveram seus papeis de forma crucial. Haymitch, o mentor desaforado e bêbado, conduz Katniss como quem conduz a si mesmo. É essa a impressão que carrego desde o primeiro livro, Haymitch é a versão masculina de Katnniss, e ela deixou claro em “A esperança”, só ele é capaz de compreendê-la. Boogs, o general responsável pelo esquadrão em que a garota em chamas é um dos soldados, é de uma neutralidade incrível. Não luta contra a Capital, nem a favor de Coin, mas por Katniss, é nela que ele acredita e confia. Finnik, carrega dores flamejantes nos olhos, coração e mente. Está ‘desorientado’ e traumatizado. E quem não está? Mas é ele quem faz com que Katniss perceba os fatos ao seu redor. E por ser ele, um mentor tão transparente e direto, merecia uma morte, digamos, memorável. A morte de Finnik pareceu vaga, rápida e pouco entusiasmada, nada que se assemelha a sua personalidade. Mas, na guerra, a morte aparece do nada, e o transformou em nada, também.

Gale, a principio, me pareceu um sedento por vingança e sangue, talvez tenha sido por isso que fincou um vínculo, embora camuflado, com Coin. Ambos estavam atrás da mesma coisa: Fazer com que a Capital morresse com seu próprio veneno. Vez ou outra imaginei um Gale tomado somente de ódio, e que me deixou totalmente desnorteada em relação a suas ações. Confesso, também, que tive poucos sentimentos por ele, desde o primeiro livro. A escassês de sentimentos continuou até o final. Gale sempre foi um bom escudo para Katniss, isso é óbvio, melhor amigo e protetor. Mas um tom apelativo fez com que Gale se tornasse mais um ávido por sangue, e pouco me interessei por suas investidas. Mas, dou créditos por sua desenvoltura e sagacidade durante toda a guerra, e por isso, acredito eu, ele merecia um final diferente com Katniss, uma despedida ao menos. Mas tudo ficou meio a esmo. O que sabemos do seu destino é muito pouco diante de toda sua devoção à Katniss e à revolução. Mas é como se Collins quisesse se desapegar de um “modelo” romântico das histórias para jovens-adultos. E isso é perdoável.

Retorno ao sentimento de exaustão que Katniss me passou com seu egocentrismo, embora compreendo seu pesar, seus traumas e seus conflitos mentais. Ninguém escapa, por duas vezes, de uma arena da morte sem um arranhão físico e mental. Devo dizer, também, que o livro está focado principalmente nisso, nos traumas decorrentes de uma guerra. Mas esse sentimento de cansaço e desgaste, é substituído por um pesar sem tamanho ao lembrar que Peeta está sob o domínio da Capital, uma vez que ele é, de longe, o personagem mais bonito da história. Peeta traz a melhor essência que um ser humano pode possuir, seus sentimentos genuínos, sua preocupação com o outro e sua benevolência ao sentimento alheio, nos faz querer que ele seja isento de qualquer mal. Mas, no final das contas, foi ele quem mais sofreu com tudo isso.

É quando Peeta surge como porta voz da Capital que a história, finalmente, dá uma guinada e o entusiasmo volta à tona. Ao invés de um garoto torturado fisicamente, temos a imagem de um Peeta, aparentemente, bem cuidado, protegido e lutando para que ambos os lados parem essa guerra antes que saiam mais feridos. Recado este, claro, que não foi visto com bons olhos pelos rebeldes e agora o garoto é tido como inimigo. Apesar da boa aparência tudo soa límpido demais, e temos a absoluta certeza disso algumas páginas a frente. Agora temos um Peeta abatido, ainda buscando formas de avisar Katniss sobre os perigos que a cercam. Peeta foi telessequestrado (um tipo de lavagem cerebral e que distorce os pensamentos/sentimentos do indivíduo), é incapaz de distinguir o real do imaginário. Peeta foi roubado de si e agora está programado para matar a pessoa que mais amou na vida, Katniss. Quando os Rebeldes conseguem tomar Peeta da Capital, inicia-se um processo de “destelessequestro”, inúmeras tentativas para fazer com que o garoto volte a ser o que era. O processo vai, aos poucos, fazendo efeito, no entanto as marcas são profundas demais e é possível que isso o perseguirá por toda a sua existência, e isso nos transmite uma angustia que se estende até o final, e após o término da leitura. Foi de uma crueldade desumana elaborar um destino como este para um personagem tão altruísta. Collins deveria sentir-se culpada pelo o resto da vida. Mas, como prometi a mim mesmo, é preciso entender que é uma guerra.

E Katnnis permanece egoísta. Foi aí, também, que desenvolvi uma antipatia desenfreada por ela. Por mais que eu a compreendo, não faz sentido vê-la culpando, acusando e atacando os comportamentos de Peeta. Como se somente ela estivesse sofrendo. Como se ele fosse obrigado a pertencer sempre a ela, independente de uma lavagem cerebral ter ocorrido, e ponto final. A autopiedade de Katnnis é de embrulhar o estômago, como se seu sofrimento anulasse o direito dos outros sofrerem. Como se só ela, e ninguém mais, carregasse as feridas de uma guerra em andamento.

Quando todos partem para a Capital, e a guerra parece finalmente chegar perto do seu fim. A história parece correr, em um momento temos todos os combatentes fugindo de bestantes, em poucos instantes encontramos todos escondidos na loja de Tigris e num piscar de olhos nos deparamos com uma chuva de parequedas carregados de explosivos, matando crianças e adolescentes…e Prim.

Sim, sem pontuações e sem detalhes, quando, enfim, respiramos, estamos outra vez olhando tudo sob a perspectiva de Katniss, machucada, queimada, e com a dor de mais uma perda. Dessa vez a perda é mais sentida. Prim foi o motivo e a razão pela qual Katnins se ofereceu como tributo. Katniss foi a razão e o inicio de uma revolução. Prim está morta devido a revolução, Katniss está sem chão.

Snow, agora capturado, parece ser um frágil e simples prisioneiro. Diante de sua arma letal: A garota em Chamas. Mas existe uma cumplicidade no ar, entre o presidente e o tributo vitorioso de dois jogos vorazes. E Snow tem razão, havia um acordo entre os dois, nenhum mentiria. E agora, um milhão de perguntas se estabelecem em nossa mente. E se os livros anteriores não fizeram isso, dou a certeza total que “A esperança” fará. A duvida de saber quem realmente é o inimigo.

Se eu fosse fazer um paralelo entre as três histórias diria que o foco está inteiramente ligado aos traumas. E é isso que me percorreu a espinha ao longo da leitura de “A esperança”, estava diante de uma descrição real de um trauma vivido antes, durante e depois de uma guerra. Johanna disse a Katniss que ninguém sai de uma guerra sem marcas, sejam elas físicas ou psicológicas, e a única coisa que resta é acostumar-se com as mudanças. Essa seria uma boa citação para resumir toda a história de Jogos Vorazes, principalmente se tratando do último livro.

Guerra é guerra. Katniss abraçou uma depressão pesada, incapaz de ver o lado bom de toda a revolução. Agora precisa conviver com suas terríveis perdas. As marcas são profundas demais para serem explicadas ou vividas pelos os outros, mas, Peeta está lá. Carrega também suas dores, perdas e traumas. Carrega também os braços que protegem Katniss, e os dois vivem em um mundo que, embora cheio de estragos e dores, permite dias melhores e mais felizes.

E depois de muito pensar, chego a conclusão de que foi o melhor dos três livros. Apesar do desgaste, e das revelações dolorosas. este foi o livro que fez com que eu sentisse pertencente a uma revolução e entender que não importa o quão bons somos, coisas ruins acontecerão e a nós só nos restará seguir em frente.


FICHA TÉCNICA DO LIVRO

JOGOS VORAZES – A ESPERANÇA

Autora: Suzanne Collins
Editora: Rocco
Ano: 2011

Compartilhe este conteúdo:

Jogos Vorazes – Livro II – Em Chamas

Compartilhe este conteúdo:

Como Fagulha; queimando lentamente. É assim que o segundo livro da trilogia Jogos Vorazes começa. Para situar o leitor, para que possamos caminhar vagarosamente por toda a situação que nossa heroína Katniss e o bondoso Peeta acabaram de enfrentar.

Em Chamas está recheado, transbordando praticamente, de afeto. É o único dos três livros que nutre a essência afetiva, o lado mais humano de todos os personagens, estamos olhando para todos com olhos mais piedosos. Parece que são membros de uma mesma família. Talvez seja por isso que essa não será uma resenha curta, o livro não permitiria.

Após vencerem a 74º edição dos Jogos Vorazes e fazer com que a Capital se sentisse trapaceada, Katniss e Peeta vivem agora na Aldeia dos Vitoriosos, suas famílias estão bem amparadas, o Distrito 12 recebe ajuda rotineira do governo e todos parecem viver em uma paz questionável.

Haymitch, antes rabugento e solitário, recebe doses diárias de atenção dos tributos vitoriosos, uma amizade nasceu e perdura por todo o percurso dessa história. Embora tenham vencido o os jogos e conquistado o carinho e admiração de toda a nação com a encenação de um romance, Katniss e Peeta raramente se encontram, quando os encontros acontecem seus diálogos geralmente são monossilábicos. Situação provavelmente decidida por Katniss, que mantém a postura de garota antipática, implicante e machucada, que tenta de todas as maneiras se encontrar, incapaz de demonstrar sentimentos por Peeta.

Gale, que cuidou da família de Katniss enquanto ela estava na arena, recebe um destaque maior nesse segundo momento, tem mais voz, e essa voz é carregada por um desprezo mais férvido pela Capital, e até mesmo por Katniss, embora sejam desprezos diferentes. Ele está ferido, incomodado e enciumado, bem compreensível, visto que sua melhor amiga/amante passou a maior parte do tempo dedicando beijos a outro garoto, mas um pouco apelativo demais.

Mas esse clima “morno” está presente só nas primeiras páginas, mesmo. Até recuperarmos o fôlego, eu acho. Porque logo de cara recebemos a visita do presidente Snow, na sala de estar de Katniss. Cena descrita tão perfeitamente que o frio na espinha não deixa de percorrer. Embora o presidente seja um ser calculista, sádico, irônico e merecedor do meu desafeto, devo dizer que ele é no mínimo admirável. Entenda: Snow é presidente de Panem que já foi alvo de uma rebelião que o fez tomar uma medida drástica como forma de proteger seu reino e reinado. Snow não parece levantar causas sem fundamentos, seus pensamentos seguidos de suas ações são milimetricamente calculados, repensados e seus planos giram sempre em torno de um objetivo maior -manter a Paz (apesar de tudo soar muito como ‘submissão’)- certo?

No mínimo ficamos com uma pulguinha atrás da orelha para entender o real interesse dele, e que nem sempre as coisas são o que parecem ser. Katniss o descreve como uma pessoa imunda, portanto não teria como nossos olhos não ficarem viciados numa imagem unilateral que contamina todas as intenções que ele possa ter. Uma jogada de mestre, eu diria, de Collins, quando consegue transformar um personagem tão amplo e enigmático em um único ser detentor da destruição. Óbvio, ele é o mentor de um jogo violento e sanguinário, conduz a todos com mãos de ferro e ainda induziu o suicídio do idealizador do jogos -punição pequena né? só porquê Katniss e Peeta desafiaram as regras- .

Bom, enquanto a nação inteira estava maravilhada com o jovem casal sobrevivente, ele não está nenhum pouco convencido da história e que devido a essa brincadeira tudo pode explodir -literalmente- a qualquer momento. Katniss não seria capaz de imaginar tamanha destruição, talvez nem nós mesmos, mas foi ela quem começou -mesmo sem saber- é ela quem tem que apagar esse fogo que começa a crescer.

Mas, talvez, Snow se preocupou demais com Katniss. A preocupação de mantê-la sob seu domínio foi maior que manter Panem nos eixos, mesmo que, para ele, seria Katniss a responsável pela fúria, e ela mesmo poderia cessar isso.

Então temos outra chuva de encenações. Moldados e controlados pela Capital, Katniss e Peeta precisam convencer o presidente que são realmente um casal apaixonado e precisam, também, conter a o fogo que começar a queimar no coração da população. Em uma situação perturbadora, “matamos seus garotos, agora nos vejam desfilar”, os vitoriosos são obrigados a fazerem uma turnê visitando cada Distrito de Panem. Bem a cara de um presidente que gosta de deixar muito claro que com a Capital não se brinca.

Mudanças ocorrem; desde a substituição do chefe dos pacificadores a Gale, que agora o sangue ferve nas veias e parece querer sair do seu corpo e queimar quem quer que esteja por perto. Ele queima Katniss, de certa forma, indo contra seu plano de fuga, só porque agora ela se preocupa com a vida de Peeta.

A agressão sofrida por Gale, por ter sido pego contrariando as leis, é mais um motivo para Katniss voltar ao posto de sofredora, reclamando suas ações, clamando piedade, suplicando por uma solução para o caos que ela mesmo produziu. Katniss, cansa! O ruim dessa narrativa é somente isso, precisamos nos esforçar constantemente para não enxergar somente com os olhos de Katniss, precisamos enxergar os outros; sentir os outros.

Não bastasse os jogos vorazes, temos conhecimento do Massacre Quaternário, um tipo de sequência dos jogos que acontece a cada 25 anos, é basicamente para reforçar a ideia de que a Capital é quem manda.

Snow, não nos decepcionando, continua firme em seus discursos. Arquitetou um plano que obriga todos a terem certeza de que ninguém é mais inteligente que a Capital, e aquele que ousar a ser pagará terrivelmente pelos seus atos. Agora, haverá um sorteio diferente: Um vitorioso e uma vitoriosa de cada Distrito será escolhido como tributo no Massacre Quaternário, para lutarem até a morte, numa arena a céu aberto, só haverá um vencedor! Um soco na boca do estômago dos moradores de Panem, um soco seguido de rasteira em nós. Caímos! Surpresos, desamparados, indignados, sem fôlego, machucados. Pensei em jogar o livro num canto e abandonar Katniss, isso é demais para a minha paz. Pensamento momentâneo, uma vez nos jogos vorazes o resto do mundo se torna distante.

Reparem no fogo que começa a tomar de conta da história. Quando Katniss se ofereceu como tributo nosso coração pesou no peito, agora não resta duvidas de que ela será o tributo escolhido, porque há somente uma vitoriosa no Distrito 12. Também não nos espantamos com a ideia de que Peeta é quem vai para a arena, como voluntário (esse coração dele que não pulsa só do lado de dentro) no lugar de Haymitch, que também está desolado.

Agora é o momento em que a história derrete feito larva porque uma espécie de dor mutua, de tristeza e pesar toma conta de todos, até mesmo aqueles a quem julgamos “fúteis” da Capital. Embora haja toda aquela preparação, todos os olhos seguem marejados, as vozes embargadas numa espécie de angustia sem fim, porque sabem que isso é injusto demais, desumano demais. Agora não podemos chamar os moradores da Capital de fúteis, porque eles nos demonstram que, apesar de terem sido criados para adorarem esse tipo de espetáculo, porque só conhecem aquela verdade, eles ainda possuem coração, e pulsa forte quando precisam estar diante de algo surreal, quando a vida de seus ídolos estão a um passo da morte.

A história cresce numa proporção sem igual. Conhecemos novos tributos, repletos de raiva e descontentamento (óbvio, o acordo era que jamais voltariam para a arena). E tudo fica mais interessante quando somos apresentados a Finnick, inicialmente prepotente e egocêntrico. Johanna, desaforada, dona das melhores agressões verbais direcionadas à Katniss (adoro a Johanna), é claro que tem os outros que também são importantes, mas esses parecem possuir um peso maior.

Temos, também, um novo idealizador dos Jogos. Plutarch, aparentemente não foge muito dos padrões de quem realiza esse tipo de jogo, mas é envolto de alguns mistérios. A começar pelo Tordo (esse é o símbolo de Katniss) em seu relógio e a repetir constantemente “Meia-noite!”.

Um casamento que não aconteceu, mas um vestido de noiva que se transformou em tordo. Uma gravidez para deixar todos os moradores mais indignados e todos os vitoriosos de mãos dadas, para mostrar que ainda existe cumplicidade – nosso apresentador Caeser Flickerman parece perdido e ao mesmo tempo uma peça fora de toda a situação que se desenvolve à sua frente. Pobre produto da Capital-.

Pontos marcantes e ainda mais dolorosos nessa história, porque é angustiante imaginar novamente o banho de sangue na arena.

De novo aquele elevador para transportar Katniss até a arena, mas agora sofremos com a imagem de Cinna sendo espancado, torturado, diante da garota. Esse é mais um dos avisos para a garota em chamas, para que ela possa saber com quem está lidando. E ela ainda não sabe? Impossível.

Na arena somos apresentados a mais um plano super frio e homicida de Snow. É um absurdo tremendo, eu diria. Porque antes os jogadores poderiam morrer de sede, frio ou por causa dos outros jogadores, agora a cada hora tem uma espécie de arma letal perseguindo os tributos, é como se, dessa vez, a Capital não quisesse um vencedor.

Finnich é um cara do bem que, mesmo com Katniss sendo desconfiada, tem como objetivo a proteção de Peeta. Por que? Agora podemos entender facilmente. De todos os jogadores de ambos os jogos, e até mesmo das demais pessoas da história, Peeta é o único que não desenvolveu esse lado “mortífero”, digamos, não que ele seja um personagem alheio a toda essa conturbação, muito pelo contrário, é justamente por isso que ele não se torna mais uma sangue frio que presa pela sua vida e fará o possível para mantê-la, porque antes de tudo ele é humano demais, Katniss cheia de seus dramalhões ainda é um ser capaz de atirar uma flecha certeira no coração de outra pessoa, mas ele não, ele camufla, e só. Ele canta enquanto vê o outro morrendo em seus braços com intuito de lhe garantir uma morte suave. Ninguém vai contra Peeta porque ele não consegue odiar ninguém, e ele quer continuar sendo assim: a Capital não vai torná-lo um assassino para garantir sua diversão.

Quando Peeta vai de encontro a um capo de força e morre (sim, ele morre por alguns segundos e eu quase morri também) você pensa até em desistir de tudo ali mesmo, porque Collins seria uma escritora muito cruel matando o único ser que nos faz querer ser melhor e aquele a quem todos querem proteger. Mas aí Finnick o salva, e somos eternamente gratos e confiamos ainda mais nele. Katniss está lá aos prantos, então sabemos que o amor explodiu. Finalmente. Não é possível que ao vê-lo naquele estado ela não sentiria um aperto no coração, um nó que não se desfaz na garganta, algo que arranha toda vez que a gente imagina: Peeta morto. Se ela não consegue compreender isso é porque se perde demais nas confusões que ela mesmo cria. Já não há espaços para fingimentos, em situações como esta não existe tempo suficiente para preparar uma boa encenação. O amor está exposto.

Snow finalmente deve ter entendido que existe um amor crescendo a cada segundo ali. Depois disso não resta dúvidas. O que deixa a história mais dolorosa ainda, porque agora temos um romance de verdade, sem encenação, bilateral, são os dois.

Passado essas constatações, tomamos conhecimento de um plano para driblar os jogos. Arriscado, muito arriscado. E executado de uma maneira bem confusa, sabemos que Johanna nocauteou Katniss, furou seu braço, arrancou seu rastreador. Katniss acordou desnorteada e lançou uma flecha na fenda do campo de força, destruindo toda a arena.

Cadê Peeta? Encontramos Haymitch, Finnik e Plutarch – eu sabia que seu mistério envolvia um golpe contra a Capital, não há inimigo mais poderoso do que aquele que está dentro de sua casa, Snow deveria entender isso, ele é inimigo na casa de muitas pessoas. Mas e Peeta? Só nos resta Katniss enlouquecida, e sabendo que toda essa situação fez explodir uma guerra.

“Em Chamas” termina assim, com um incêndio em nossa mente que dificilmente será contido, não até entendermos tudo e todos. O que será de Peeta? O que será de todos que não estão a favor da Capital? Agora respiramos apressadamente porque “Em Chamas” deixou tudo queimando e precisamos respirar um ar puro, sem essa fumaça que toma de conta da nossa mente, tudo em busca de respostas. Eu quero saber somente de Peeta, porque ele conseguiu despertar em todos um afeto sobre-humano, porque “Em Chamas” fez jus ao nome e somos tomados, novamente, por um entusiasmo que não cessa enquanto não obtivermos as respostas.

                                         


   FICHA TÉCNICA DO LIVRO

JOGOS VORAZES – EM CHAMAS

Autora: Suzanne Collins
Editora: Rocco
Ano: 2011

Compartilhe este conteúdo:

Jogos Vorazes – Livro I – Que Comecem os Jogos

Compartilhe este conteúdo:

 

Jogos Vorazes (a trilogia) me surpreendeu por completo. Me desdobrei em múltiplas partes para conseguir discorrer sobre os três livros. O começo é sempre mais difícil quando se trata de uma história tão rica e fascinante. E, acredite, não é exagero.

Jogos Vorazes, o primeiro livro da trilogia que carrega o mesmo título, foi escrito de uma maneira magnífica. Lento e leve no seu inicio, Collins conseguiu transmitir genuinamente as surpresas de uma história que tem muito a oferecer e te prende desde as primeiras páginas. Não é a toa que o devorei, sem intervalos, em pouco mais de 24 horas.

A história se passa em Panem, uma nação governada por Snow, um tirano, manipulador, que conduz a todos com mãos de ferro e uma mente maquiavélica (e de uma inteligência admirável, porque é preciso muita astúcia para comandar o mundo todo seguindo seu próprio ideal) -essa constatação se dá ao longo da história, ou simplesmente quando somos apresentados aos Jogos Vorazes.

Foi devido aos Tempos Escuros, quando os Distritos promoveram uma rebelião contra a Capital a fim de assumir o controle, que surgiram os Jogos Vorazes, como forma de punição e de mostrar aos demais Distritos sobreviventes – Distrito 13 foi extinguindo- que todos estão a mercê da Capital, e quem quer que seja que tentar se rebelar contra ela sofrerá com terríveis punições. Os Jogos Vorazes, então, é uma disputa, em que cada Distrito deve enviar uma garota e um garoto, entre 12 e 18 anos, para uma arena, a céu aberto, e lutarem até morte, restando somente um vitorioso. Esse “espetáculo” é acompanhado por todos, em grandes telões, em praça pública. Um reality show pouco convencional.

Conhecemos Katniss Everdeen, uma jovem de 16 anos, que aprendeu a arte da caça desde muito cedo, ao lado do seu falecido pai (morto em uma explosão em uma das minas de carvão em que trabalhava). Com a morte precoce do seu pai, Katniss precisou pular sua infância e dedicar-se a sobrevivência de sua família: sua mãe está em estado catatônico (é acometida por uma depressão grave logo após a morte do seu marido), parece manter-se afastada do mundo real e presa na sua própria tristeza, deixando que suas filhas cresçam sem o amparo necessário -embora seja compreensível, é um pouco (muito) angustiante, tendo em vista que ambas as filhas eram novas demais para se virarem sozinhas- e Prim, sua irmã caçula, a razão de sua força. Com a sobrevivência da família em mãos, Katniss não teve outra alternativa a não ser a de abandonar os poucos anos que ainda restava de sua infância e trilhar um novo rumo para sua vida, que dela dependia outras duas vidas.

 

Com sua habilidade de flechar animais (atividade ilegal para o resto do mundo) Katniss passa a fazer negócios no mercado negro, trocando suas caças por mercadorias, com o intuito de alimentar sua família e continuar sobrevivendo. É na floresta, seu lugar favorito, que ela conhece Gale, por quem devota uma amizade plena e em quem confia cegamente – seu único amigo, também-. Esta é Katniss, basicamente, a garota que comoventemente foi parar nos Jogos Vorazes.

Em sua superfície a garota parece ser apenas mais uma pessoa que se viu obrigada a torna-se adulta antes da hora, tudo parece muito simples e raso, nada que nos prenda totalmente a atenção, se não fosse pelo fato dela nos descrever penosamente sobre seu sofrimento e sua condição exaurida de ser humano -daí em diante meus ombros ficaram pesados-. Um personagem -devido ao fato de ser narrado em primeira pessoa- que sabemos, instintivamente, que não será fácil de compreender, com suas dificuldades e em última estância um personagem difícil de simpatizar.

 

Collins ensaia uma possível história de amor, onde seria óbvio demais, que um jovem casal apaixonado será escolhido para lutarem até a morte, só para a diversão da população fútil da Capital. Mas, como mencionei, seria óbvio demais. Quando os jovens são encaminhados para a praça da cidade para participar do sorteio que indicará os dois tributos para participarem da 74º edição dos Jogos Vorazes, onde um silêncio torturante, seguido de descrições reais, na visão de Katniss, de como aquele momento massacrava qualquer esperança de se livrar daquela situação, tive a sensação que seria muito “na cara” que fosse ela a escolhida ou ele, ou ambos, Collins entregaria o ouro de bandeja, assim não teria um romance avassalador. Fiquei aliviada quando minhas expectativas foram atendidas. Prim foi sorteada, Katniss se ofereceu como tributo, aliviando a triste condição da irmã caçula. Logo depois, Peeta é escolhido como garoto tributo do Distrito, ele é só o filho do padeiro pra quem -mais um- Katniss nunca deu atenção, embora tem-se uma leve sensação de que ele é maior do que aparenta ser (e ele é). Temos então dois jovens fadados ao fracasso – segundo Katniss e sua terrível autopercepção-.

A história começa a caminhar com passos mais densos, mais detalhados e mais apaixonantes. Katniss agora é uma garota cheia de traumas, que são sempre mencionados, individualista e que vive na defensiva. Ninguém se aproxima, ninguém pode ser gentil. Ser gentil, para Katniss, é a prova de que a pessoa é um ser mortífero. Haymitch, vitorioso e agora mentor dos tributos do 12, é um homem desprezível, bêbado e pouco se importa com os novos ‘fantoches da Capital’. E em um dos seus devaneios, percebemos que é Peeta o grande diferencial dessa história, o garoto conduz tudo como uma suavidade impagável. Como se, ainda que não feliz com aquela situação, a única coisa que se pode fazer é aceitar e encarar o que virá pela frente.

 

 

O espetáculo dos Jogos Vorazes é uma tática fria e calculista, além de diversão para o publico que jamais participará de algo parecido (a sorte está com eles). Todos os tributos são conduzidos, preparados, treinados, maquiados, controlados pela Capital, com o intuito unicamente de garantir a diversão da sociedade. São como peças de um jogo, bem arrumadinhos, onde precisam até mesmo desenvolver seu lado letal, sem se importar com a vida do outro.

As pessoas são constituídas de maquiagem e vazio, não há nada dentro delas que nos façam querer sua companhia. Katniss e Peeta são duas crianças abandonadas numa caixa de brinquedos. Cinna, estilista dos tributos do 12, é um ser que vem na contramão deste estereótipo da Capital. A leveza de suas palavras, a delicadeza de suas ações, nos ajuda a compreender que é preciso lutar, embora tudo isso pareça uma grande -terrível- palhaçada. Peeta revela sua paixão por Katniss, e ela, não é de se espantar, o ataca impiedosamente, grosseiramente e esquece de agradecer, porque até o momento ela era – para a Capital – completamente sem sal. Então temos os Amantes Desafortunados do Distrito 12.

Quando os tributos, depois de muita exposição, são mandados para arena, começa o grande massacre. É terrível demais imaginar que garotos são jogados em um local para manterem uns aos outros, onde devem a qualquer preço desenvolver um lado sombrio e frio, e ainda que pareça distante demais da nossa realidade parece traçar um paralelo muito verossímil, onde temos a nítida ideia de que se não tomarmos cuidado isso não será impossível de acontecer. Mas Collins foi magnífica, também, quando nos deu Katniss, Peeta e Rue de presente, os três, embora soubessem que precisavam matar, demonstram que mesmo com sua obrigação estampada não abandonaram o lado humano e que só o fazem devido uma questão de sobrevivência. Katniss, luta para sobreviver e espera todos os dias para que não seja preciso matar alguém, luta contra a natureza, que ao seu ver é mais poderosa que os outros tributos. Mas ela precisa matar.

Rue é uma criança, tributo do Distrito 11, mas possui grandes habilidades e um coração maior ainda, encontra em Katniss a proteção que precisa. É devido a essa cumplicidade e fraternidade, que nosso coração chora quando estamos diante do “ritual fúnebre” que Katniss dedica a Rue, e é aí, também, que finalmente a garota em chamas decide se entregar completamente aos Jogos, agora é uma questão de honra.

Peeta sobrevive graças ao seu dom incomparável de camuflagem, quando Katniss o encontra – logo depois de uma mudança de última hora nas regras do jogo (muito suspeita, diga-se de passagem), dá-se inicio a uma nova encenação, eles precisam ser o casal de apaixonados que estão direcionados a um terrível destino, e um quer proteger o outro. Quando menciono que seria óbvio demais se Gale fosse o sorteado para os jogos é devido ao fato de que, quando notamos que Peeta devota os mais lindos e puros sentimentos por Katniss nos faz compreender as intenções de Collins, imagine o conflito e a dor de saber que você precisa matar a pessoa que você mais ama na vida para garantir a sua sobrevivência? Você mataria? É claro que essa pergunta não se restringe somente a Peeta, talvez a questão seja um dos focos dessa história. Até onde você iria para garantir a sua existência?

Peeta, machucado, desperta em Katniss o desejo de mantê-lo vivo, entre beijos e promessas de sobrevivência podemos ver nascer, lentamente, um sentimento que foge de uma simples encenação, só Katniss não percebe. O que parece é que um romance/triângulo amoroso que estava em segundo plano é parte, agora, de uma história conturbada, o que a torna ainda mais prazerosa.

Entre disputas e tentativas, pouco infrutíferas, de manter-se forte até o final, encontramos os três tributos sobreviventes, lutando entre si e contra as bestantes. Cato, jovem do Distrito 2, uma máquina treinada para matar e vencer o jogos, está desesperado, e entrega-se a sua condição de “morto-vivo”. Quando finalmente só restam os amantes desafortunados, a suspeita da mudança de regras é confirmada e temos um outro impasse, que foi genuinamente bem contornado.

Jogos Vorazes é escrito sob uma perspectiva e uma maestria indiscutível, porque lentamente somos apresentados a uma história que nos pesa fortemente os ombros, mas nos dá força e ânimo para continuar a caminhada. O que chama atenção é a maneira como Collins busca uma compreensão para todas as ações de cada personagem e a forma como trabalha as características minuciosamente de cada um deles, não reduzindo nenhum a um simples papel de coadjuvante, o que dá a impressão de que cada personagem exerce uma função, isso se estende tanto quanto suas personalidades (sentimentos, emoções) quanto suas ações e comportamentos.

No final o que posso dizer é que um livro que inicialmente parece destinado a um publico adolescente é na verdade uma história mais complexa do que se pode imaginar – e esperar-. Desista da ideia de que tudo gira em torno de uma violência gratuita (que não é) e sem um propósito maior. Existe um plano imenso e significativo para esse enredo fascinante.


FICHA TÉCNICA DO LIVRO

JOGOS VORAZES

Autora: Suzanne Collins
Editora: Rocco
Ano: 2010

Compartilhe este conteúdo:

Frozen – Uma Aventura Congelante

Compartilhe este conteúdo:

Com duas indicações ao Oscar:

Melhor Animação e Melhor Canção Original por Let It Go

 

É bem verdade que faz algum tempo que as animações deixaram de conquistar somente o público infantil. A cada ano que passa mais filmes desse gênero convidam até mesmo os adultos a sentarem em frente à TV e se deliciar com as mais diversificadas histórias. Este é o caso de Frozen – Uma aventura congelante. A 53ª animação produzida pelos estúdios Walt Disney, inspirada levemente no conto de fadas A Rainha da Neve (1845), de Hans Christian Andersen. Frozen foge totalmente dos clichês de príncipes e princesas, trazendo uma aventura que nos faz sorrir e chorar, e sorrir novamente.

Frozen conta a história das princesas Elsa e Anna, que são separadas por um terrível dom. Elsa, a princesa mais velha, é detentora da capacidade mágica de produzir neve e transformar tudo aquilo que toca em gelo. No entanto, de uma hora para outra, por ser ainda criança, não tem o menor domínio sobre seu dom e, infelizmente, provoca um acidente levando quase a morte da irmã caçula, Anna. É então que Elsa é obrigada a manter-se reclusa.

 

 

As irmãs sempre foram criadas unidas, inseparáveis. Os poderes de Elsa não eram segredo para a família, Anna sempre pedia exaustivamente para que a irmã “fizesse acontecer”. Após o acidente o Rei apenas ordenou “Esconda, não sinta, não deixe que eles saibam” e colocando sobre as mãos da pequena Elsa luvas para protegê-la de si mesma.

 

 

Conforme a análise comportamental, a aprendizagem, inicialmente, se dá por meio da tentativa e erro, ou seja, aprendemos a executar aquelas ações que nos recompensam ou nos ajudam a evitar o sofrimento. No caso de Elsa, para evitar “seu” sofrimento era necessário esconder-se ao máximo, excluindo-se do convívio social, e até mesmo familiar.

Skinner apontou que os eventos que aumentam a probabilidade de ocorrência de um determinado comportamento são denominados Reforços. Um reforço pode ser uma recompensa palpável, um elogio, uma atenção ou uma atividade gratificante (Myers, 1999). A teoria do reforço, então, preceitua que as ações com consequências satisfatórias sobre o indivíduo fazem com que as práticas tendem a ser repetidas no futuro, enquanto o comportamento punido tende a ser evitado.

 

 

Mas quais os tipos de Reforço que Elsa recebeu? Elsa não recebeu nenhuma recompensa positiva por sua reclusão, por manter-se afastada, ao contrário, sentia-se cada vez mais triste, depressiva e sem nenhuma expectativa de vida. Manter-se afastada significava a segurança da sua família e do reino, mas não a sua segurança, não o seu bem estar. Neste caso temos o conceito de Punição, também atribuído por Skinner. Por ter sido inconsequente e colocado a vida de Anna em risco, como castigo e prevenção, os pais da criança resolveram mantê-la presa e distante de quem quer que fosse.

 

 

A punição suprime o comportamento indesejado, mas não orienta o indivíduo para um comportamento mais desejável. A punição também pode acarretar diversos problemas, pois, segundo Skinner (1983), a estimulação aversiva acarreta respostas do sistema nervoso, entendidas como: ansiedade, depressão, baixa autoestima. Além, é claro, de que o comportamento não é esquecido, apenas suprimido. Pode ser que, após a estimulação aversiva ter sido eliminada, o comportamento pode voltar a ocorrer.

 

 

“Esconda, não sinta, não deixe que eles saibam” era a frase proferida constantemente por Elsa. Ninguém poderia imaginar o que se passava dentro das paredes do castelo, em especial no quarto da filha mais velha do Rei. As pessoas sequer imaginavam quantas vezes Elsa teve que repetir essa frase para si mesma, até o ponto de acreditar que era uma aberração e um perigo eminente. Elsa se transformou na solidão em pessoa, não havia amigos para escutá-la, não havia solução para seus problemas, ao contrário, a jovem princesa precisava dia após dia ter um controle sobre seu dom, que estava cada vez mais forte.

O Rei havia dito que o melhor era manter tudo em segredo, e Elsa concordou. Mas, como dito anteriormente, um comportamento punido não é esquecido e pode voltar quando uma estimulação aversiva é eliminada. E foi o que ocorreu.

 

 

Anna não recordava do acidente e por isso não entendia o porquê da irmã nunca sair do quarto. Nem mesmo após a morte dos seus pais em um acidente marítimo. Inúmeras e incansáveis vezes Anna tentou fazer com que a irmã saísse do quarto, respirasse ao ar livre, brincasse com ela novamente. Mas sem sucesso.

 – Você quer brincar na neve? Um boneco pra fazer. Você podia me ouvir, a portar abrir, eu quero só te ver. Nós erámos amigas de coração, mas isso acabou também. – Vai embora, Anna.

– Você quer brincar na neve? De alguma coisa que eu não sei? Já faz tempo que não vejo mais ninguém, até com os quadros da parede já falei. É meio solitário, tão vazio assim, só vendo o relógio andar.

– Elsa, por favor me escuta. Todos perguntam sem parar e me encorajam para te dizer, mas espero por você. Me deixa entrar? Só temos uma a outra, o que vamos fazer? Temos que decidir. Você quer brincar na neve?

(Trechos da música Você Quer Brincar na Neve?)

 

É no dia em que Elsa se torna a rainha que as coisas tomam rumo diferentes. Todo o segredo é revelado por acidente e o reino de Arendelle é transformado em gelo. Com medo da reação da população a jovem rainha foge para as montanhas e Anna, que se sente culpada por tudo, sai em busca do paradeiro da irmã, ao lado do vendedor de gelos, Kristoff, sua rena Sven e do boneco de neve, Olaf – responsável pelos momentos mais cativantes, engraçados e apaixonantes da trama -.

 

 

Tem-se, então, uma das cenas mais belas do filme. Elsa finalmente se sente livre e com total controle sobre o seu dom. Ao assumir sua personalidade, aquela que sempre teve que manter escondida entre as paredes do seu quarto, Elsa entoa a canção Let it Go (Deixe fluir), enquanto constrói uma imensa fortaleza de gelo. Elsa está em seu próprio castelo, sendo ela mesma, mas, sozinha.

(…) um reino de isolamento, e parecia que eu era a rainha. (…) Não posso evitar, o céu sabe que tentei. Não os deixe entrar, não os deixe ver. Seja a boa garota que você sempre teve que ser.  Oculte, não sinta, não deixe que saibam. Mas agora que sabem, deixe fluir. Não pode segurar mais. (…) Eu não ligo para o que eles vão dizer. (…) O frio nunca me incomodou de qualquer modo. É incrível como algumas distâncias fazem tudo parecer menor. E os medos que uma vez me controlaram não podem mais me alcançar. É tempo de ver o que posso fazer. Para testar os limites e progredir. Sem certo, sem errado, sem regras para mim. Estou livre. (…) Eu nunca vou voltar, o passado está no passado. (…) A garota perfeita se foi, aqui eu fico na luz do dia.

(Trechos de Deixe Fluir)

 

 

Mas será que Elsa está realmente livre? Ou continua presa na condição de “perigo ao mundo” que os pais dela sempre destacaram? Por que ao invés de punir e excluir Elsa do mundo, o Rei não foi atrás de soluções para que a criança aprendesse a controlar seus poderes? Por que não treiná-la? Ensinar a como conviver com suas condições especiais?

 

 

Estas são apenas algumas das reflexões que Frozen desperta no público. Ao longo do drama diversas mensagens são passadas ao telespectador de forma impactante e realista. Este é mais um conto que promove a evolução dos contos de fada. Enaltecem o Amor verdadeiro e duradouro, os laços familiares, a importância da confiança e da amizade. Além de toda as relações construídas através da convivência.

 

 

Para encerrar com um toque de magia, temos a frase de Grande Pabbie quando diz que: Só um ato de amor verdadeiro pode descongelar um coração congelado. Fazendo com o que filme mantenha o que trouxe até as cenas finais, a certeza de algo inusitado e a quebra de qualquer clichê presente nas histórias de amor verdadeiro.

 

 

REFERÊNCIAS:

MYERS, D. Introdução à Psicologia Geral. Rio de Janeiro: LCT Livror Técnicos Cientificos Editora, 1999.

SKINNER, B.F. O mito da liberdade. São Paulo: Summus Editorial, 1983.

LIMA, A. A. T. Teorias da personalidade. Série Concursos Públicos: Resumos de Psicologia. Vol 1. 220p.

 

FICHA TÉCNICA:

FROZEN – UMA AVENTURA CONGELANTE

Produção: Walt Disney Animation Studios
Direção: Chris Buck, Jennifer Lee
Gênero: Animação, Comédia, Imaginação
Ano: 2013

Compartilhe este conteúdo: