Não Pise no meu Vazio: e se o vazio for tudo o que temos?

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Ana Suy, psicanalista, escritora e professora brasileira, aborda, em suas obras, temas como amor, solidão e desejo, fazendo dialogar a literatura e a psicanálise. Com uma escrita acessível e cativante, a autora faz emergir, através de suas palavras, as angústias de existir, a complexidade do Amor e o constante preenchimento-esvaziamento do vazio que faz morada e companhia na caminhada da vida. 

Não Pise no meu Vazio, seu segundo livro publicado, reúne textos escritos ao longo de aproximadamente 10 anos (ou talvez mais), muitos dos quais dando a impressão de que você acabou de roubar o livro de poesias de alguém, que fica num lugar muito especial na cabeceira da cama, e está lendo uma coisa que não devia, tamanha a proximidade e intimidade que ela traduz em suas palavras. 

Fazer a resenha de uma obra é sempre muito difícil porque você fala de um lugar que é somente seu e, especialmente no caso desse livro, tenta usar das palavras para fazer emergir uma realidade que talvez não tenha se feito posta nem para você – e é quando você se põe à tarefa de escrever. Quando se lança mão da palavra e as coloca no mundo, nós perdemos (e ganhamos?). Perdemos porque não temos controle nenhum do que o outro fará a partir do que foi dito por nós, não temos controle nenhum do que o outro fará emergir a partir do que lhe é apresentado. E ganhamos, pois, afinal, nos resta outra opção? Ganhamos na construção dessa nova realidade, que é coletiva e diferente daquela que só nos pertencia. 

Por isso, essa resenha começa com essa constatação: não faço uma resenha do livro Não Pise no meu Vazio, de forma objetiva, mas do que a leitura do livro deixou em mim – o que, com um pouco de sorte, será discrepantemente diferente para você. E, além disso, para fins de organização e fluidez, decidi colocar fragmentos dos textos de Ana Suy, aqueles recortados do texto original, em itálico, pois assim não desrespeito a autoria dela e tampouco preciso referenciar exaustivamente todos esses trechos. 

O livro é dividido em três capítulos: do que preenche, do que esvazia e do que preenche e esvazia ao mesmo tempo. Parafraseando a autora, no primeiro, a pegada é mais de “sofrência”: mulheres (porque o eu lírico é feminino) que insistem em amar e em declarar amores exagerados, enquanto que o segundo fica ligeiramente mais suave. Já no terceiro, o amor parece deslizar de um endereçamento a uma pessoa para se dirigir ao vazio, ao nada, à escrita.  

Assim sendo, os textos embasam-se, em sua maioria, sob o olhar psicanalítico do vazio, da ideia de que o desejo, na verdade, é o desejo do desejo – e, todas as vezes que se completa um desejo, há de existir um outro. Na ideia de que o ser humano não encontra nenhum objeto para preencher seu vazio já que este não é natural, ele é fruto da linguagem – e, no entanto, tenta-se implacavelmente preenchê-lo, destruir a suposta angústia sem nome, ser possuído por um outro que, em ideais românticos, pode preencher esse buraco (escancara-se a falsa ideia de completude). 

Paradoxalmente, preencher esse vazio (completar um desejo, experienciar a ausência da falta), é cessar esse desejo, é fazer emergir novamente a angústia – a luta humana é constante para manter esse vazio que lhe possibilite desejar. É justamente a falta que a falta faz que gera a angústia. Resumindo, não é possível viver sem o vazio, ao passo que estamos sempre tentando preenchê-lo com os objetos do mundo. Como cada um vai contornar esse vazio, como vai encontrar subsídios para, brevemente, sentir-se não vazio (para logo depois encontrar-se de novo na circularidade de preenchimento-esvaziamento), é individual e subjetivo. Ana Suy o faz escrevendo. 

Na primeira parte, os textos de Ana Suy falam sobre o amor, e aqui é certo que o livro, de fato, dialoga muito com A gente mira no amor e acerta na solidão, o primeiro livro publicado pela autora. Por muito, a teoria do outro suplanta os versos de Não Pise no Meu Vazio, pois Ana Suy disserta sobre o amor e sobre como somos seres faltantes, ainda que tentemos preencher essa falta e o que o apaixonamento por um outro tenta mascarar. Buscamos que o outro seja nossa metade (ideal do amor romântico) e, ao ver que isso não é possível, nasce o Amor. Quero quase acreditar que me misturo a você, mas no fundo saber que continuo sozinha em mim.

Por isso, o amor que dura não se funda na fusão de dois, mas na impossível comunhão, na solidão dos dois. Estar vivo é uma perpétua incerteza. É uma oscilação contínua entre o cheio e o vazio, entre o que me pertence e o que não pertence. Ana Suy traduz o excesso de quando dois viram um, da urgência de que haja um espaço entre duas pessoas, de desempenhar papéis para além dos que os outros esperam que você tenha em prol de um desejo. Porque, na verdade, quando há a “cura”, quando um vira exatamente o que o outro queria, quando todos os gostos finalmente tornam-se os mesmos, o que sobra? O que sobra se não nos apaixonamos por aquilo que é espelho? 

Alguns de seus poemas também reservam um espaço para teorizar o que é o amor. Aqui, lembro muito da Carla Madeira, que pergunta o que é o amor, senão um conjunto de vários verbos “gostar” ao mesmo tempo? Ainda acrescento: o que é o amor senão um amontoado de vários verbos diferentes? Que conjugações de verbos queremos que façam parte do nosso significado de Amor? 

Seus versos indagam sobre a importância do cultivo de jardins secretos, de partes nossas que são só nossas, da importância que o desejo do outro por outras coisas desempenha para a manutenção do nosso desejo por ele, para início de conversa, do cultivo de outros vínculos, de uma tapeçaria de vários fios, do “estar” vários papéis diferentes e com diferentes pessoas, pois é preciso que haja partes nossas que fiquem caso esse amor romântico termine. 

Outro ponto abordado é a própria angústia do existir, traduzida em versos de Eu queria existir menos. Eu sinto muito e queria sentir menos; Minha alma quer fugir do meu corpo para se fragmentar por aí. Quero entrar em combustão espontânea e tirar férias de mim. Parece tristeza, mas é só cansaço de ser. Roube-me de mim, por favor. Aqui, reflete-se sobre a falta que não pode ser completada, mas que pode ser reconhecida. O que fazer para preencher parte de um vazio, já que sentir um vazio inteiro é parecido com a morte

Na segunda parte, Ana Suy escancara ainda mais as fragilidades que o ideal de completude pode trazer para uma relação, quando escreve que Pode ser que o amor esteja justamente em saber a medida de aproximação e de distanciamento – ainda que se faça bom uso dela sem saber. Esse emaranhado de existências, em que já não se sabe o que sou eu e o que é você, certamente não se chama amor. Talvez se chame excesso de amor. Será que o excesso de amor mata o amor?; Assim como começamos a morrer no momento em que começamos a nascer, também o nosso amor começou a morrer no instante em que começamos a nos amar. E quando esse fim terminar de acabar? O que será de mim? Serei? Como não doar cada pedaço da minha existência a esse amor? Como deixar o amor morrer e continuar viva? Como não definhar enquanto assisto ao desejo que você tem/tinha por mim virar defunto?

As perguntas não têm intenção nenhuma de serem respondidas pela autora, mas propõem a cada um a tarefa idiossincrática de encontrar maneiras para administrar o parodoxo, impossível de ser solucionado, entre segurança e liberdade. Entre a aproximação e o distanciamento necessário para que haja aproximação por outras coisas e pessoas da vida e pela própria pessoa, inclusive. A vontade de estar junto tem espaço para existir, sobretudo, quando há momentos de separação – não necessariamente físicos, mas principalmente simbólicos. 

Essa parte é recheada de perguntas e reflexões sobre aspectos que não têm resposta pronta ou moldes de como lidar ou como atravessar a dor: talvez aqui esteja escancarado o papel de um Outro para coconstruir conosco, através da linguagem, realidades diferentes que reservam menos espaço para o sofrimento agudo.  

A última divisão do livro é a que mais me permitiu reflexões e a que mais fala do vazio propriamente dito. Minha vida anda difícil, às vezes tenho umas tristezas repentinas, às vezes umas alegrias doloridas, às vezes tudo fica mais ou menos… Sei lá, sempre me parece faltar alguma coisa, quando sei que na verdade não falta nada e isso é muito estranho. Buscamos sentido na nossa existência para ter ideias de quase completudes transitórias que talvez nos permitam fazer as pazes com o vazio que sentimos. Tentamos preencher o vazio no peito com algum sentido, secretamente sabendo que ele não pode ser preenchido. Mas pode ser contornado, com amor ou com sorte.

No posfácio do livro, Danielle Barriquello disserta que Não Pise no Meu Vazio é um convite a desvendar os versos de vida dos amantes, que na busca por compreender o que sentem, enchem-se, esvaziam-se e sustentam o incompreensível do amor, preservando e suportando o vazio necessário que move a vida na busca de sentidos. Enquanto estudante de Psicologia e aluna de último ano de curso, sempre aproveito muito esses livros que me possibilitam distinguir reflexões diferentes das que eu tinha pensado até então, principalmente pensando no papel que estas podem ter no processo dos meus pacientes, já que o Amor é tema recorrente e muitas das angústias traduzidas por Ana Suy vêm expressas de formas únicas e subjetivas nas diversas formas de relacionamento conversadas em terapia. 

Por fim, fica a recomendação da leitura e o convite de fazer algo com o que foi lido, pois, já que perdemos o controle sobre a palavra no instante em que ela é dita, felizmente, elas encontrarão um novo caminho ao se alojar no vazio de quem as recebe.

 

FICHA TÉCNICA

Título completo: Não Pise no Meu Vazio: Ou o Livro do Vazio

Autora: Ana Suy Sesarino Kuss

Editora: Planeta

Ano de publicação: 2023

ISBN-10: 8542222555

ISBN-13: 978-8542222555

Número de páginas: 208

Gênero: Poesia, Psicanálise, Literatura Brasileira

Formato: Capa comum e eBook

Idioma: Português

Premiações: Semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 

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