Medo Líquido: os fantasmas contemporâneos

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O PAVOR DA MORTE

O que é a morte? Para muitos o fim, para outros o apenas o começo. O fato é que ela é inevitável para todos, independentemente da espécie, povos, línguas ou classe social. Ela não se importa, em como, os indivíduos se comportam. Se são bons, ou ruim, se são “puros” ou “impuros”. O “fim” faz parte da regra do jogo, e não há nada que o ser humano possa fazer para detê-la. “Só a morte significa que nada acontecerá daqui por diante, nada acontecerá com você, ou seja: nada que você possa ver, ouvir, tocar, cheirar, usufruir ou lamentar. É por essa razão que a morte tende a permanecer incompreensível para os vivos” (BAUMAN, 2008, p. 44).

O autor considera que o medo da morte é um processo inato ou original de todas as pessoas. A morte é um conteúdo acessível a consciência, e constantemente se faz presente na vida de todos da espécie humana, causando em alguns um medo incontrolável. “[…] o medo que se origina, não da morte batendo a porta, mas de nosso conhecimento de que isso certamente ocorrerá, mais cedo ou mais tarde […] (BAUMAN, 2008, p. 46).

Fonte: http://zip.net/brtMZW

A morte pode ser descrita de forma diferente através do processo cultural e das crenças, pois alguns, tendem a vê-la como apenas uma passagem, no qual somente o corpo físico morre e, a alma é imortal, ou seja, vive para toda a eternidade. “[…] não vão deixar o único mundo que existe para se dissolver e desaparecer no submundo da não existência, apenas se mudarão para outro mundo, onde continuarão existindo […]” (BAUMAN, 2008, p. 46). Para estes o medo pode não existir ou pode ser menor. Para outros o medo do desconhecido a incerteza do que poderá ou não acontecer após a morte.

Segundo Simonetti (2003, p. 14) “A imortalidade é algo intuitivo na criatura humana. No entanto, muitos têm medo, porque desconhecem inteiramente o processo e o que os espera na espiritualidade”. Durante todo o ciclo vital relações são estabelecidas e vínculos são criados. Com a chegada da morte de algum ente querido esses laços físicos são desfeitos, porém podem nunca serem esquecidos, pois quem morre levará consigo “parte” de pessoas e consequentemente deixará também “partes” suas, para outros. Assim os que sobrevivem vão ressignificando ou não suas vidas.

O medo pode provocar diversas reações físicas e psicológicas e também ser descritos de várias maneiras, no entanto o autor o descreve como:

Os medos que disseminam são incuráveis e, na verdade, inextirpáveis: chegaram para ficar-podendo ser suspensos ou esquecidos (reprimidos) por algum tempo, mas não exorcizados. Para esses medos não se encontrou nenhum antídoto nem é provável que se venham a inventar algum. Eles penetram e saturam a vida como um todo, alcançam todos os recantos e frestas do corpo e da mente, e transformam o processo da vida num ininterrupto e infinito jogo de “esconde-esconde” (BAUMAN, 2008, p. 44).

Fonte: http://zip.net/bwtMw8

O MEDO E O MAL

As formulações para o conceito do que seria o “mal” têm sido feitas no decorrer dos tempos. Bauman (2008) pontua as variações do termo, relacionando-o a condutas perversas. No entanto, aponta que não é possível explicá-lo totalmente, tampouco evitá-lo. Considerando algumas catástrofes naturais como manifestações do “mal”, destaca-se seu caráter imprevisível, reforçando sua inevitabilidade e imprevisibilidade. No entanto, questiona-se o mal advindo do humano, em termos de prenúncio e consequências.

O sociólogo polonês enfatiza a análise de Hannah Arendt quanto à banalização do mal. Quanto mais as práticas cotidianas são racionalizadas, maior a tendência de não pensar acerca da natureza das tais. E nesse ponto a opinião de Bauman é ratificada, pois salienta que há condições apropriadas ao surgimento de condutas inclinadas ao mal. Observando-se tais circunstâncias, chega-se a um ponto crucial: em vista da sua inevitabilidade, há que se reconhecer que não apenas a natureza, mas o humano pode dobrar-se ao mal.

Ainda que não se discuta ou se reconheça a maldade como intrínseca ao ser humano (HOBBES, 2008 apud SOUSA, 2013), Bauman relata a possibilidade evidente de que mesmo o mais “normal” incorra em atos perversos. Para Correia (2005, p. 87-88), Pode optar por isso

Na busca por identificar o fundamento da propensão para o mal no homem, Kant se vê diante da dificuldade de ter de conciliar natureza e liberdade. Com efeito, se se compreende o mal como decorrente de algum condicionamento natural, ainda que seja uma fraqueza, necessariamente o homem seria inimputável, pois não poderia ser considerado efetivamente responsável (na medida em que não seria livre) pelas ações que desencadeasse. Kant, por razões óbvias, busca evitar uma tal compreensão, sustentando que a propensão para o mal “é uma tendência deliberativa e, como tal, completamente distinta de um impulso natural ou algo assim”.

Fonte: http://zip.net/bqtNZb

Entende-se, portanto, que o medo constante na contemporaneidade cerca o fato de que ninguém pode receber confiança. Uma vez que a configuração atual é instável, acrescente-se a possibilidade de alguém poder, deliberadamente, inclinar-se ao mal. E a despeito das consequências dramáticas do “mal” da natureza, Bauman enfatiza que o produto do mal humano pode ser tão catastrófico quanto o anterior.

O HORROR DO INADMINISTRÁVEL

Bauman inicia o terceiro capítulo de sua obra referenciando ideias de Jean-Pierre Dupuy, importante filosofo moderno e ao desenrolar deste capítulo, Bauman reforça a ideia de que a humanidade está doente e a beira de um colapso, enfatizando que “A humanidade tem agora todas as armas necessárias para cometer o suicídio coletivo, seja por vontade própria ou falha – para aniquilar a si mesma, levando o resto do planeta à perdição” (BAUMAN, 2008, p. 97-99).

A corrida contra o tempo, disputas de poder, busca por status, longas distâncias e pouco tempo, excesso de trabalho e sobrecarga emocional se debruçam sobre a vida do homem moderno com o rótulo de globalização, sobretudo esse evento e sub-eventos trazidos pela globalização se chocam com os valores morais carregados de maneira intrínseca por cada um, e Bauman de maneira esplendida reforça que: “a civilização deve seu potencial mórbido (ou mesmo suicida) às mesmíssimas qualidades de que extrai sua grandeza e seu glamour: a aversão inata à autolimitação, a transgressividade inerente e o ressentimento e desrespeito em relação a todas as fronteiras e limites” (BAUMAN, 2008, p. 100-101).

Ou seja, de onde os homens extraem sua couraça de poder terreno é também a fonte de seus demônios doentios que afetam e contaminam a humanidade, como uma dialética onde de um lado encontram-se os prazeres e ganhos como dinheiro, conforto, luxo, status, reconhecimento social e poder, em contrapartida temos a fadiga, avareza, ganancia, esgotamento psicológico entre outros fatores e agravantes negativos, como uma dialética grega de apolíneo e dionisíaco.

Fonte: http://zip.net/bftMZz

Para manter a retroalimentação entre as partes, Bauman (2008) traz nesse capítulo o termo detours que significa desvio, ele também aborda o significado deste termo dentro da modernização, que segundo ele tem a ideia de uma satisfação ou recompensa temporária, ou seja, para evitar o esgotamento total ou um impacto extremamente negativo em si mesmo ou no outro, há uma breve e temporária satisfação, acontece um momento de compensação para aquele provável dano, então a partir dessas breves recompensas, a humanidade se compra e se vende para uma recompensa ilusória e breve.

Ao decorrer do capítulo, Bauman (2008) traz impasses que denunciam até que ponto o homem é capaz de se submeter, e traz referencias de obras de outros autores acerca disso, mostrando-nos de forma objetiva e clara como a persuasão e a busca por controle, poder e domínio conduzem a vida da humanidade.

O TERROR GLOBAL

Bauman afirma que com a globalização, surgiram aspectos negativos que resultaram em medos, inseguranças e incertezas na sociedade. A  “abertura” da sociedade, expressão de Karl Popper como coloca Bauman (2008 p.126), teve como efeito colateral a “globalização negativa” que demonstra um cenário de irregularidades e anormalidades que se tornam regras. O autor descreve que a globalização é altamente seletiva do comércio  e do capital, da vigilância e da informação, da coerção e das armas, do crime e do terrorismo, todos esses desdenham a soberania nacional e desrespeitam quaisquer fronteiras entre os Estados.

O planeta globalizado, comenta Bauman (2008, p.127), ‘habitado por sociedades forçosamente ”abertas” a segurança não pode ser obtida”, o autor acrescenta que consequentemente a “globalização negativa” seria a causa da própria injustiça e as origens dos nossos medos estão relacionadas com a ordem política e a ética. Convivemos com incertezas e com medo em nossos dias.

Fonte: http://zip.net/bhtNbY

Costa (1998) apud Santos (2003) coloca que o medo seria fronteiriço entre sensações e sentimentos: “angústia, mal-estar, desconforto são eventos afetivos que podem ser descritos como sentimentos ou como sensações, dependendo de critérios adicionais como maior ou menor reflexividade, maior ou menor modificação dos estados físicos dos sujeitos etc.”

Conforme coloca Frattari (2008), “ não  há a possibilidade sequer de se falar em termos de ‘riscos’, uma vez que estes podem, de acordo com sua definição ser calculados e, assim, minimizados ou evitados”.  Bauman (2008,p.129) fala que riscos são importantes desde que continuem calculáveis e passíveis de uma análise de custo-benefício, a preocupação aos planejadores da ação são os que podem afetar os resultados, numa perspectiva relativamente curta de espaço e tempo.

O grande desafio do século atual, segundo Bauman (2008 p.166), é a aproximação do poder e a política de forma global. Com a globalização negativa, o poder e a política se desenvolveram em direções opostas. As ações não podem ser locais e sim globais.

Bauman (2008 p.167) afirma que: “…o medo é um dos aspectos mais representativos nas sociedades abertas atualmente, com isso a insegurança e a incerteza nos tornam frágeis e com um sentimento de impotência”. Esse sentimento de impotência persisti, porque não percebemos estar no controle, seja sozinhos, grupos ou coletivamente dos assuntos que são pertinentes a nós, como da mesma forma em relação ao controle de assuntos do planeta. Bauman acrescenta que é preciso criar ferramentas que ajudem a solucionar os males globais e assim recuperar o controle de nossas forças.

Fonte: http://zip.net/bctMGz

TRAZENDO OS MEDOS À TONA

Segundo autor, em sua busca por saber sobre os medos advindos da modernidade líquida, surgidos da insegurança e consequentemente nutridos por ela, sugere que os países desenvolvidos traz uma expectativa de segurança, de estarem protegidos,  nessa parte desenvolvida, os mesmos são considerado o povoado mais seguro, se empregando de meios eficazes de se protegerem, concomitantemente, estão usufruindo de todas as três fachadas em que se agarram os combates em conservação da existência: em oposição a potência da natureza, em oposição ao enfraquecimento inato de nossos corpos e em oposição às ameaças da violência imediatas dos indivíduos.

Contrariando o supracitado, é neste cenário de conforto que o caos se instala, a obsessão por segurança é inevitável, o medo toma conta dessas pessoas, e os torna deslumbrados por tudo que envolve segurança e proteção.  (BAUMAN, 2008).

A promessa moderna de evitar ou derrotar uma a uma todas as ameaças à segurança humana foi até certo ponto cumprida – embora não a promessa reconhecidamente exagerada, altamente ambiciosa e com toda probabilidade impossível de cumprir, de acabar com elas de uma vez por todas. O que, no entanto, flagrantemente de se materializar é a expectativa de liberdade em relação aos medos nascidos da insegurança e por esta alimentados (BAUMAN, 2008, p.169).

Fonte: http://zip.net/bmtMVX

O medo por sua vez, traz na sua raiz a insegurança, a sociedade vive no mais completo desespero, uma busca desenfreada por tudo que possa garantir sua segurança, ou seja, o pânico se instalou na contemporaneidade. Cabe ressaltar que os seres humanos não são isentos de suas responsabilidades, a formas egocêntricas e desumana de ser traz consigo uma participação nesse quadro alarmante de medos sucedidos das incertezas. (BAUMAN, 2008).

Podemos dizer que a variedade moderna de insegurança é marcada pelo medo principalmente da maleficência humana e dos malfeitores humanos. Castel atribui à individualização moderna a principal responsabilidade por esse estado de coisas (BAUMAN, 2008, p. 171).

A humanidade está em volta de seus próprios interesses, a individualidade se instala em maior grau na sociedade moderna.

[…] em nossa sociedade, por trás do medo e da violência, há, na verdade, uma profunda insegurança em relação às transformações que a modernidade trouxe em seu bojo: individualismo, competitividade, perda do status social, perda dos referenciais comunitários, instabilidade emocional e material, desencantamento religioso e, em última instância, as consequências da globalização negativa. Nesse sentido, é importante definir e compreender o estágio atual da modernidade e os elementos que dela decorrem, obscurecendo nosso cotidiano e nossas vidas. (DAMIÃO, 2012, p .26).

O medo paralisa, faz crescer nossas defesas, o que é inevitável diante dos acontecimentos inerentes a espécie humana e dos adventos da contemporaneidade, consequentemente os medos vem à tona.

Fonte: http://zip.net/bvtNrz

O PENSAMENTO CONTRA O MEDO

Bauman termina o livro não fazendo um resumo do que foi disposto nos capítulos anteriores, ou mesmo se coloca alheio a situação, retirando sua responsabilidade do processo. Mas se coloca e também os demais produtores de reflexão social, definido por ele como os “intelectuais”. Em prática, o pensamento contra o medo é justamente usar do pensar para combater os medos que assolam a sociedade pós-moderna. Por isso a importância dos pesquisadores e produtores de conhecimento intelectual buscarem formas de idealizar novos modos positivos e esperançosos.

Para tanto é preciso que tomem consciência do poder que possuem. Em toda a história os sábios sempre davam os conselhos, porém não o executavam, sendo assim nunca tiveram o devido conhecimento e reconhecimento que tinham no processo.

Os intelectuais nunca confiaram realmente em seus poderes de transformar o mundo de carne e osso. Precisavam de alguém para empreender a tarefa que, insistiam, deveria ser realizada. Alguém com o poder real de fazer as coisas e assegurar que continuassem sendo feitas (o conhecimento não necessita do poder para mudar o mundo? Da mesma forma que o poder precisa do conhecimento para mudá-lo da maneira certa e com o propósito correto?). (BAUMAN, 2008, p. 210).

Sendo assim deve-se levar em conta a imensa responsabilidade no combate aos medos, assim como preconceitos, mentiras ou injustiças que assolam a vida dos sujeitos e das relações contemporâneas, não se mostrando assim indiferente a tais mazelas sociais afim de redesenhar a “possibilidade de um atalho para um mundo mais adequado à habitação humana que se perdeu de vista e parece mais irreal do que antes” (BAUMAN, 2008, p. 221).

Sendo assim, o que se espera é essa união entre os intelectuais e o povo, de modo a juntos caminharem em um processo terapêutico, e assim ressignificando a “humanidade e seu conjunto”.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. MEDO LÍQUIDO. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

CORREIA, Adriano. O conceito de mal radical. Trans/Form/Ação, Marília, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732005000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 mai. 2017.

SOUSA.

DAMIÃO, Abraão Pustrelo. Modernidade, Medo e Violência: Reflexões Teóricas e o Caso de Marília/SP. 2012. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/CienciasSociais/Dissertacoes/DAMIAO_A_P_ME_2013.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2017.

FRATTARI, Najla Franco. Insegurança e medo no mundo contemporâneo: uma leitura de Zygmunt Bauman. Sociedade e Cultura, v. 11, n. 2, 2008.

SANTOS, Luciana Oliveira. O Medo Contemporâneo: Abordando Diferentes Dimensões. Psicologia Ciência e Profissão, 2003, 23 (2), 48-55

SIMONETTI, Richard. Quem tem medo da Morte? 3a Edição – Ceac Editora -Bauru-SP Janeiro/2003 <http://bvespirita.com/Quem%20Tem%20Medo%20da%20Morte%20(Richard%20Simonetti).pdf.> Acesso em 20 mai. 2017.

SONIELSON L. Vamos falar da maldade? (En)Cena. Disponível em: <http://encenasaudemental.com/comportamento/insight/vamosfalar-da-maldade/>. Acesso em: 22 mai. 2017.

 

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O hiperconsumo e o mal-estar contemporâneo

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O relato a seguir refere-se ao Psicologia em Debate realizado no CEULP/ULBRA, sala 203, às 17 horas do dia 26 de abril de 2017. O tema “O impacto do hiperconsumismo na autopercepção” foi apresentado pela acadêmica de Psicologia, Iule Landinho, a partir da obra “Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria”, de Zygmunt Bauman (2008).

Fonte: http://zip.net/bltHRs

 

Conforme a indicação do título do livro, a exposição feita pela acadêmica voltou-se ao consumo excessivo na sociedade. Iule discorreu acerca da modificação da sociedade no que tange à liberdade versus segurança. Para melhor compreender tal colocação, busquei fontes relacionadas à obra de Bauman. A liberdade, pois, é preferível atualmente em detrimento da segurança, uma vez que, no passado, esta última implicava em tempo para construção de um patrimônio – sendo este a salvaguarda futura. Aquela primeira, no entanto, compactua com a proposta da sociedade consumista: estar sempre em movimento, consumir cada vez mais e viver em um “eterno” presente.

Além disso, a acadêmica pontuou quanto ao sofrimento atual que advém da abundância de possibilidades de escolha. Para estar sempre em movimento, a sociedade consumista provê infinitas alternativas, posto que se deve consumir com rapidez e tão logo substituir-se aquilo que se tornou ultrapassado. Por último, destaca-se o status, o pertencimento conferido pelo consumo. Não consumir é quase como não existir.

“Eu quero todas as coisas”.
 Fonte: http://zip.net/bhtJtN

 

As considerações advindas da obra de Bauman são sobremodo relevantes. Durante o debate lembrava-me de outra obra do autor, “A vida fragmentada: ensaios sobre a moral pós-moderna” (2007), que havia lido um pouco antes do evento. Ponderando acerca de todos os pontos debatidos, ascenderam-se minhas inquietações quanto à sociedade atual (e àquela que há de vir!).

É desesperador viver num contexto onde o “ter” determina o “ser” e as mídias sociais, enquanto itens de consumo, aceleradamente tomam o lugar de relações pessoais próximas – e estas, quando aparentemente “próximas”, são apenas episódicas e superficiais, não deixando, portanto, nenhuma consequência no que tange à reciprocidade (BAUMAN, 2007). Igualmente desconcertante é a lógica do rápido consumo e substituição de mercadorias se aplicar às pessoas e relações, afinal, há milhares de possibilidades. Uma pessoa/relação obsoleta pode logo ser descartada e substituída, mantendo o movimento consumista.

Fonte: http://zip.net/bktJwd

 

Considero importantes as reflexões acerca das dinâmicas atuais da nossa sociedade. Seria desejável que todos refletissem e se mobilizassem acerca de tais fatos para modificá-los. É certo que é quase impossível não estar envolvido em alguma forma de consumo. Porém, como expresso em minhas inquietações, anseio por algum nível de libertação das pessoas no que se refere às imposições da sociedade hiperconsumista. Talvez eu deseje algo utópico (“sonhe, Alice”…). No entanto, como afirma Gonzaguinha, “eu fico com a pureza da resposta das crianças…”.

Acredito na valorização do “ser” sem a imprescindibilidade do “ter”, bem como na construção de um patrimônio “pessoal” (conjunto de pessoas); ou seja, que se possa construir relações realmente próximas, recíprocas, onde seja possível encontrar segurança. Que os infinitos bens de consumo não sejam supervalorizados, tampouco utilizados para ocupar um lugar que, entendo, sempre será de pessoas, de contatos!

REFERÊNCIA:

BAUMAN, Zygmunt – A vida fragmentada : ensaios sobre a moral pós-moderna. Lisboa : Relógio d’Água, 2007. 311 p. ISBN 9789727089321

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Os percursos da Democracia: reflexão, crítica e conflito

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A democracia é, atualmente, uma forma de governo que abrange todo o Ocidente. De origem grega, o termo designa o poder que é exercido pelo povo (demos: povo; kratía: poder). O presente trabalho aborda, sobretudo, a perspectiva de Goldhill (2007), para compreender o contexto de desenvolvimento desse sistema, bem como contrastá-lo com a democracia moderna. O contexto social da Grécia Antiga, mais precisamente em Atenas, no século VI a.C., contribuiu para a adoção de diversas medidas políticas, estas culminando em uma forma de governo democrático.

As sociedades ocidentais afirmam constantemente a relevância de uma política fundamentada na democracia. Esta é compreendida como a melhor estrutura de governo, desprezando-se aquelas que lhe são opostas, tais quais os regimes ditatoriais. Mais que mero exercício popular do poder, a democracia implica em reflexão, crítica e conflito [1]. Desde o seu surgimento “A discussão era indispensável […]. O povo ateniense queria que cada questão lhe fosse apresentada sob todos os seus diferentes aspectos e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras” [2].

Fonte: http://zip.net/bptHNj

Considerando seu emprego usual nos discursos políticos de grande parte das sociedades, convém voltar-se aos primórdios da democracia para além da origem conceitual. A exploração histórica que remete a Atenas de 2.500 anos atrás se justifica ao passo que “Os democratas precisam questionar que forma deve tomar seu governo, e como ele se compara com outras formas de autoridade, hoje e no passado” [1]. O panorama fornecido pela Grécia Antiga permite que se compreenda os rumos que a democracia tomou no decorrer dos séculos, bem como suas possibilidades e limitações.

Primórdios da democracia

Atenas era governada por uma classe privilegiada de aristocratas, os quais detinham o poder político e econômico. Antes de a democracia ser implementada de fato, Goldhill destaca dois nomes que a influenciaram positiva e negativamente. O primeiro, Sólon, foi líder da cidade-Estado em 590 a.C. De acordo com o autor, dentre as medidas adotadas, destaca-se o direito de todos os cidadãos em recorrer a um júri, e a servidão tornou-se ilegal quando implicava em empréstimos feitos pelos abastados aos mais pobres. Tais ações foram positivas visto que favoráveis às classes populares.

O segundo líder, Pisístrato, tornou-se um ditador em 560 a.C. Sua influência é considerada negativa devido a liderança de um grupo de homens das colinas, visto que “A tirania era o trunfo desse […] grupo” [1]. Apesar de ser reconhecido como um tirano, o autor mencionado revela que Pisístrato realizou grandes obras que contribuíram ao desenvolvimento cultural de Atenas.

Bustos de Sólon e Psístrato, respectivamente.

Após a queda de Pisístrato e seus liderados, entra em cena a figura principal a firmar a estrutura para o estabelecimento da democracia: Cleistenes. Em 508 a.C., ele conquistou a liderança de Atenas e propôs

[…] a completa reorganização da política referente ao espaço de Atenas, e com isso o senso de pertencimento, de cidadania. Ele requeria que todo cidadão – cidadãos emancipados do sexo masculino, maiores de 18 anos – se registrasse em uma deme. […] O importante impacto político dessas bases se dava no estabelecimento de estruturas de autodeterminação em cada uma das comunidades, concedendo a elas um senso de responsabilidade por tudo o que acontecia ali [1].

As demes eram como distritos, porém, constituídas com base no sentimento de pertencimento de cada cidadão que a habitava. Atenas organizava-se em dez conjuntos de demes, formando tribos que autogeriam-se e possuíam estruturas religiosas e financeiras próprias [1]. A responsabilidade tratada acima se relaciona ao fator de grande destaque na democracia ateniense: o poder concedido aos homens, que de forma igualitária tomavam as decisões referentes a cidade-Estado. Por meio da Assembleia e das cortes populares, Cleistenes contribui à participação popular na tomada de decisões políticas, retirando da autocracia os privilégios quanto a tais questões.

A participação ativa na política era um sinônimo de cidadania, algo sobremodo relevante para os atenienses. No entanto, estabeleceu-se às custas da exclusão de mulheres, homens escravos, menores de idade ou aqueles que não fossem atenienses (nascidos em Atenas, bem como os seus genitores). Betthany Hughes destaca em documentário [3] que, “De cada três pessoas que moravam em Atenas uma era escrava. Os atenienses eram vigorosos democratas porque tinham […] os prisioneiros de guerra feitos escravos para realizar o trabalho sujo”. Corroborando com a ideia de Aristóteles quanto ao servilismo inato de determinadas classes [1], tem-se uma das bases inconvenientes sob as quais a democracia se desenvolveu.

Cleistenes. Fonte: http://zip.net/bvtHx7

Apesar dos aspectos negativos dessa democracia, a partir de Cleistenes,

Pela primeira vez, o povo de um Estado estava comprometido com a autodeterminação, com a autonomia e a responsabilidade para tomar decisões – a tarefa de governar. Cleistenes estabeleceu os princípios estruturais por meio dos quais a democracia ainda funciona: cidadania baseada em afiliações locais e nacionais, instituições administradas por e para os cidadãos, estruturas de poder combinadas e responsáveis, num sistema de controle mútuo das repartições governamentais [1] .

Estrutura democrática ateniense versus democracia moderna

O funcionamento da democracia na antiga Atenas revela o quão engajado estava o cidadão ateniense no agir político da cidade-Estado. Ali, a participação era o estandarte. Assim, é delineado o contraste entre o agir democrático em seus primeiros tempos com o dos tempos hodiernos, onde os indivíduos limitam-se a assistirem passíveis o desenrolar político de sua comunidade.

O significado de cidadania unia os cidadãos atenienses, independentemente da posição social que eles tivessem.  Aos que eram das classes mais baixas e não tivessem condições financeiras para participar de certa atividade política, como uma eleição, outorgava-se lhes dinheiro para que pudessem ir ao local no qual exerceriam papel de sujeitos democráticos. O ideal era que todos participassem enquanto sujeitos que conheciam e se importavam com seu sistema de tomada de decisões.

O modo pelo qual eram escolhidos os oficiais – exceto o posto de General –, através de seleção aleatória ou pela sorte, deixava claro que todo e qualquer cidadão poderia ser um personagem importante no agir político de sua cidade. Assim sendo, essa forma de seleção dava enorme possibilidade a grande parte dos cidadãos atenienses de atuarem em cargos públicos. Goldhill [1] ressalta que, numa década, “[…] entre um quinto e um décimo de todos os cidadãos serviria no Conselho […]”, onde eram deliberados assuntos importantes ao povo.

Fonte: http://zip.net/bvtHyk

O sujeito democrático ateniense era ativo, poderia (e deveria) decidir acerca de todos os temas importantes para a comunidade, desde as leis até iniciativas de guerras. O indivíduo se envolvia em questões cujos desfechos inevitavelmente afetariam sua vida. É evidente o contraste com as democracias ocidentais modernas, cujos cidadãos são aficionados por direitos e, de modo geral, limitam-se a somente verem seus representantes tomarem decisões por eles, muitas vezes sem consultar seu eleitorado.

Na democracia ocidental moderna, uma parcela reduzida de indivíduos é tida como apta para o agir político; na antiga, todos os cidadãos poderiam desenvolver em si o sujeito democrático, sendo personagens ativos e determinantes. Mesmo o cargo de general, ou a magistratura – postos mais elevados, sendo esta última determinada pelo sorteio de uma lista final –, “[…] permaneceram estritamente sob a autoridade da Assembléia, e não podiam dirigir ou instruir a Assembléia ou o Conselho” [1].

Ainda que distinta da incipiente democracia grega, o atual sistema assemelha-se àquela no que tange a três princípios, a saber: a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e a responsabilidade. O primeiro implica na liberdade que todo cidadão tem para falar, expressar-se nos eventos públicos ou governamentais. Embora o referido princípio subsista até os dias de hoje, é perceptível que na prática não ocorra da forma que deveria ser. Muitos cidadãos vivem uma falsa liberdade, onde são tolhidos e induzidos pelas classes superiores a não expressarem-se.

A igualdade perante a lei, como o termo sugere, indica que, em julgamento, um cidadão não deve ser privilegiado em detrimento de outro, ou da lei publicada. As reformas de Sólon, no que tange ao direito de apelação a corte, seguidas das ações de Cleistenes, contribuíram com o decrescimento da estrutura hegemônica autocrática.

Diferentemente das cortes modernas, não havia juízes ou advogados profissionais […]. Cada reivindicador tinha de falar por si próprio, e era julgado pelos colegas. […] Esse era um processo em aberto, debatido e anotado publicamente, regulamentado pelo estatuto da lei publicada. A seleção aleatória dos jurados evitava o suborno e decisões políticas tendenciosas […] [1].

Embora atualmente encontre-se prerrogativas tais quais o foro privilegiado em determinadas instâncias políticas, em suma, a isonomia prevalece como um princípio fundamental da democracia.

Fonte: http://zip.net/bqtH4d

A responsabilidade, por sua vez, implica em que “[…] todo homem [deve] […] se responsabilizar pela coletividade de cidadãos. Isso significa que cada homem é responsável por seu voto e suas ações, e que ele pode ser responsabilizado” [1]. Reforçando o que foi mencionado, sabe-se que a democracia grega funcionava com base em uma população restrita, excluindo escravos, mulheres e menores de idade. A democracia atual, no entanto, sobressai-se – com algumas reservas – pela conquista do direito ao voto, independente de gênero ou classe social. Contudo, Goldhill questiona determinada inércia dos cidadãos modernos, bem como o desagrado com a estrutura democrática vigente.

Críticas ao modelo democrático

Para explicar os caminhos que a democracia atual tomou, o autor citado propõe uma análise das críticas a tal sistema, principalmente aquelas feitas por Platão. Suas influências a democracia moderna residem principalmente em proposições quanto a especialização necessária para se atuar em determinado cargo, incluindo os políticos. Platão criticava a não exigência de preparo técnico e intelectual dos governantes, bem como alegava a incapacidade dos cidadãos para decidir acerca de temas políticos.

A oposição de Platão “[…] à democracia em nome da lei e da ordem continua a prover uma autoridade intelectual fundamental para governos totalitários (e democracias nervosas)”. Para o filósofo, a democracia ateniense aproximava-se da anarquia, enquanto Esparta, conhecida por um sistema social e leis rigorosas, era o modelo ideal de governo fundamentado na “ordem social” [1].

Soldados espartanos. Fonte: http://zip.net/bntG6J

Tratando-se de ordem social, outro filósofo aparece como influente no modelo atual de democracia. Sócrates, segundo afirma Goldhill, “[…] foi executado pela Atenas democrática, devido àquilo em que acreditava. O que ele ensinava, e como o fazia, parecia muito perigoso para ser tolerado pela sociedade”. O autor expressa a relação de Sócrates com a fragilidade do sistema democrático, no que tange ao “[…] equilíbrio entre a liberdade de expressão e as exigências da ordem social” [1].

Platão e Sócrates ainda hoje movem questões clássicas de democracia e liberdade de pensamento. De certo modo, ambos apresentam posições distintas, porém, mobilizam a reflexão já proposta anteriormente: a democracia implica em crítica, conflito entre “liberdade individual e a regulamentação da comunidade” [1] e divergência de opiniões. O percurso histórico acerca da democracia revela as potencialidades e fragilidades, tanto nos primórdios quanto atualmente. Winston Churchill afirma que “A democracia é a pior forma de governo, tirando todas as outras” [4]. Apesar de ter se expandido como uma estrutura de governo desejável, percebe-se que ela implica, inevitavelmente, em que haja constante discussão, tanto sobre suas bases quanto sobre os rumos a serem tomados.

É notável que a democracia moderna ampliou alguns de seus princípios, no entanto, outros decresceram no decorrer do tempo. O engajamento percebido nos atenienses, por exemplo, bem como seu grande poder de decisão política são exemplos de aspectos nos quais os cidadãos modernos mostram-se estagnados. Algumas sociedades atuais, ditas democráticas, sequer contam com a participação de parcelas significativas da população para a escolha de seus líderes. Assim como Platão afirmava, supostamente deve-se confiar as decisões mais importantes a sujeitos capacitados.

Fonte: http://zip.net/bftG35

O descontentamento com a democracia atual, conforme abordado, pode ser analisado de acordo com diversos pensamentos, dentre eles os dos filósofos Sócrates e Platão. Além das reflexões anteriores quanto a dinâmica da democracia, as proposições desses filósofos fornecem lentes para se avaliar o sistema atual, bem como os seus impasses com a ordenação social. Considerando o posicionamento de Churchill, bem como o de Goldhill, para que se mantenha a democracia deve-se sempre questioná-la e compará-la com os modelos anteriores, ou seja, implica em conhecer sua história.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, J. B. Grécia – a caminho da democracia. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_2/Jeronimo_Basil.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2017.

[1] GOLDHILL, S. Amor, sexo e tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Tradução Cláudio Bardella. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. Parte III, cap. 1-5.

[2] COULANGES, 2004, p. 356 apud ALMEIDA, s.d., p. 25.

[3] A HISTÓRIA da democracia (Athens: The Truth About Democracy). Apresentação: Betthany Hughes. 2007. (95 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P3yVRkvP-w4>. Acesso em 01 mar. 2017.

[4] CHURCHILL apud GOLDHILL, 2007, p. 149.

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