“Loucos de amor” e a relação entre pessoas do espectro autista

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O filme Loucos de Amor (Mozart and the Whale) é baseado na história verídica de Jerry e Mary Newport, narrada num artigo do Los Angeles Times em 1995. O filme reconta a história a partir dos personagens Donald e Isabelle, dois adultos jovens com Síndrome de Asperger, atualmente denominada como Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) (APA,2014). Donald trabalha como taxista e é excelente com números, sendo capaz de resolver operações matemáticas complexas sem necessitar de qualquer auxílio; já Isabelle é uma cabeleireira que se destaca por sua aparência nos locais onde frequenta e ambos apresentam grande afeto por animais.

É possível observar que Donald apresenta um padrão de comportamento: ele não faz contato visual com outras pessoas e faz contas matemáticas constantemente, com números com os quais se depara ao longo do dia. Logo no início do filme Donald se envolve em um acidente, batendo o táxi no qual trabalha em outro carro. Donald então abandona o táxi e segue para o grupo de autoajuda, que ele criou, para pessoas com autismo e é neste grupo que ele conhece Isabelle, que relata que desde criança entende o que é dito por outras pessoas a sua volta de forma literal. Donald também conta a sua história e diz que cresceu em uma bela casa e que quando tinha 02 anos seus pais perceberam que ele era diferente, não sendo ele a criança normal que todos os pais desejam.

Fonte: https://bit.ly/3iYCgKn

A partir dos encontros no grupo, Donald e Isabelle se engajam em um relacionamento, que é confuso para Donald, que não sabe bem os passos que deve seguir, pois ele sempre cumpriu sua rotina específica e de certa forma solitária, não sabendo quais atitudes tomar diante de mudanças, como em um momento em que Isabelle resolve fazer uma surpresa para Donald, organizando e limpando o seu apartamento, além de redecorar algumas coisas que para ela eram consideradas lixo, mas para ele eram coisas de seu interesse específico. Aquele era o seu apartamento, seu modo de organização e, o principal, aquelas coisas eram relevantes para ele. Tudo isso faz com que Donald reaja com agressividade, pois a mudança o afeta, e ele só se acalma depois de um tempo, calculando e fazendo movimentos estereotipados com as mãos e se balançando, em pé, como se estivesse em uma gangorra. Para Isabelle o relacionamento parece uma aventura e ela sempre está muito entusiasmada, mas para os dois é um campo inexplorado.

Os protagonistas decidem ir morar juntos em uma casa alugada junto com os animais de estimação de ambos. Existe uma tentativa de compreensão, por parte dos dois, neste período em que vivem juntos. Donald deixa que Isabelle pinte as paredes de acordo com o que ela expressa em suas obras de arte, enquanto Isabelle não organiza as “bagunças” que Donald deixa pela casa. Apesar destas tentativas, ambos não conseguem ficar juntos e acabam se desentendendo, pois Donald pede para que Isabelle aja de forma “normal” durante a visita de seu chefe a casa deles e Isabelle fica ofendida com isso, discutindo com Donald, pois para ela não existe a possibilidade de pessoas autistas agirem de forma normal, pois eles não são “normais”.

Ambos sofrem muito com a falta do outro e, quando se entendem novamente, Isabelle pede para que ambos sejam apenas amigos, pois é tudo o que ela tem para oferecer. Mas Donald não consegue entender isso e acaba pedindo Isabelle em casamento, ao que ela reage mal, tentando cometer suicídio. A tentativa de suicídio não é bem sucedida e Isabelle recebe alta do hospital e sua terapeuta pede para que Donald não ligue nem a procure mais. Donald sofre muito com isso e tenta de todas as formas resistir à tentação de ligar para a amada, mas acaba encontrando-a no seu local de trabalho. Dessa forma, vai atrás dela para que possam se entender e para que possa lhe explicar o motivo pelo qual não ligou mais, após o que aconteceu.

Fonte: https://bit.ly/2CtPhe8

No final Donald e Isabelle resolvem ficar juntos, mas sem promessas de como será o futuro, pois não há como prever como se adaptarão às mudanças que a vida de casado irá exigir, porém o que se sabe é que ambos desejam permanecer um na companhia do outro como marido e mulher e o filme é encerrado com Isabelle celebrando juntamente com Donald e os demais integrantes do grupo de ajuda para autistas, a família que eles se tornaram.

A 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM- 5) (APA, 2014) expõe que a pessoa com TEA, apesar de uma aparência física que não indica déficits, se caracteriza pela inabilidade de desenvolver relacionamentos com pessoas, pelo atraso na aquisição da linguagem, no uso não comunicativo da linguagem após seu desenvolvimento, pela tendência à repetição da fala do outro, ecolalia, por uso reverso de pronomes, por movimentos repetitivos e estereotipados, na insistência obsessiva na manutenção da rotina rígida e um padrão restrito de interesses peculiares, pela falta de imaginação, pela boa memória mecânica.

Ficou notório na observação dos comportamentos dos protagonistas do filme déficits na reciprocidade socioemocional, dificuldades de estabelecer uma conversa típica, compartilhamento reduzido de interesses e dificuldades para iniciar ou responder interações sociais. Foi possível observar, ainda, déficits nos comportamentos comunicativos não-verbais usados para interação social, dificuldade no contato visual e linguagem corporal, dificuldade na compreensão e uso de gestos.

Fonte: https://bit.ly/2ZZE9xy

Desde criança, pessoas com autismo indicam menor frequência de habilidades sociais, comprometimento acentuado na interação social e comunicação, bem como um repertório restrito de comportamentos, atividades e interesses. O autismo tende a implicar sérios prejuízos na aprendizagem de habilidades sociais, influenciando outras áreas do desenvolvimento da criança (FREITAS; DEL PRETTE, 2013), desta maneira é importante que pessoas do espectro autista façam terapia e desenvolvam habilidades sociais.

De acordo com Silva, Del Prette e Del Prette (2013), as habilidades sociais são comportamentos que acontecem nas interações sociais e facilitam relacionamentos saudáveis, como por exemplo identificar emoções, expressar empatia e fazer amizades. Estas colaboram no processo de socialização, uma vez que favorecem o desenvolvimento e o ajustamento na sociedade, assim como integram recursos que facilitam a convivência.

Ainda de acordo com Freitas e Del Prette (2013), o Treinamento de Habilidades Sociais (THS) é essencial devido as associações positivas descobertas entre um repertório elaborado nessa área e diversos indicadores de funcionamento adaptativo, como por exemplo relações satisfatórias com pares e adultos, status social positivo no grupo e menor frequência de problemas de comportamentos.

Os Treinos de Habilidades Sociais devem ser realizados de acordo com a necessidade de cada pessoa, pois as intervenções com pessoas autistas devem levar em consideração as possibilidades de cada indivíduo. A pessoa autista que vai a terapia tem maior probabilidade de encontrar uma intervenção com uma etapa inicial que levante uma linha de base (descrevendo o repertório comportamental inicial), com uma avaliação funcional dos déficits e excessos comportamentais observados, sendo selecionadas metas para a intervenção e se fazendo análise de tarefas dessas habilidades específicas selecionadas, de forma a ser possível acompanhar progressos (DUARTE; SILVA; VELLOSO, 2018).

FICHA TÉCNICA: 

LOUCOS DE AMOR

Título original: Mozart and the Whale
Direção:Petter Naess
Elenco: Josh Hartnett, Radha Mitchell, Gary Cole, Sheila Kelley;
Ano: 2005
País: EUA
Gênero: Drama; Romance.

REFERÊNCIAS:

ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtorno mental: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. 948 p. Tradução de: Maria Inês Corrêa Nascimento et al.

DUARTE, Cintia Perez; SILVA, Luciana Coltri e; VELLOSO, Renata de Lima. Estratégias da análise do comportamento aplicada para pessoas com transtornos do espectro do autismo. São Paulo: Memnon Edições Científicas, 2018.

FREITAS, Lucas Cordeiro; DEL PRETTE, Zilda Aparecida Pereira. Habilidades Sociais De Crianças Com Diferentes Necessidades Educacionais Especiais: Avaliações e Implicações Para Intervenção. Avances en Psicología Latinoamericana, v. 31, n. 2, p. 344–362, 2013.

SILVA, Ana Paula Casagrande; DEL PRETTE, Almir; DEL PRETTE, Zilda Aparecida Pereira. Brincando e aprendendo habilidades sociais. [S.l: s.n.], 2013.

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Obrigações no parto, para que?

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Com 38 semanas de gravidez, às 04:00 horas da manhã, comecei a sentir dores características de contrações. As mesmas se davam de forma leve e com grande intervalo de tempo, sendo as dores suportáveis decidi por continuar em casa até quando as mesmas começassem a ocorrer com mais intensidade, pois pensei sobre ir para a maternidade no começo do trabalho de parto e ter que passar por todo processo burocrático existente dentro da maternidade do hospital Dona Regina.

Por volta das 06:00 às dores se tornaram moderadas e com intervalo de tempo intermediário, então decidi por informar a minha mãe, pessoa que me acompanhou no momento do parto, que estava sentindo contrações e que já considerava que as dores estavam com uma intensidade moderada. Começamos a organizar as coisas para ir para a maternidade. Às 09:30 minha mãe ligou para o SAMU para podermos ir para a maternidade, pois estávamos sem carro, na central do SAMU foi informado que os mesmos estavam sem ambulância disponível e forneceram o contato dos bombeiros. Quando minha mãe ligou para os bombeiros os mesmos informaram que não prestam esse tipo de serviço, mas diante a indisponibilidade do SAMU o serviço seria realizado, pois deveria ser cumprindo o princípio do SUS que defende a universalização, onde a saúde é um direito que cabe ao Estado assegurar sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido pelo mesmo.

Não muito tempo depois os bombeiros chegaram e me buscaram dentro de casa, perguntando se era necessário algum tipo de ajuda para me locomover. Foi permitido que minha acompanhante fosse juntamente comigo na ambulância e dentro da ambulância foram prestados os primeiros atendimentos que foram de aferir pressão, perguntas sobre estado de saúde, possíveis tipos de alergia, assim como também foi cronometrado o intervalo de tempo das contrações, que estavam ocorrendo uma a cada 2 minutos.

Ao chegar na maternidade, devido ao fato de ter ido de ambulância, fui encaminhada diretamente à triagem e após a mesma foi realizado o encaminhamento para o toque, com o intuito de saber quantos centímetros estavam dilatados. Enquanto esperava pelo toque chorava de tanta dor, mas baixo para os outros não perceberem, afinal todos me diziam que aquele era o momento mais feliz da minha vida, então eu não deveria estar chorando. Após o toque veio a notícia de que já haviam 6 centímetros dilatados e que faltavam ainda 4 centímetros para o ideal, que levaria uma média de mais 8 horas para serem atingidos.

Fonte: goo.gl/sfuiRD

Depois do toque fui direcionada para outra sala com outra enfermeira, senti muito medo, pois ninguém me disse o que eu ia fazer em outra sala com outras enfermeiras e minha mãe havia sumido a pedido da enfermeira que fez o toque. Para piorar a situação começaram a me fazer várias perguntas que eu não sabia porque estavam sendo feitas, então fiquei apavorada com a ideia de algo estar errado. Depois de uns 10 minutos em meio a angústia de estar só e de ter que responder perguntas que eu não sabia porque estavam sendo feitas, minha mãe retornou com a roupa de acompanhante e a enfermeira começou a informar a ela porque perguntas estavam sendo feitas e que a partir dali eu já iria para uma sala onde aconteceria o parto. Me senti muito lesada, pois o meu direito à informação sobre minha saúde, que está nos princípios e diretrizes do SUS, não foi respeitado.

A sala do parto era simples e juntamente comigo na sala estava minha mãe e duas enfermeiras obstétricas residentes, que acompanharam e me instruíram no parto. Uma das enfermeiras estava grávida de 8 meses e por isso ficou grande parte do tempo sentada, auxiliando em pequenos detalhes. A outra se apresentou e durante o tempo que estive no trabalho de parto foi compreensível comigo, me ajudando a manter a calma, me deixando escolher como queria ficar, se deitada na cama ou em pé, parada ou fazendo exercícios, sempre respeitando as minhas decisões. Preservou minha autonomia, que é um princípio muito importante do SUS, que preza pela integridade física e moral da pessoa.

Em determinado momento durante este processo a dor havia se tornado insuportável e pedi para realizar o toque novamente e, mesmo faltando muito tempo ainda das 8 horas que foi indicado que demoraria para atingir a dilatação ideal, a enfermeira realizou o toque, para que eu me sentisse melhor. Quando ela fez novamente já haviam 9 centímetros dilatados e não faltaria muito para o ideal. Então ela começou a me instruir sobre o que fazer, pois o parto aconteceria de maneira natural, como de fato aconteceu, e me falou que quando o bebê nascesse colocaria ele sobre o meu peito para que criasse-se um vínculo, mas eu informei que não queria, estava cansada, sem força e sentido uma dor extrema, então ela me falou novamente que colocaria o bebê sobre meu peito e eu novamente disse que não queria, com isso ela pediu para que minha mãe me convencesse a deixar colocar o bebê sobre meu peito e minha mãe disse que não, pois eu já tinha feito minha escolha.

Naquele momento senti o olhar de desaprovação da enfermeira e me senti muito mal, pois o seu olhar dizia que eu tinha que deixar ela colocar meu bebê sobre meu peito, que eu tinha que querer viver aquele momento, mesmo estando cansada e me sentindo exposta, com isso me veio grande tristeza e me senti falhando no meu primeiro momento como mãe, aquilo me arrasou e tive que lidar com mais aquele sentimento em meio a tanto sofrimento que já estava vivendo. Após meia hora do ocorrido meu filho nasceu, 2 quilos e 750 gramas, de parto natural, sem nenhuma complicação, saudável e perfeito, aquele foi o momento feliz que vivi e então percebi que as obrigações existem, mas que para mim elas não serviam e que eu viveria o meu momento feliz da minha maneira.

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Família, Propriedade Privada e Estado: gênese comum

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Para o entendimento da origem da família, da propriedade privada e do Estado, Friedrich Engels – no livro homônimo – faz uma busca em tempos aos quais não se possuem registros e demonstra como cada uma dessas estruturas surgiu, se estruturou e evoluiu. Morgan foi o primeiro que, com conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na pré-história da humanidade e a partir desta ordem traçou os avanços que foram realizados em direção a formação da família. A família já passou por diferentes formas de composição até chegar à qual hoje conhecemos, ela já existiu em forma de grupos, onde todas as mulheres pertenciam a todos os homens do grupo. A primeira evolução na estrutura da família se deu quando foram proibidas as relações sexuais entre pais e filhos e após com a proibição de relações sexuais entre irmãos. Estas proibições proporcionaram uma nova forma de família, a família sindiásmica, onde um homem se relacionava com uma mulher, mas a poligamia ainda era praticada, mesmo que em pequenos números. A última evolução se deu quando a família passou a ser constituída por um homem e uma mulher e o casamento passou a ser indissolúvel e poligamia só era permitida ao homem, devido ao seu direito patriarcal.

A família deu o viés para o surgimento da propriedade privada, que nasceu a partir da nova estrutura de família, onde o homem busca repassar sua herança aos seus filhos, adquirindo-se assim riquezas. As riquezas fazem com que o homem comece a escravizar outras pessoas e a acumular mais bens, começa uma busca incessante pelo o luxo e pela riqueza, assim surge o Estado, para permitir que a minoria que possui posse explore a maioria que não possui posses, com o intuito de se beneficiar.

I – ESTÁGIOS PRÉ-HISTÓRICOS DE CULTURA. Morgan divide o tempo em três épocas principais – estado selvagem, barbárie e civilização e subdivide as duas primeiras em fases inferior, média e superior.

Estado selvagem:

  • Fase inferior: os homens permaneciam nos bosques tropicais ou subtropicais e viviam nas árvores. Os frutos, as nozes e as raízes serviam de alimento.
  • Fase media: houve o emprego de peixes e o uso do fogo, ocorreu também uma dispersão sobre maior parte da superfície da Terra, foram introduzidos novos alimentos, como as raízes e os tubérculos farináceos e também a caça.
  • Fase superior: começa com a invenção do arco e flecha, que foi a arma decisiva da época.

Barbárie:

  • Fase inferior: inicia-se com a introdução da cerâmica. O traço característico do período é a domesticação e criação de animais e o cultivo de plantas. O continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais domesticados e todos os cereais próprios para o cultivo, já o continente ocidental, a América, só tinha um mamífero domesticável, a Ilhama, e um só dos cereais cultiváveis, o milho. Em virtude dessas condições naturais diferentes, a partir desse momento a população de cada hemisfério se desenvolve de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre várias fases são diferentes em cada um dos dois casos.
  • Fase média: no Leste, começa com a domesticação de animais e no Oeste com o cultivo de hortaliças.
  • Fase superior: inicia-se com a fundição do minério de ferro e passa à fase da civilização com a invenção da escrita alfabética e seu emprego para registros literários.

II – A FAMÍLIA. Morgan passou a maior parte de sua vida entre os iroqueses e encontrou um sistema de consanguinidade, vigente entre eles, que entrava em contradição com seus reais vínculos de família. A descendência de semelhante casal era patente e reconhecida por todos; nenhuma dúvida podia surgir quanto às pessoas a quem se aplicavam os nomes de pai, mãe, filho, filha, irmão ou irmã, mas, o uso atual desses nomes constituía uma contradição. O iroquês não somente chama filhos e filhas só aos seus próprios, mas, ainda, aos de seus irmãos, aos quais, por sua vez, o chamam de pai, já os filhos de suas irmãs, pelo contrário, ele os trata como sobrinhos e sobrinhas, e é chamado de tio por eles. As designações “pai”, “filho”, “irmão”, “irmã”, não são simples títulos honoríficos, mas, ao contrário, implicam em sérios deveres recíprocos, perfeitamente definidos, e cujo conjunto forma uma parte essencial do regime social desses povos.

Fonte: https://compubbrasil.files.wordpress.com/2011/09/famc3adlia1.jpg

  1. A FAMÍLIA PUNALUANA. O primeiro progresso na organização da família constitui em excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas e o segundo progresso na exclusão dos irmãos. A proibição das relações sexuais entre irmãos e irmãs pela sociedade levou a divisão dos filhos de irmãos e irmãs e por isso se torna necessária, pela primeira vez, a categoria dos sobrinhos e sobrinhas, dos primos e primas, categoria que não tinha sentido algum no sistema familiar anterior. Foram excluídos, todavia, no princípio, os irmãos carnais e, mais tarde também os irmãos mais afastados das mulheres, ocorrendo o mesmo com as irmãs dos maridos. Esta família agora nos indica, com a mais perfeita exatidão, os graus de parentescos, da maneira como expressa o sistema americano. Os filhos das irmãs de minha mãe são também filhos desta, assim como os filhos dos irmãos de meu pai o são também deste e todos eles são irmãs e irmãos meus. Mas os filhos dos irmãos de minha mãe são sobrinhos e sobrinhas desta, assim como os filhos das irmãs de meu pai são sobrinhos deste e todos são meus primos e primas. Em todas as formas de família por grupos, não se pode saber, com certeza, quem é o pai de uma criança, mas sabem-se quem é a mãe. Portanto onde existe o matrimônio por grupos a descendência só pode ser estabelecida do lado materno, e, por conseguinte, apenas se reconhece a linhagem feminina. Uma vez proibidas às relações sexuais entre todos os irmãos e irmãs – inclusive os colaterais mais distantes por linha materna, o grupo de que falamos se transforma numa gens, isto é, constitui-se um círculo fechado de parentes consanguíneos por linha feminina, que não se podem casar uns com os outros; e, a partir de então, este círculo se consolida cada vez mais por meio de instituições comuns, de ordem social e religiosa, que distingue das outras gens da mesma tribo.
  1. A FAMÍLIA SINDIÁSMICA. Com as crescentes complicações devido às proibições de casamento, tornam-se cada vez mais impossíveis as uniões por grupos, que foram substituídas pela sindiásmica. Neste estágio, um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito, embora a poligamia seja raramente observada nesta fase. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes e, por fim, até das pessoas vinculadas apenas por aliança, torna impossível na prática qualquer matrimônio por grupos. Bachofen tem evidente razão quando afirma que a passagem do que ele chama de “heterismo” à monogamia realizou-se essencialmente graças às mulheres. Quanto mais as antigas relações sexuais perdiam seu caráter inocente, primitivo e selvatico, por força do desenvolvimento das condições econômicas e, paralelamente, por força da decomposição do antigo comunismo, e da densidade cada vez maior da população, tanto mais opressivas devem ter parecido essas relações para as mulheres, que com maior força deviam ansiar pelo direito à castidade, como libertação. Só depois de efetuada pela mulher a passagem ao casamento sindiásmico, é que foi possível aos homens introduzirem a estrita monogamia – na verdade, somente para as mulheres. A família sindiásmica é a forma de família característica da barbárie.

O contrário aconteceu no Velho Mundo. O matrimônio sindiásmico havia introduzido na família um elemento novo, junto à verdadeira mãe tinha posto o verdadeiro pai. As riquezas à medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao homem uma posição mais importante que a da mulher na família, e, por outro lado, faziam com que nascesse nele a ideia de valer-se desta vantagem para modificar, em proveito de seus filhos, a ordem da herança estabelecida. Mas isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno e esse direito teria que ser abolido, e o foi. Bastou decidir simplesmente que, de futuro, os descendentes de um membro masculino permaneceriam na gens, mas os descendentes de um membro feminino sairiam dela, passando à gens de seu pai. Houve o desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo e surgiu a família patriarcal, caracterizada pela organização de certo número de indivíduos, livres e não livres, numa família submetida ao poder paterno de seu chefe. Na forma semítica, esse chefe de família vive em plena poligamia, os escravos têm uma mulher e filhos, e o objetivo da organização inteira e cuidar do gado numa determinada área. Esta forma de família assinala a passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia.

Fonte: https://www.simpatias.org/wp-content/uploads/Simpatias-da-Web-Algemar-Amor-e-Coracao-e-Prender-Para-Sempre.jpg

  1. A FAMÍLIA MONOGÂMICA. Nasce no período de transição entre a fase media e a fase superior da barbárie e baseia-se no predomínio do homem. A monogamia de modo algum foi fruto do amor sexual individual, permaneceram casamentos de conveniência, mas foi de todas as formas de famílias conhecidas, a única em que se pôde desenvolver o amor sexual moderno. Foi a primeira forma de família baseada em condições econômicas e representou um triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele. A monogamia surge como uma forma de escravização de um sexo pelo outro e foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, junto à escravidão e as riquezas privadas. Em resumo, a monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos – as de um homem – e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro.

III – A GENS IROQUESA. A gens iroquesa foi outro descobrimento de Morgan, pelo menos tão importante quanto à reconstituição da forma primitiva da família através dos sistemas de parentesco. Através dela Morgan demonstra que os grupos de consanguíneo, designados por nomes de animais, no seio de uma tribo de índios americanos, são essencialmente idênticos às genea dos gregos e às gentes dos romanos e que a forma americana é a forma original da gens, sendo a forma greco-romana uma forma posterior derivada. Como forma clássica dessa gens primitiva, Morgan toma a dos iroqueses e, em especial, a dos senekas, nessa tribo há oito gens e todas as gens têm os mesmos costumes.

Em numerosas tribos indígenas que compreendem mais de cinco ou seis gens, encontramos três, quatro ou mais gens reunidas em um grupo especial, a fratria. Estas fratrias representam quase sempre as gens primitivas em que se cindiu, no começo, a tribo. Assim como várias gens formam uma fratria, de igual modo, na forma clássica, várias fratrias constituem uma tribo.

A grande maioria dos índios americanos não foi além da união em tribos, em certas comarcas, no entanto, tribos aparentadas na origem e depois separadas ligaram-se em federações permanentes, dando assim o primeiro passo no sentido da formação de nações. Nos Estados Unidos, a forma mais desenvolvida de uma federação dessa natureza pode ser encontrada entre os iroqueses, a confederação iroquesa apresenta a organização social mais desenvolvida alcançada pelos índios antes de superar a fase inferior da barbárie Porém esta organização estava fadada a perecer. Não foi alem da tribo; a confederação de tribos já indica o principio da sua decadência. Os interesses mais vis – a baixa cobiça, a brutal avidez de prazeres, a sórdida avareza, o roubo egoísta da propriedade comum- inauguram a nova sociedade civilizada, a sociedade de classe. E a nova sociedade, através desses dois mil e quinhentos anos de sua existência, não tem sido senão o desenvolvimento de uma pequena minoria a expensas de uma grande maioria explorada e oprimida; e continua a sê-lo, hoje mais do que nunca.

Fonte:https://1.bp.blogspot.com/-B_4RcpiBTrA/Tc2G2iFGSEI/AAAAAAAAAHQ/NFGYl72LsTk/s1600/70846_Papel-de-Parede-Parthenon_1024x768.jpg

IV – A GENS GREGA. Estavam constituídos em séries orgânicas idênticas à dos americanos, mas a gens dos gregos já não é, de modo algum, a gens arcaica dos iroqueses. Tribos gregas também formaram pequenos povos. Na constituição grega da época heróica vemos ainda cheia de vigor a antiga civilização gentílica, mas já observamos igualmente o começo da sua decadência: o direito paterno, com herança dos haveres pelos filhos, facilitando a acumulação de riquezas na família e tornando esta contrário à gens, a diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela formação dos primeiros rudimentos de uma nobreza hereditária e de uma monarquia, a escravidão, a principio restrita aos prisioneiros de guerra, desenvolvendo-se depois no sentido da escravização de membros da própria tribo e até da própria gens. A riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para justificar a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência. Em ocorrência disto cria-se uma instituição, a princípio sem se perceber, que perpetua a nascente divisão da sociedade e também o direito de a classe possuída explorar a não-possuidora. Inventou-se o Estado.

V – GÊNESE DO ESTADO ATENIENSE. Com a criação do estado ateniense houve a transformação e substituição parcial dos órgãos da constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, institui-se uma administração central em Atenas, parte dos assuntos que até então eram resolvidos independentemente pelas tribos foi declarada de interesse comum e transferida ao conselho geral. A segunda instituição dividiu o povo em três classes: os nobres, os agricultores e os artesões. A aparição da propriedade privada, dos rebanhos e dos objetos de luxo trouxe o comércio individual e a transformação dos produtos em mercadorias, com a produção de mercadorias, surgiu o cultivo individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo, mais tarde veio o dinheiro, a mercadoria universal pela qual todas as demais podiam ser trocadas.

Mas os avanços continuaram e o conselho elevou-se até quatrocentos membros, então Solon dividiu novamente os cidadãos, em quatro classes, de acordo com sua propriedade territorial e a produção desta, a partir disto só podiam ocupar cargos públicos em geral os indivíduos das três primeiras classes, e os cargos mais importantes cabiam apenas aos indivíduos da primeira classe; a quarta classe não tinha senão o direito de usar da palavra para votar nas assembléias. Introduziu-se também um elemento novo na constituição: a propriedade privada, os direitos e os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam. Após a não satisfação com a divisão das quatro classes Clístenes fez uma revolução e elaborou uma nova constituição, onde ignorou as quatro velhas tribos e substitui-as pela divisão dos cidadãos de acordo com o local de residência, dividiam-se, então, não mais o povo, mas o território. O rápido desenvolvimento da riqueza, do comércio e da indústria prova como o Estado era adequado à nova condição social dos atenienses.

VI – A GENS E O ESTADO EM ROMA. A gens romana tinha a seguinte constituição: direito de herança recíproco entre os gentílicos; posse de um lugar coletivo para os mortos; solenidades religiosas em comum; obrigação de não casar dentro da gens; posse de terra em comum; obrigação dos membros da gens de se ajudarem mutuamente e de se socorrerem; direito de usar o nome gentílico; direito de adotar estranhos na gens; direito de eleger e depor o chefe.

Ninguém pertencia ao povo romano se não fosse membro de uma gens, entretanto a população da cidade de Roma e o território romano, acrescentado por conquista, foi crescendo, eram cidadãos pessoalmente, livres que podiam possuir terras, estavam obrigados a pagar impostos e sujeitos ao serviço militar, constituíam a pleble, a riqueza comercial e industrial, ainda pouco desenvolvida, pertencia a ela, em sua maior parte. Não se sabe como acabou a antiga constituição gentílica em Roma, só se sabe, ao certo, é que as causas estão ligadas aos conflitos entre plebe e os romanos considerados legítimos.

Fonte:http://br.web.img1.acsta.net/newsv7/15/03/26/19/24/311631.jpg

VII – A GENS ENTRE OS CELTAS E ENTRE OS GERMANOS. Os Celtas era um povo recém passado da fase média à fase superior da barbárie, dentro da gens dos Celtas a terra era propriedade comum, mas não continuou assim porque os ingleses a usurpara. Os celtas tinham as maiores facilidades para importar produtos da indústria romana, as tribos do nordeste, das margens do mar báltico, acabaram desenvolvendo indústria própria, metalúrgica e têxtil.

A gens dos germanos não estava estabelecida em povoados, e sim em grandes comunidades familiares que compreendia muitas gerações, cultivavam uma extensão de terra correspondente ao número dos seus membros, deixando incultas as terras que serviam de limites com as propriedades vizinhas. Sua grande riqueza era o gado, mas de qualidade inferior: os bois eram pequenos, de má aparência e sem chifres, e os cavalos era poneizinhos, maus corredores. A moeda, só existia a moeda romana e era escassa e de pouco uso. Não trabalhavam o ouro ou a prata, nem lhes davam valor. O ferro era raro e quase todo importado, pois não o extraiam eles mesmo.

VIII – A FORMAÇÃO DO ESTADO ENTRE OS GERMANOS. Deu-se devido à falência do estado romano, que decaiu em consequência da exploração dos seus súditos, que se viram empobrecido. Os grandes possuidores de terras se viram obrigados a dividi-las e arrenda-lás, possuir escravos não era mais algo viável, pois não havia mais lugar onde eles pudessem trabalhar por causa disso os povos germanos chegaram como salvadores e por terem livrado os romanos de seu próprio Estado os germanos lhes tomaram dois terços das terras e repartiram entre si. Os germanos conseguiram revivificar a Europa através de sua capacidade e valentia pessoal, seu amor a liberdade e seu instinto democrático, que via nos assuntos públicos um assunto de cada um.

IX- BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO. O ferro e o marco que leva a fase superior da barbárie e que torna possível a agricultura em grande escala e a preparação, para o cultivo, de grandes áreas de floresta. As condições econômicas gerais da fase superior da barbárie minaram a organização gentílica da sociedade, e acabaram por fazê-la desaparecer, com a entrada em cena da civilização. Os órgãos da constituição gentílica foram sendo arrancadas de suas raízes populares, raízes na gens, na fratria e na tribo, com o que todo o regime gentílico acabou por se transformar em seu contrario: de uma organização de tribos para a livre regulamentação de seus próprios assuntos, fez-se uma organização para o saque e a opressão dos vizinhos e correspondentemente, seus órgão deixaram de ser instrumentos de vontade do povo, convertendo-se em órgãos independentes, para dominar e oprimir seu próprio povo. Os comerciantes tornam-se a classe mais útil da sociedade, forma-se uma classe de aproveitadores que, em compensação por seus serviços, na realidade insignificante, retira a nata da produção, concentrando rapidamente em suas mãos riquezas enormes e adquirindo uma influencia social. De tudo que foi dito, infere-se, pois, que a civilização é o estagio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca ente indivíduos dela resultante, e a produção mercantil – que compreende uma e outra – atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a sociedade anterior.

Fonte:http://oiluminismo.weebly.com/uploads/1/2/5/3/12530864/434866473.jpg

Conclusão

Há três formas principais de matrimônio que correspondem aproximadamente aos três estágios fundamentais da evolução humana. Ao estado selvagem corresponde o matrimônio por grupos, à barbárie, o matrimônio sindiásmico, e à civilização corresponde à monogamia. Intercalam-se, na fase superior da barbárie, a sujeição aos homens das mulheres escravas e a poligamia. A cada forma de matrimônio se tem uma evolução na estrutura da família e na sua representação, que no princípio estava na forma matriarcal e seguindo os interesses dos homens passa a ser patriarcal. A propriedade privada surge dos novos interesses que são trazidos devido à nova estrutura da família e essas propriedades privadas dão base para o surgimento do Estado, que se erigiu sobre as ruínas da gens. O Estado nasce direta e fundamentalmente dos antagonismos de classes que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica, desta forma e possível observa-se que o Estado é um produto da sociedade, quando a mesma chega a um determinado grau de desenvolvimento.

REFERÊNCIA:

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: BestBolso, 2014.

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