50 tons de cinza: porque o óbvio passa despercebido

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Concorre ao OSCAR de Melhor Canção Original

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Furor entre as mulheres. Este é o principal efeito do filme 50 tons de Cinza, que estreou recentemente no Brasil, embora uma boa parte do público já soubesse o final, devido ao fato da obra ser baseada na trilogia da escritora britânica E.L. James, um romance erótico que já vendeu mais de 100 milhões de cópias no mundo, e 5 milhões somente no Brasil (VEJA, 2015a).

O filme, uma adaptação de um livro de mesmo nome, conta a história de Anastasia Steele (interpretada por Dakota Johnson), uma ingênua e desastrada estudante de literatura de 21 anos que conhece o empresário Christian Grey (interpretado por Jamie Dornan), um bilionário de 28 anos. Apesar de sua inexperiência, Ana se mostra decidida se envolver com Christian e se entregar a relação amorosa que se inicia entre os dois. A estudante se deixa seduzir por um homem que ela idealiza como perfeito. Mas a medida que a relação se desenvolve, Grey mostra que tem gostos peculiares e é adepto a práticas sexuais sádicas.

Do ponto de vista do espectador que não leu o livro, e não faz ideia de como a trilogia se desenvolve, toda a trama parece desconcertante. Em vários momentos do filme, Anastasia se mostra hesitante. Não consegue compreender porque sente tanto amor e tanta repulsa pelo mesmo homem. Seus sentimentos estão confusos. Ao lado de presentes, passeios e aparentes demonstrações de afeto, estão a indiferença, o ciúme, a possessividade e uma violência psicológica sutil. Percebe-se claramente que ele atua por meio de um esquema de reforço intermitente, onde o reforço não ocorre após a emissão de um tipo de comportamento, mas forma aleatória (Skinner, 1972). Deste modo, a jovem Anastasia não entende porque o namorado tem comportamentos tão destoantes.

No entanto, Grey percebe intuitivamente que suas ações mantém o comportamento de interesse de Ana por mais tempo e diminui os riscos de uma extinção rápida. Apesar de ser uma ferramenta muito poderosa, este tipo de reforço (Pinto & Ferreira, 2005) apresenta conseqüências perniciosas, pois Ana se mostra cada vez mais confusa e mais incapaz de perceber o que está acontecendo, ao passo que se envolve cada vez mais intensamente com o milionário, experimentando práticas sexuais envolvendo violência.

Para um espectador mais atento, esta dualidade não passa desapercebida. Trata-se de uma relação doentia e perigosa, permeada por abuso físico e emocional (Grossman, 2015). O papel agressivo cabe ao homem, enquanto a Anastasia se limita a um papel passivo e defensivo. Tudo indica que se trata de um caso de perversão, em que Grey manifesta desejos sádicos, pois o que ele “sente, é tão somente o desejo de cometer atos violentos e cruéis em pessoas do outro sexo e uma sensação de volúpia” (Krafft-Ebing, 2009, p. 2) conjunta aos atos de crueldade

Nesse ponto do filme, o espectador começa a se perguntar se Anastasia é masoquista ou se não está compreendendo os desdobramentos dos encontros com Grey, que se tornam mais violentos a medida que se repetem. Pois no masoquismo “o sujeito se faz objeto diante do parceiro transformado em atormentador do seu fantasma, e goza pela erotização da dor infligida no seu parceiro” (VALAS, 1990, p.66). E a protagonista se mostra uma mulher bonita, mas que não percebe sua própria beleza, sendo extremamente ingênua e demostrando baixa autoestima.

Para além das especulações psicológicas, é preciso atentar-se para a fórmula midiática e comercial da mocinha boba que se apaixona por um homem poderoso, já vista outras vezes no cinema, como na saga Crepúsculo (MAIA, 2013; VEJA, 2015a). No entanto, a moça pretensamente ingênua, depois de experimentar o máximo de violência que Grey se diz capaz, resolve recuar e abandonar o relacionamento. O filme termina, e as luzes se acendem. O público sabe que haverá continuação da história, porque ainda faltam dois livros. As mulheres saem do cinema num frenesi desmedido. Mas, o que passou despercebido?

A problemática das relações de gênero. Mais uma vez a mulher está num papel de submissão. Há séculos a condição biológica feminina tem sido utilizada para legitimar processos sociais (PEDRO, 2005; SCOTT, 1995), em que homens e mulheres, são categorizados de forma diferente, onde o aquele ocupa uma posição de superioridade, dominação, racionalidade, e o último o de submissão e subserviência. Para Scott (2012) a dimensão social da relação entre homens e mulheres precisa ser problematizada, porque a “anatomia das mulheres não é o seu destino” (p.335), e os papéis e comportamentos determinados pelo nascer homem ou mulher devem ser discutidos.

O que 50 tons de cinza pode significar em termos de subjetividade? Que as questões de gênero encontram-se tão arraigadas, as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas, que as próprias mulheres não conseguem perceber isso, excitando-se com cenas em que o feminino é tido como submisso, frágil, inocente e desprovido de auto-estima.

Para Fraser (2006) a desvantagem social das mulheres restringe sua “voz”, impedindo sua a participação igualitária nas esferas públicas e na vida cotidiana, inclusive na formação da cultura. Apesar da história ter sido escrita e roteirizada por mulheres, os críticos consideram que ainda se constituiu numa produção machista, devido a muita nudez feminina e quase nenhuma masculina (VEJA, 2015b). Se o filme foi criado para o público feminino, é possível que “elas iam querer ver a câmera se demorando mais em Jamie Dornan” (VEJA, 2015b, p.1), o ator que interpreta Christian Grey.

A reação do público feminino, que não percebe a dominação masculina, nem quando ela é escancarada em alta definição, corrobora com as questões postas por Bourdieu (1999):

A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça (Bourdieu, 1999, p.19).

Trata-se de um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica (FRASER, 2006), que, se não é percebido, não pode ser modificado. O que aponta que a injustiça de gênero deve ser combatida com mudanças não só na economia, como querem as mulheres de agora, mas também em outras esferas, como a política e a cultura (FRASER, 2006). Aguardamos as cenas dos próximos capítulos, ou melhor, da trilogia.

 

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1999.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça numa era pós-socialista. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006.

Grossman, Miriam. A ‘carta de uma psiquiatra sobre 50 tons de cinza para os jovens. Trad. Marcos M. Dal Ponte. Psico On-line News, 2015. Disponível em: <http://www.psiconlinews.com/2015/02/a-carta-de-uma-psiquiatra-sobre.html>. Acessado em 25 fev. 2015.

KRAFFT-EBING, R.. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,  São Paulo,  v. 12, n. 2, Jun.  2009.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142009000200012&script=sci_arttext>.  Acessado em 27 fev. 2015.

MAIA, Ygo. Resenha: 50 tons de cinza. Mergulhando na Leitura – Blogspot, 2013. Disponível em: <http://ymaia.blogspot.com.br/2013/05/resenha-cinquenta-tons-de-cinza.html>. Acessado em 27 fev. 2015.

PEDRO, Joana Maria.Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98, 2005.

PINTO, Rodrigo Diniz; FERREIRA, Lívia Freire. Ciência do Comportamento e aprendizado através de jogos eletrônicos. Anais do I Seminário Jogos Eletrônicos, Educação e Comunicação – construindo novas trilhas. UNEB, Salvador – Bahia, outubro/2005. Disponível em: <http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/novastrilhas/textos/rodrigopinto.pdf>. Acessado em 28 fev. 2015.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

SCOTT, Joan Wallach. Usos e Abusos do Gênero. Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, dez. 2012.

SKINNER, B.F. Tecnologia do Ensino. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.

VALAS, Patrick. Freud e a Perversão. Trad. Dulce Henrique Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

VEJA. Quem é quem em ‘Cinquenta Tons de Cinza. Cinema, fev. 2015a. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/quem-e-quem-em-cinquenta-tons-de-cinza>.  Acessado em 28 fev. 2015.

VEJA. Diálogos de ’50 Tons de Cinza’ provocam risos em Berlim. Cinema, fev. 2015b. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/dialogos-de-50-tons-de-cinza-provocam-risos-em-berlim>. Acessado em 28 fev. 2015.

Trailer:

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016


FICHA TÉCNICA 

CINQUENTA TONS DE CINZA

Título Original (EUA): Fifty Shades of Grey
Direção: Sam Taylor-Johnson
Roteiro: Kelly Marcel
Baseado em: Fifty Shades of Grey de E. L. James
Música: Danny Elfman
Estúdio: Focus Features
Ano: 2015

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Entre conchas e algas: Ariel, a princesa ruiva pseudomoderna

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Ariel é a princesa da Disney lançada em 1989, baseada no conto homônimo do escritor Hans Christian Andersen. Em todos os filmes da Disney, a família branca, nuclear e de classe média é utilizada como símbolo generalizado de unificação ideológica. A unidade mínima através da qual a Disney define sua visão de capitalismo, gênero, identidade nacional e atitudes de classe (Giroux, 1995).

Depois de uma série de princesas baseadas em jovens da idade média (Branca de Neve, Bela Adormecida), surge Ariel, a Pequena Sereia. Para resgatar seu prestígio, a Disney busca uma figura mitológica, a sereia, e faz uma releitura para os tempos contemporâneos, realizando uma adaptação para uma história infantil.

Como as suas antecessoras, Ariel também é jovem, tem 16 anos de idade; e tem a mesma sina: apenas um beijo apaixonado do príncipe pode salvá-la.Mas, diferente das princesas anteriores, ela não espera pela sua chegada, ela vai atrás dele.

A princesa é uma sereia que mora no fundo do mar, e, insatisfeita com sua realidade, passa a espiar a vida dos seres humanos, ignorando os conselhos de seu pai. Eis que ela conhece o príncipe Eric e o salva de uma tempestade, mas vai embora antes que ele possa conhecê-la.

A bela faz um pacto com a bruxa Úrsula, trocando sua voz por um par de pernas. Caso conseguisse um beijo de amor do príncipe, em três dias, se tornaria humana para sempre.

Se superarmos a fantasia, vemos aí uma importante implicação simbólica, pois Ariel troca a sua voz, seu instrumento de manifestação, pela forma humana, para tentar conquistar o príncipe. E sabe-se que a capacidade de expressão foi a principal forma de poder, ao menos inicialmente, dos movimentos feministas.

Para convencer Ariel da troca, Úrsula, a bruxa do fundo do mar, convence a sereia de que homens não gostam de mulheres que falam. Que, para Giordan (2012) é uma mensagem clara de que as mulheres devem ser recatadas, obedientes e concordarem com tudo o que lhe disserem, não tendo ‘voz própria’, renunciando às suas opiniões e seus desejos.

Giroux (2003) traz um comentário interessante em relação a essa personagem, que trago na íntegra dado a sua importância:

A Ariel deste filme se converte em uma metáfora da narrativa tradicional da dona de casa. Quando a bruxa do mar, Úrsula, diz a Ariel que ficar sem sua voz não era tão grave porque os homens não gostam de mulheres que falam, a mensagem se dramatiza quando o príncipe tenta conceder o beijo do amor verdadeiro a Ariel apesar dela nunca ter falado. Dentro desta narrativa de limites tão restritos, a feminilidade dada a Ariel é a recompensa de casar-se com o homem adequado e renunciar sua vida anterior desprezível do mar na qualidade de modelo cultural para o universo das eleições femininas e o processo de tomar decisões segundo a visão do mundo da Disney (Giroux, 2003, p.136).

Trocar sua voz por um par de pernas para conseguir encantar o príncipe tem uma significação tão grande, que implica em várias interpretações. Primeiro a ligação com o mito original da sereia, como um ser mitológico que seduz os homens com sua voz encantadora, para depois os matar.

Deste modo, sem voz, Ariel não corre o menor risco de sucumbir às intenções de suas ancestrais. E depois ao atual fenômeno de mudança do corpo, onde mulheres recorrem a procedimentos cirúrgicos para se tornarem mais belas. Estão dispostas a pagar o preço de uma mutilação em nome da beleza. Vale tudo para conquistar o sexo oposto?

A construção da identidade de gênero feminino nos filmes da Disney é uma questão forte. Como em outros filmes, em Ariel a personagem está subordinada a um homem.

Mas ela é uma princesa que luta por isso, para sair de seu mundo, para conquistar o que deseja, ainda que para isso tenha que abrir mão da sua voz. Essa questão ilustra a condição da mulher no final da década de 80, época em que foi lançado o filme. Muitas estão se inserindo no mercado de trabalho, e, na tentativa de conciliar carreira, marido e filhos, se vêem obrigadas a abrir mão de alguma coisa em busca de seus sonhos.

A tensão entre rebeldia e aceitação também se expressa na aparência física da personagem, o cabelo vermelho, um sinal claro de rebeldia. A figura mitológica original da sereia tem o cabelo loiro. Alguns experts especulam sea escolha do cabelo ruivo da personagem deu-se porque ela passava vários momentos do filme em cenários escuros, o que inviabilizava o tom amarelo, predominante nas princesas da Disney. Creio não ser este o motivo. Precisando adaptar a figura mitológica para um cenário contemporâneo e infantil, a Disney escolheu o cabelo vermelho, o que costuma conferir ao personagem uma imagem rebelde e moderna (CASTELO, 2010).

Em relação a sua aparência, Ariel é como as demais protagonistas dos desenhos da Disney: altamente sensual, magra, seios fartos, cintura fina, cabelos sedosos e esvoaçantes. Uma alusão a própria boneca Barbie. Sob uma aparente ingenuidade, passa a ideia de que meninas devem dar atenção à imagem, à aparência.

Quase 25 anos se passaram desde o lançamento de Ariel, e, podemos nos perguntar qual o efeito da cultura da mídia e seu efeito socializante, colocando a disposição imagens e figuras com o qual o público possa se identificar. Será que a geração que cresceu assistindo Ariel, ainda que seja de mulheres independentes, inseridas no mercado de trabalho, continua vivendo sob essa crença, preferindo não discutir com seus maridos para preservar o casamento? Eu ousaria dizer que sim. Será que elas ainda se preocupam em ter seios fartos, cinturas finas e cabelos longos, a despeito de sua dupla jornada como mulher e esposa? Eu também ousaria dizer que sim.

Referências:

BRAGA, Mônica Mitchell de Morais. Saga da Pequena Sereia – os Estudos Culturais “No maravilhoso mundo da Disney”. Revista Humanidades em Foco, ano 2, nº 4, out-dez, 2004, ISSN 1807-9032. Disponível em: <http://terra.cefetgo.br/cienciashumanas/humanidades_foco/anteriores/humanidades_4/textos/cultura_arte_pequena_sereia.doc> Acessado em 15 de janeiro de 2014.

CASTELO, Hilton. A representação do ato de fumar no processo de construção do ethos.Intratextos, UERJ, Rio de Janeiro. vol. 2, nº 1, pp. 20 – 32, 2010. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intratextos/article/view/1757>

GIORDAN, Isabela. Ser ou não ser princesa? Eis a questão. Afinal, devemos ser salvas pelo princípe ou nos tornarmos heroínas de nossas histórias? WebJornal – Unesp, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Departamento de Comunicação Social. 29/06/2012 Disponível em: <http://www.mundodigital.unesp.br/webjornal/materia.php?materia=2713> Acessado em 13 de janeiro de 2014.

GIROUX, Henry A. ‘Memória e Pedagogia no Maravilhoso Mundo da Disney. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos Estudos Culturais em educação. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.

_____. La cultura infantil y la películas de dibujos animados de Disney. In: Cine y entretenimiento Elementos para una crítica política del filmes paiados. Barcelona: Ed. Paiados Ibérica, S.A, 2003.

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Um ano de Psicologia Social Comunitária: comemorações e reflexões

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Ao completar um ano de atuação como psicóloga do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) neste mês de agosto, reflito sobre o trabalho do psicólogo nas políticas públicas, em especial, no SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Meu ingresso na política de Assistência Social não foi uma mera coincidência,  visto que os psicólogos estão atuando cada vez mais em políticas públicas (BOTARELLI, 2008).

Embora minha formação tenha buscado ser o mais generalista possível, ela não me ofereceu uma boa compreensão sobre a atuação do psicólogo no SUAS. Isto fez com que eu tivesse que absorver muita informação em um curto período de tempo, já que diversas demandas chegavam a todo tempo, e havia a necessidade de dar uma resposta a elas. As publicações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e as Referências Técnicas do Conselho Federal de Psicologia (CFP) foram minhas principais fontes de consulta no início. No entanto, posteriormente percebi que, ainda que elas trouxessem diversas orientações, não explicitavam com clareza uma metodologia de trabalho.

Deste modo, recorri a colegas de profissão, grupos de estudo, e a um congresso de Psicologia. Percebi que existem diversas Psicologias Sociais Comunitárias. Algumas mais ligadas ao trabalho com famílias e grupos. E outras mais voltadas a comunidade e ao desenvolvimento social. Ainda não sei por qual delas estou enveredando.

Para além das questões cognitivas, existem ainda as emoções e a saúde mental no trabalho, pois um profissional é um ser global. No início, a estranheza foi grande com o público, bem diferente daquele com quem eu estava acostumada a conviver nos meus diferentes espaços sociais. Uma classe social bem diferente da minha, com sua própria ideologia, cultura, e modo de existência. Foi um trabalho árduo de me despir de meus conceitos e pré-conceitos, para, numa atitude dialógica, construir junto, sem uma atitude de superioridade ou pretensão.

Descobri, entretanto, que outros também tinham chegado a essa conclusão e estavam buscando soluções para elas. Costa (1989), Boltanski (1989) e outros autores, falam sobre as peculiaridades da clientela atendida nas unidades governamentais. A maioria da população que busca o atendimento na rede pública é constituída por pessoas inseridas num universo sócio-cultural diferente daquele vivido por quem os atende. O que implica que, se dando conta disso, o profissional adote uma postura de valorização da diversidade.

Hoje, soprando as velinhas do bolo, percebo que muito ainda há por fazer. Encontrar um ponto de contato entre o que exige o MDS e as premissas da Psicologia Comunitária, de forma coletiva. A construção do conhecimento não pode ser solitária. Busco espaços de trocas de experiências e participações múltiplas, para, junto com os demais psicólogos do estado, que também buscam saber o que fazer, construir uma Psicologia Social Comunitária. Entre as tantas que já existem, talvez uma com tempero tocantinense.

Referências:

BOTARELLI, A. (2008). O psicólogo nas políticas de proteção social:uma análise dos sentidos e da práxis. Tese de Doutorado, Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de, São Paulo, São Paulo.

BOLTANSKY,L., 1989. As Classes Sociais e o Corpo. 3.ed., Rio de Janeiro: Graal.

COSTA,J.F., 1989. Psicanálise e Contexto Cultural. Imaginário Psicanalítico,Grupos e Psicoterapias. 2. ed., Rio de Janeiro: Campus.

 

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Moda e Psicologia: quais interfaces?

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A Moda não pode ser vista de forma ingênua. Para além do consumo, da publicidade e da superficialidade, há um todo muito maior que deve ser considerado. Trata-se de um fenômeno social e histórico, que expressa a subjetividade das sociedades ocidentais pós-modernas (BARNARD, 2003; LIPOVETSKY, 2009). Devido a isso, deve ser estudado em toda a sua complexidade, e abordado por diferentes áreas do saber.

Enquanto fenômeno, a Moda pode ser compreendida pelo olhar da Psicologia Sócio-Histórica, que o conceitua como um processo em permanente movimento e transformação, que se encontra simultaneamente, dentro e fora dos indivíduos (BOCK et al., 2001). Isto leva a considerar a Moda como uma intrincada teia de múltiplas relações, onde cada homem tem sua parcela de contribuição num todo maior e, ao mesmo tempo, é influenciado por ele.

A partir desse movimento, se forma a subjetividade, que é ao mesmo tempo individual e coletiva, porque estas constituem momentos contraditórios que se integram na constituição da psique humana (GONZÁLEZ-REY, 2003). Não obstante, elas podem ser observadas em cada um destes momentos, porque a subjetividade individual está relacionada a história de vida, sentidos e significações de um indivíduo, ainda que esta seja permeada pelos valores sociais. Nas palavras de Bock et. al (2001, p.93) “a subjetividade individual representa a constituição da história de relações sociais do sujeito concreto dentro de um sistema individual”.

Na moda, esta subjetividade individual pode ser observada no estilo de vestimenta, na forma como o indivíduo se apropria das tendências, nas peças que escolhe e no modo como as coordena. Ainda que os meios de comunicação influenciem os indivíduos sobre o que vestir, cada um poderá seguir essa moda ou não, apropriar-se de seus elementos. Uma vez que o fizer, será de um modo particular, de modo que é impossível que duas pessoas tenham seu vestuário idêntico.

Ainda que cada indivíduo se comporte de modo singular, é impossível deixar de considerar a subjetividade social, se constitui num complexo “sistema de sentidos procedentes de diferentes zonas do social” (GONZÁLEZ-REY, 2003, p.216) que, ainda que sejam produzidos individualmente, ganham caráter coletivo na forma de um discurso socialmente produzido, orientando as ações da sociedade como um todo.

Esta subjetividade social aparece nas tendências de moda, que estão vinculadas a um desejo coletivo e aos valores que predominam em um determinado momento na sociedade. Em geral são captadas por pesquisas de mercado e pela observação de estilos individuais que vão se generalizando, ganhando amplitude social. E é importante salientar que, enquanto parte da subjetividade social, a moda não está desvinculada dos diferentes sentidos e dos demais aspectos da sociedade pós moderna, como o consumismo, a tendência ao individualismo, a massificação e a valorização do novo.

Ainda que a subjetividade não tenha uma forma física, ela é formada pela ação do homem sobre o ambiente externo, e do efeito que isto produz em sua psique. Pois a “a alteração provocada pelo homem sobre a natureza altera a própria natureza do homem” (VIGOTSKI, 2000, p.73). Assim, ao produzir roupas e ao consumi-las, o homem modifica o ambiente e a si próprio, numa contínua interação. Ao se vestir, ele leva em consideração os diferentes cenários sociais e as relações daí decorrentes. A roupa, então, permite a apresentação do corpo no mundo, permitindo ao ser humano expressar sua identidade, seus valores, suas preferências estéticas e até mesmo seu estigma.

Além dessas interfaces entre Moda e Psicologia, existem outras, que não foram citadas aqui, como a Psicologia do Consumidor, a Psicologia das Cores. E ainda muitas outras, que ainda não foram construídas, mas que devem ser escritas a partir das conexões que se estabelecem entre as diversas áreas do saber, porque o conhecimento extrapola as rígidas divisões do saber consolidado.

Referências

BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lurdes Trassi. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. 13ªed. São Paulo: Saraiva, 2001.

BARNARD, Malcolm. Moda e Comunicação. Trad. Lúcia Olinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

GONZÁLEZ-REY, Fernando Luís. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Trad. Raquel Souza Lobo Luzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. 1ª reimpressão. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

VIGOTSKI, Lev S. A formação social da mente – O Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores. Trad. José C. Neto, Luís S. M. Barreto e Solange C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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A Luta pede passagem

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“Não quer apenas vencer os muros, quer ganhar as ruas e os olhares.”

Por Hareli Fernanda Garcia Cecchin

Acadêmica de Psicologia do CEULP/ULBRA

Em uma manhã de sol de uma sexta-feira a praça Cabo Luzimar amanheceu diferente. Uma profusão de cores, coisas, pessoas e sons. Aos 18 de maio de 2012, todos os personagens do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Paraíso foram para o coração da cidade. Foram mostrar seus dotes, sua cara, seu sorriso. Foram pedir passagem para a alegria, para o sofrimento, para o diferente.
Ao invés de uma bandeira, panfletos na mão. E todos, profissionais, usuários e familiares vestiram a camisa e inseriram-se no cotidiano das pessoas, os convidando para sentir, para pensar, para experimentar.

Vinte e cinco anos depois, a Luta Antimanicomial pede passagem. Não quer apenas vencer os muros, quer ganhar as ruas e os olhares. Quer estar mais colorida e cidadã.

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incendio santa maria

Fogos em Santa Maria: marcas do capitalismo voraz

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Hoje o mundo amanheceu mais triste. A tragédia que aconteceu na boate em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, estampou todos os noticiários desde ontem, abalando o país. Por todos os lados, não se fala em outra coisa. O incêndio que matou mais de 240 pessoas e deixou centenas feridas, física e psicologicamente, foi uma catástrofe, humana, de grandes proporções.

Diferentemente das catástrofes naturais, o incidente foi um fenômeno que combinou as marcas do capitalismo voraz com um liberalismo econômico e político. Um capitalismo que prioriza os valores, financeiros, que fique claro. As portas da boate foram fechadas, mesmo sob o conhecimento de que havia um incêndio. Esperavam que os clientes pagassem a conta antes de sair. E centenas deles pagaram, com a vida.

Um capitalismo que prioriza o lucro, em detrimento das pessoas, e de sua segurança. Não haviam saídas de emergência. Por onde esperavam que as pessoas saíssem em caso de força maior? Isso não era importante. O mais importante é que a casa estivesse cheia, e o bar funcionasse a todo vapor.

Os disciplinadores, na porta da boate, que serviam para manter todos na fila, dóceis e organizados, ao bel prazer dos proprietários do estabelecimento, se tornaram mais um obstáculo para que as pessoas pudessem se salvar.

Marcas de um capitalismo que privilegia o espetáculo, a despeito das suas consequências. Como não supor que o uso de fogos de artifício poderia não terminar bem? Mas todo e qualquer recurso era útil para tornar o show mais atrativo. Quanto mais animado o público estivesse, melhor.

Aliado a este aparente caos, para reforçar a ideia de que tudo está sem controle, há um liberalismo, sobretudo político. O governo fecha os olhos. Não só para as casas de show, mas todo tipo de entretenimento. Como o alvará de funcionamento estava vencido desde agosto? Não só em Santa Maria, mas por todo o país, há uma ausência de total de fiscalização e legislação.

Fica claro que o acontecido, ainda que se trate de um “acidente” foi fomentado pela lógica capitalista baseada no consumo e na produção de desejos, e pela negligência, sempre crescente, do poder público. É evidente que quando a produção e a direção da economia não são planejadas, quando não há regulação por parte do governo, muitas incoerências e contradições internas se criam. Às vezes com efeitos devastadores.


Nota: a fotografia utilizada na chamada do texto foi retirada do site http://noticias.uol.com.br

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