A Bela e a Fera: um conto sobre as irmãs invejosas

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A Bela e a Fera é um tradicional conto de fadas francês. Originalmente escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot, A Dama de Villeneuve, em La Jeune Ameriquaine et les Contes Marins em 1740, tornou-se mais conhecido em sua versão de 1756, por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Adaptada, filmada e encenada inúmeras vezes, o conto apresenta diversas versões que diferem do original e se adaptam a diferentes culturas e momentos sociais (WIKIPÉDIA, 2014).

A versão original de Villeneuve inclui alguns elementos omitidos por Beaumont. Segundo essa versão, a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai, e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma fada malvada, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia; quando ele recusou, ela o transformou em fera.

De forma resumida, o conto “A Bela e a Fera” relata a história da filha mais nova de um rico mercador, que tinha três filhas e três filhos, porém, enquanto as filhas mais velhas gostavam de ostentar luxo, de festas e lindos vestidos, a mais nova, que todos chamavam Bela, era humilde, gentil, e generosa, gostava de leitura e tratava bem as pessoas.

Um dia, o mercador perdeu toda a sua fortuna, com exceção de uma pequena casa distante da cidade. Bela aceitou a situação com dignidade, mas as duas filhas mais velhas não se conformavam em perder a fortuna e os admiradores, e descontavam suas frustrações sobre Bela, que humildemente não reclamava e ajudava seu pai como podia.

Um dia, o mercador recebeu notícias de bons negócios na cidade, e resolveu partir. As filhas mais velhas, esperançosas em enriquecer novamente, encomendaram-lhe vestidos e futilidades, mas Bela, preocupada com o pai, pediu apenas que ele lhe trouxesse uma rosa.

Quando o mercador voltava para casa, foi surpreendido por uma tempestade, e se abrigou em um castelo que avistou no caminho. O castelo era mágico, e o mercador pôde se alimentar e dormir confortavelmente, pois tudo o que precisava lhe era servido como por encanto. Ao partir, pela manhã, avistou um jardim de rosas e, lembrando do pedido de Bela, colheu uma delas para levar consigo. Foi surpreendido, porém, pelo dono, uma Fera pavorosa, que lhe impôs uma condição para viver: deveria trazer uma de suas filhas para se oferecer em seu lugar.

Ao chegar em casa, Bela, mediante a situação se ofereceu para a Fera, imaginando que ela a devoraria. Mas ao invés de devorar a moça, a Fera foi se mostrando aos poucos como um ser sensível e amável, fazendo todas as suas vontades e tratando-a como uma princesa. Apesar de achá-lo feio e pouco inteligente, Bela se apegou ao monstro que, sensibilizado a pedia constantemente em casamento, pedido que Bela gentilmente recusava.

 

 

Um dia, Bela pediu que Fera a deixasse visitar sua família, pedido que a Fera, muito a contragosto, concedeu, com a promessa de Bela retornar em uma semana. O monstro combinou com Bela que, para voltar, bastaria colocar seu anel sobre a mesa, e magicamente retornaria.

Bela visitou alegremente sua família, mas as irmãs, ao vê-la feliz, rica e bem vestida, sentiram inveja, e a envolveram para que sua visita fosse se prolongando, na intenção de Fera ficar aborrecida com sua irmã e devorá-la. Bela foi prorrogando sua volta até ter um sonho em que via Fera morrendo. Arrependida, colocou o anel sobre a mesa e voltou imediatamente, mas encontrou Fera morrendo no jardim, pois ela não se alimentara mais, temendo que Bela não retornasse.

Bela compreendeu que amava a Fera, que não podia mais viver sem ela, e confessou ao monstro sua resolução de aceitar o pedido de casamento. Mal pronunciou essas palavras, a Fera se transformou num lindo príncipe, pois seu amor colocara fim ao encanto que o condenará a viver sob a forma de uma fera até que uma donzela aceitasse se casar com ele. O príncipe casou com Bela e foram felizes para sempre.

O conto A Bela e a Fera traz muitos paralelos com o mito grego Eros e Psique. No mito, Psique era uma bela moça que competia em beleza com Afrodite e que também possuía duas irmãs invejosas. Por rivalizar com a Deusa da beleza, Afrodite lhe lança uma maldição, a de não se casar. As irmãs mais velhas de Psique já haviam se casado, e a menina a despeito de sua beleza e da quantidade de adoradores não havia sido pedida em casamento. Seu pai preocupado procura um oráculo que diz que ela desposará um monstro. Ele então a leva ao alto de um rochedo e a deixa à própria sorte. Ela é conduzida pelo vento Zéfiro a um palácio magnífico, onde todos os seus pedidos são atendidos. Mas na verdade, o palácio pertence a Eros, filho de Afrodite, que sem querer se apaixona pela moça.

No mito e no conto, há o tema do pai que entrega a filha a um monstro e também, temos o tema da menina que não tem mãe. Podemos supor então, que se trata de um embate com o animus, pois o animus na mulher se desenvolve a partir da experiência com o pai pessoal (VON FRANZ, 2010). Além disso, o fato de não ter mãe mostra uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade da heroína, o que a deixa suscetível a dominação pelo animus.

No amadurecimento do amor feminino há o encontro com o animus, mas também com a anima doanimus, representada pela sogra: “A mãe, que não quer nora, mas o filho apenas para si, a mãe que o beija “com lábios entreabertos“” (BRANDÃO, 1986). Alguns contos mostram o embate do herói com o animus de sua anima, como no conto O velho Rinkrank, mas aqui o embate é com o feminino por trás do animus.

No conto esse embate é mais sutil, e se encontrar no original na figura da bruxa que tenta seduzir o rapaz e sendo mal sucedida o transforma em fera. Aqui há um caráter regressivo do animus, que está preso a mãe. O fato de ambos serem monstros no mito e no conto (mesmo um sendo príncipe e o outro um deus) denota que essa simbiose com a mãe é destrutiva e animalesca, pois transforma o homem em menino mimado e intragável.

 

 

Outro símbolo da mãe e do feminino por trás do homem está na roseira, que a fera tanto preza. A rosa esta associada justamente a Afrodite. Além, disso conforme Jung (2008), a rosa é em geral disposta em quatro raios, o que indica a quadratura do círculo, isto é, a união dos opostos. Ou seja, o amor, é um grande aliado no processo de individuação, pois é a partir do seu roubo que ocorre a transformação de Bela e da consciência coletiva.

O roubo nos atenta a um importante aspecto, conforme Von Franz (2010), uma das atividades doanimus negativo é furtar, pois ele precisa tomar a vida onde ele se encontra, matando todo o aspecto feminino da vida. Além disso, para uma mulher conseguir tirar o homem dos braços regressivos da mãe deve cultivar sua feminilidade. Usar a força bruta e a verborragia do animusnão adiantará. Por isso é comum nos mitos e contos a heroína seguir o caminho da individuação sofrendo e fugindo, enquanto que os heróis lutam e vencem monstros.

Ao conviver com a fera, Bela percebe que ele é sensível e realizava todas as suas vontades a despeito de sua aparência. Ela se afeiçoa a ele, que a pede em casamento várias vezes, sendo recusado em todas elas. Assim como Coré se afeiçoa a Hades no mito, e passa a enxergar o masculino de forma menos hostil.

Sobre o tema do casamento nos mitos, Brandão (1986), diz:

 

“Para o mundo matriarcal, argumenta o psiquiatra israelense, “todo casamento é um rapto de Core, a flor virginal, consumado por Hades, o violador, ou seja, um simbolismo terreno do macho hostil. Desse modo, todo casamento é como uma exposição no cume de um monte em mortal solidão e uma espera pelo monstro masculino a quem a noiva é entregue.”

“Na mais profunda experiência do feminino os temas das núpcias de morte, da virgem sacrificada a um monstro, feiticeiro, dragão ou espírito do mal, recontados em inúmeros mitos e lendas, são igualmente um hieròs gámos. O caráter de rapto, que o evento assume, expressa, relativamente ao feminino, a projeção — típica da fase matriarcal — do elemento hostil sobre o homem.”

 

O homem no conto é indiferenciado, ou é um ladrão como o pai e furta a feminilidade a matando, ou é uma fera assustadora. E com o pedido de casamento ela terá de enfrentar essa projeção de hostilidade em relação ao masculino, por isso Bela reluta em aceitar. Mesmo a contragosto a Fera permite que Bela visite sua família, a qual ela sente saudades. Esse retorno ao lar de Bela pode representar uma regressão do ego ao inconsciente original, ao feminino, a mãe. Nessa regressão, Bela confronta projeções reprimidas matriarcais e sombrias suas inconscientes, representadas pelas irmãs.

As irmãs de Bela representam atitudes matriarcais sombrias onde o homem é visto como hostil e violador, e a mulher como esposa-vítima do monstro. A despeito da inveja que elas sentem de Bela, elas trazem um desenvolvimento para a personalidade dela e um amadurecimento muito grande Mesmo sendo bem tratada Bela vive então em um estado de servidão inconsciente, e é justamente contra isso que a consciência feminina deve protestar. Ela entra em conflito contra a fera, fica em duvida se volta ou não, pois a hostilidade e protesto das irmãs correspondem exatamente ao que se passa no interior da própria Bela.

Contudo é através dessa sombra feminina que Bela alcança autonomia em seu relacionamento, quebrando a simbiose com seu animus. E ao quebrar a sua simbiose e identificação a heroína sente falta do homem, e sincronicamente a Fera morre. O aspecto animal, hostil e assustador se vão e ela pode ver realmente quem é seu marido, e seu lado humano pode se manifestar.

Esse conto então, nos fala que a mulher, em termos coletivos, deve passar pela experiência de ficar presa ao seu animus fera (ou demônio), pois somente essa experiência o transforma em positivo. A partir dessa vivência, o animus animalesco, se liberta dos braços regressivos da mãe e o feitiço que condenou o príncipe a viver como Fera é quebrado. E com isso então Bela pode realizara coniunctio, ou seja, o casamento sagrado com seu lado masculino, uma vez que sua feminilidade foi fortalecida.

 

 

REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega – Vol I. Petrópolis: Vozes 1986.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

WIKIPEDIA. A Bela e a Fera. Acesso em: 02 de setembro de 2014.

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Mãe Gothel e a busca pela beleza eterna

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Atualmente existe uma profusão de filmes onde há uma revisitação dos contos de fadas. E isso é muito interessante, pois podemos observar que a Consciência Coletiva está buscando uma compreensão de si mesma por meio das imagens arquetípicas presentes nos contos de fadas e está tentando nos dizer o que há de diferente na atualidade e o que precisa ser trabalhado.

Esse é o caso do filme Enrolados, uma adaptação do conto de fadas Rapunzel. Que apesar de manter a estrutura do texto original nos mostra uma mudança significativa no comportamento feminino atual.

O filme começa com uma velha bruxa chamada Gothel que é a única a ver uma gota de pura luz de sol atingir o solo, criando uma flor mágica, com a capacidade de curar doentes e feridos. Ela a utiliza para manter-se jovem quando canta para a flor. Centenas de anos mais tarde, a rainha de um reino próximo adoece enquanto esperava um filho. Os seus guardas, em busca de uma cura, encontram a flor misteriosa. Eles fazem uma poção com a flor que cura a rainha e ela dá à luz uma menina chamada Rapunzel.

Gothel descobre que o cabelo dourado de Rapunzel mantém a habilidade de cura da flor (desde que não seja cortado), por isso ela sequestra a menina e a isola em uma torre, criando-a como sua própria filha.  Aqui há mudanças importantes em relação ao conto original.

A primeira é que, no original, Rapunzel é dada a bruxa devido a um acordo do pai com a mesma que o flagrou roubando hortaliças de seu jardim para sua mulher grávida. Além disso, a bruxa no original tem somente a intenção de ter a filha só para si. No filme Gothel sequestra a menina com a intenção de se manter jovem para sempre e a criança não é dada, ela é sequestrada.

Essa mudança da figura da bruxa demonstra uma mudança interessante no aspecto da consciência coletiva atual que é a busca da juventude eterna. Gothel é desesperada pela juventude e pela beleza eterna. Há uma fixação com o corpo, assim como em muitas mulheres hoje em dia!

Hoje é quase um sacrilégio envelhecer! E com isso muitas mulheres mutilam seus corpos em busca de juventude eterna. Esse aspecto da busca da juventude eterna já foi brilhantemente retratado no romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, que relata a estória de um jovem que devido a sua beleza física, se tornou modelo para uma pintura, e enquanto seu retrato definhava, revelando a decadência que é o seu interior, seu rosto continua com os traços angelicais dos seus 18 anos.

No caso de Gothel, ela faz isso por meio dos cabelos de sua filha, os quais ela impede cortar. Aqui podemos associar os cabelos ao cordão umbilical que a mãe insiste em manter com a filha. Pois impedindo a menina de crescer, ela teoricamente impede seu envelhecimento. E assim ela não deixa a menina viver a própria vida, impedindo-a de realizar seus sonhos.

Mas há outra diferença em Rapunzel. No conto original ela é muito mais submissa e somente enfrenta a mãe possessiva quando se apaixona. É nesse instante, quando a menina começa questionar a mãe que ela se transforma em Mãe Terrível e a expulsa do paraíso. Já em Enrolados ela anseia por sair e ver as luzes que sobem aos céus no dia do seu aniversário, e Gothel é desde o começo Mãe Terrível.

Isso demonstra que atualmente as mulheres anseiam em realizar seus projetos próprios e não somente se entregar ao amor. A fuga de Rapunzel é movida por um anseio e desejo além do âmbito do casamento. Por essa razão, na atualidade, a Mãe Terrível se constela na psique feminina mais cedo.

Além disso, Carl Jung em sua obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo, levantou a questão da problemática do complexo materno na mulher. E um desses problemas é a exacerbação do feminino, o qual ele narra:

A exacerbação do feminino significa uma intensificação de todos os instintos femininos, e em primeiro lugar do instinto materno. O aspecto negativo desta é representado por uma mulher cuja única meta é parir. O homem, para ela, é manifestamente algo secundário; é essencialmente o instrumento de procriação, classificado como um objeto a ser cuidado entre as crianças, parentes pobres, gatos, galinhas e móveis. A sua própria personalidade também é de importância secundária; freqüentemente ela é mais ou menos inconsciente, pois a vida é vivida nos outros e através dos outros, na medida em que, devido à inconsciência da própria personalidade, ela se identifica com eles. Primeiro, ela leva os filhos no ventre, depois se apega a eles, pois sem os mesmos não possui nenhuma razão de ser.

Gothel é uma mulher presa ao complexo materno. Ela afastou o masculino de sua vida e dos cuidados da filha e assim como no conto Rapunzel é sua única razão de viver. Não há menção a qualquer outra atividade de Gothel a não ser vigiar e cuidar da filha. Atividades intelectuais que desenvolveria seu animus e a relação com o masculino não são cultivadas.

Mas mesmo aqui também há uma diferença pequena, mas significativa. Mesmo com o elemento masculino saindo de cena, o pai em Enrolados não entregaria sua filha tão facilmente e nem cairia na proposta da esposa e da bruxa, por isso a menina teve de ser sequestrada. E ao final ele reaparece na vida cotidiana, coisa que não ocorre no conto.

Isso significa que seu animus não é tão fraco, e ela tem a oportunidade de resgatar essa dimensão de sua psique quando rompe os laços com Rapunzel. Outra mudança digna de nota é justamente a figura masculina e a relação do feminino com ela.

No filme não há um príncipe, o mocinho é um ladrão chamado Flyn com jeito de malandro que roubou justamente a coroa da princesa no castelo. Além disso, ele não sobe na torre de Rapunzel por amor, mas para fugir de seus perseguidores. Aqui a figura do masculino se aproxima de Hermes, deus traquinas, padroeiro dos ladrões e senhor da inteligência e astucia.

No filme não há paixão à primeira vista e Rapunzel precisa fazer um acordo com ele para sair da torre. Se ele a levar para ver as luzes e trazê-la de volta em segurança, ela devolve a coroa a ele. O que há de interessante nessa mudança é que a mulher vem ao longo do tempo parando de sonhar com um príncipe encantado e com amor à primeira vista. Agora elas anseiam com uma relação mais real e que percebem que o amor é algo a ser construído por meio do conhecimento e aceitação da sombra um do outro.

Com o ingresso no mercado de trabalho ela teve de desenvolver características que antes eram restritas ao masculino como a inteligência, o intelecto, e a astucia. Observem que Rapunzel teve de aprender a negociar com seu aspecto masculino para que ele a tirasse da prisão. Somente iniciando uma negociação com seu animus é que a mulher pode se desligar do complexo materno. Pois, como é dito na psicanálise é o masculino que faz a interdição entre mãe e filho. E isso é bem significativo, pois é ele quem corta os cabelos (cordão umbilical) de Rapunzel ao final.

Ao final, quando há o corte do cabelo, a ligação de Gothel e Rapunzel se corta e a mãe tem de aceitar seu envelhecimento e maturidade. A figura da mãe terrível e seu aspecto castrador morre e Rapunzel pode estabelecer uma melhor relação com seu próprio feminino e o aspecto materno em si mesma.

Quando os filhos crescem e saem de casa é um aspecto desafiante para a mulher. Se a mulher não desenvolve uma objetividade, pode até cair em depressão.  Gothel que é a mesma figura que a Rainha, mostra que agora consegue se relacionar com os aspectos masculinos de sua psique, representados pelo Rei. O masculino a conscientizou que há ela pode buscar outros interesses em sua vida fora do âmbito da maternidade.

Além disso, temos no final quatro personagens, dois femininos e dois masculinos, em um equilíbrio de opostos. Ainda temos um longo caminho, mas podemos notar aqui, um protótipo da alteridade se desenvolvendo em nossa consciência coletiva.

 

Referências:

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas historias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo:2002.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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“Cinderela” e o processo de individuação nos contos de fadas

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Era uma vez uma bela menina chamada Ella que vivia com seus pais em um paraíso idílico,
até a morte de sua boa mãe… 

Assim começa a nova adaptação do famoso conto de fadas Cinderela, com a morte da boa mãe e a subsequente substituição pela madrasta má. Antes de analisar essa substituição da figura materna, é importante observarmos alguns pontos do começo da história, bem como a quantidade de personagens.

No início então temos apenas três personagens: Ella, sua mãe e seu pai, ou seja, uma tríade. Para Carl Jung (1979), o número quatro representa a totalidade (as quatro estações do ano, os quatro evangelistas, os quatro rios que saem do Paraíso, as quatro funções da consciência etc).

No filme começamos com apenas três personagens. Isso significa que falta um elemento para a totalidade. Esse quarto elemento é o que está mais próximo ao inconsciente e vem trazer aquilo que está faltando para a consciência, e costuma ser o depositário das projeções dos aspectos sombrio da consciência. Essa trindade inicial então é destruída com a morte da mãe da menina. Nos contos de fadas é comum a heroína perder a mãe e aparecer uma substituta má.

A morte da boa mãe simboliza um momento crítico na vida da criança, onde há a perda do paraíso e da identificação com as figuras parentais. Ela ocorre justamente na passagem da infância para a adolescência, quando os pais são vistos com seres imperfeitos e iniciando nesse instante a criação do ego, por meio do choque e do conflito.

De acordo Von Franz (2010):

“A morte da mãe significa, pois, simbolicamente, que a menina toma consciência de que não pode mais se identificar a ela, ainda que a relação positiva essencial e afetiva permaneça. A morte da mãe é, portanto, o início do processo de individuação.”

Na versão de Cinderela escrita pelos irmãos Grimm, a boa mãe morre e sobre seu tumulo cresce uma árvore onde pousa uma pomba branca que aconselha a menina. Segundo Von Franz (2010), algo sobrenatural sobrevive à morte da figura materna positiva e a substitui; uma espécie de fetiche a qual encarna o espírito da mãe. O filme segue a versão de Charles Perrault onde – ao invés da árvore – temos uma Fada Madrinha que vem ajudar a menina. Ela também simboliza o espírito da boa mãe e também da velha sábia, como veremos a seguir.

A trindade inicial se transforma em um quatérnio feminino, formado por Ella, a madrasta e as filhas dela. Mas, antes de nos aprofundarmos nesse quatérnio é importante mencionar que no começo do filme é salientado o fato de Ella não ser uma princesa, mas alguém do povo. Isso é incomum nos contos de fadas, onde geralmente a heroína é alguém da família real.

Essa mudança vai trazer algumas repercussões interessantes para o filme. Repercussões essas não exploradas no conto original, mas que trazem uma dimensão interessante para a história, e para a compreensão de algumas mudanças na consciência coletiva.

No processo de individuação da mulher, a identificação com a mãe boa constitui um sério risco, pois é mais comum a mulher seguir padrões instituídos pela sociedade e pela família (não é à toa que a moda é esmagadoramente voltada para o público feminino). Assim, ter uma mãe boa demais pode ser muito prejudicial à individuação da mulher, pois ela terá muita dificuldade em se desligar dos padrões impostos pela mãe, e se tornará uma simples cópia.

Vemos isso claramente nas irmãs postiças de Cinderela, elas não possuem personalidade própria, se vestem igual e seguem exatamente o que a mãe diz.  A mulher precisa ter um comportamento feminino autentico e não um modelo feminino típico. Dessa forma ela poderá mostrar a sua individualidade e a sua diferença no mundo. Nesse contexto, a madrasta simboliza a boa mãe, num pólo ambivalente, que deixou de ser boa, e devorou a personalidade de suas filhas, tornando-se também: a madrasta.

Em nossa sociedade ocidental a figura da mãe é permeada apenas pelo lado luminoso. Os aspectos sombrios da figura da Grande Mãe foram suprimidos em nossa sociedade, isso afetou diretamente as mães pessoais, que se sentem no dever de serem perfeitamente boas. No filme, a mãe de Cinderela aconselha sua filha a ser sempre gentil e corajosa, ou seja: sempre bondosa! A madrasta surge na história para trazer outra dimensão à personalidade de Cinderela. A figura da madrasta vem para complementar a ingenuidade e a doçura sem limites da moça.

Cinderela é aquela que busca a sua individualidade, por isso é a heroína e também por isso sofre perseguições. Se observarmos grupos de meninas podemos ver que elas se comportam e se vestem de forma igual para se sentirem aceitas e pertencentes. Aquelas que de certa forma não se encaixam nesses padrões são postas de lado e perseguidas.

Ser aceita é parte do comportamento e busca do feminino, e não ser traz muito sofrimento a mulher, como vemos em Cinderela. No entanto, esse sofrimento é compensado com uma personalidade mais sólida e mais individuada. Vemos que Cinderela busca a individuação quando ela pede ao pai um galho de árvore e não o mesmo que suas irmãs. A árvore é símbolo do processo de individuação, simbolizando o crescimento natural da personalidade.

Agora se observarmos do ponto de vista da madrasta (que aqui possui uma dimensão mais humana que no conto), ela faz de tudo para ser aceita e inclusa. Seus atos são validados pela dor de competir com a esposa morta pelo amor do marido. É bem notório que quando alguém morre passa a ocupar um status de alguém impecável e sem defeitos. Pois bem, a madrasta é humana e sofre pelo fato de competir com uma “deusa”, por essa razão ela passa a perseguir a filha dessa mulher, uma vez que ela lembra a esposa morta.

Ella então se torna uma serviçal e passa a dormir entre as cinzas.  As cinzas representam a humilhação, descida de classe social, bem como a contrição e a humildade. Elas podem ser associadas a operação alquímica da mortificatio, que representa a experiência da morte e da transformação do corpo em cinzas por meio da queima no fogo das emoções. É uma derrota para o ego, um encontro com seus aspectos sombrios.

Isso significa que o aspecto ingênuo e infantil da psique de Cinderela deve morrer, antes que ela possa entrar contato com o masculino. Ella passa então a se chamar Cinderela, ou Gata Borralheira. Houve uma iniciação e agora ela não é mais a mesma pessoa. A garota indignada foge para a floresta e encontra o príncipe que está em uma caçada a um cervo.

Nesse ponto há uma mudança significativa em relação ao conto: passamos a ver o dilema do príncipe! Coisa que no conto original não há. Descobrimos então que o príncipe, não tem mãe e está com seu pai doente. Sendo necessário que ele encontre uma esposa para que possa assumir o posto de rei. Mas essa esposa deve ser uma princesa. Nos contos de fadas clássicos é comum termos um rei que está doente, ou velho demais e que precisa ser substituído.

O rei que simboliza a manifestação do Self na consciência coletiva precisa se renovar. Isso significa que os símbolos coletivos do Self se desgastam. As religiões, as convicções e as verdades, tudo envelhece e precisa ser renovado. Tudo o que dirigiu uma sociedade por determinado tempo é deficiente, no sentido que envelhece (VON FRANZ, 2011). E o rei doente é justamente esse símbolo e o príncipe é aquele que trará essa renovação.

No filme vemos que o reino é composto apenas por figuras masculinas. Isso significa que a consciência coletiva está se dirigindo unilateralmente e sendo pautada apenas pelo princípio masculino. Há carência de Eros nas relações e tudo deve ser seguido conforme as normas e as regras estipuladas, e elas devem ser mantidas. Von Franz (2011) aponta que o feminino é muito mais subjetivo e voltado para a exceção. A mulher rompe as regras em função dos sentimentos. O feminino traz a flexibilidade.

Portanto há uma ênfase exagerada na consciência coletiva para os princípios masculinos. E todo exagero é prejudicial. É extremamente importante que busquemos o equilíbrio desses aspectos complementares uma vez que temos que conviver com eles tanto interna quanto externamente.

O príncipe ao encontrar Cinderela desiste de caçar a corça, pois percebe que isso era algo que ele fazia de forma automática, apenas porque todos faziam. Ele se apaixona por ela, uma simples camponesa, e não desiste de fazer dela sua esposa. Ou seja, ele abre a exceção em função do seu sentimento. Podemos então dizer que ele possui uma relação mais saudável com o feminino e com sua função sentimento. Ele está apto então a trazer esse equilíbrio para a consciência.

O rei nos contos deve ser fértil para que o reino também seja, e ele não pode ser fértil sem sua contraparte feminina. Assim como a mulher também não se torna fértil sem sua contraparte masculina. Ao encontrar Cinderela e se volta para uma nova dimensão de sua alma, a da exceção em favor do sentimento, e ela se volta para uma coragem e uma força interior desconhecida. Acontece então o famoso baile e Cinderela é proibida de ir pela madrasta. E nesse instante aparece a famosa fada madrinha.

A fada como interpretamos anteriormente simboliza o espírito da boa mãe que permanece na heroína e no filme ela também aparece com o aspecto de velha sabia. Como no conto ela usa de magia para transformar os animais em cocheiros, a abóbora em carruagem e o vestido rasgado em um novo. O ato de usar magia nos contos de fadas para escapar de um perigo ou conseguir algo, significa que não se está pronto para enfrentar um conflito diretamente e para isso se usa um subterfúgio para contornar a situação.

Psicologicamente significa que, por vezes, não podemos enfrentar diretamente um conflito e precisamos aguardar o momento certo para isso. Esses conflitos muito difíceis não devem ser enfrentados apenas pelo ego, eles precisam da ajuda do Self. No filme, então, Cinderela não enfrenta a sociedade com sua identidade real. Ela precisou da magia para fingir quem não era e assim poder ser aos poucos conhecida pela sua beleza interna.

É interessante observar que a única coisa que a Fada Madrinha não transformou foi o sapato. Esse ela criou “do nada”! Os sapatos, assim como a roupa, estão ligados a persona. Com eles mantemos os pés na terra, simbolizando a atitude da realidade. Com ele podemos seguir um caminho e também pisar em alguém, mostrando o aspecto de poder do indivíduo (VON FRANZ, 2002). No filme e no conto eles mostram a classe social da pessoa.

Cinderela então está em busca de uma realidade própria, sua autoafirmação na sociedade e no mundo exterior sem seguir as convenções e padrões. O sapato no filme é de cristal.  Cristal em grego krystallos, significa “gelo” e simboliza tudo o que é puro, espiritual, se assemelhando ao diamante. Ele seria uma indicação da luz divina. O diamante é uma pedra de uma dureza imensa, sendo capaz de cortar até o ferro. Em contos de fadas é comum o herói ao final de sua jornada encontrar um diamante ou outra pedra preciosa, simbolizando a meta da individuação.

O cristal então assim como o diamante, então são símbolos da pedra filosofal. Ou seja, da meta da individuação, do Self. Ele simboliza a individualidade mais profunda do indivíduo e que não pode ser destruída. O sapato de cristal é a única coisa que sobrevive após o término da magia e é a única coisa que realmente pertence à Cinderela e que vai mostrar a sua verdadeira identidade ao príncipe. Ele é o símbolo da realidade única da personalidade de Cinderela, seu valor mais profundo diante da aparente pobreza. Ela pode se tornar rainha agora e enfrentar as irmãs e a madrasta, pois encontrou a sua meta.

Para Jung, é a anima no homem e o animus na mulher que indicam a meta da individuação. Ou seja, o amor pelo príncipe a fez seguir algo que ela nem sabia bem ao certo o que era e se era possível de alcançar, mas ela já não conseguia mais ficar parada sem agir. O príncipe então já rei, devido à morte do pai, vai ao encontro de Cinderela com o sapato perdido. E assim como no conto o sapato só cabe no pé da verdadeira dona.

No conto original as irmãs chegam a mutilar os pés para poder colocar o sapato, o que foi suprimido no filme para que não chocasse o público. Mas mutilar os pés significa que ninguém pode viver a vida de outro sem mutilar uma parte de sua própria personalidade. O Self nos manda sempre aquilo que devemos viver. A porção que nos cabe e que é só nossa.

Cinderela então se torna rainha e o reino encontra a renovação e o equilíbrio temporários, pois em breve uma nova aventura aparecerá, uma vez que esse reino uma hora precisará de outra renovação. Outros aspectos inconscientes deverão ser encarados. E é assim com a nossa vida também, constantemente somos forçados a olhar para outros aspectos desconhecidos de nós mesmos.

Referências:

EDINGER, E. F. – Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. A Interpretação Psicológica do dogma da Trindade. Vozes. Petrópolis: 1979.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 1999.

VON FRANZ, M. L. O gato – Um conto da redenção feminina. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2011.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016


FICHA TÉCNICA DO FILME

Título Original (EUA): Cinderella
Direção: Kenneth Branagh
Música composta por: Patrick Doyle
Duração: 112 minutos
Ano: 2015

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Úrsula e o arquétipo da Mãe Terrível

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Úrsula é a bruxa do mar no desenho Ariel – A pequena Sereia. Não sabemos qual é a sua história e nem suas motivações. Sabemos apenas que ela deseja o poder, ela anseia e passa a sua vida querendo ocupar o lugar do rei Tritão, sob a forma de vingança.

Por esse motivo precisamos analisar os outros personagens enquanto símbolos que se relacionam com Úrsula. Primeiramente é importante falarmos sobre o mar. O mar é um símbolo do inconsciente coletivo. E no desenho nele temos os seguintes personagens: o rei Tritão e suas sete filhas, sendo Ariel a caçula, a sua favorita e Úrsula.

Notem que não há uma rainha, mesmo com filhas mulheres não há um regente, e Tritão reina absoluto. Podemos especular, então que Úrsula poderia ser essa regente que foi esquecida e reprimida. Nesse caso, observamos que o inconsciente se encontra em um processo patriarcal e a vingança de Úrsula é motivada pelo desejo de ser reconhecida.

Interessante notar que no começo do filme não se houve falar dela, seu nome nem é mencionado. Somente quando Ariel decide ser humana que Úrsula coloca em pratica seu plano de vingança. Isso mostra que Úrsula é um arquétipo que foi constelado e emergiu a superfície da consciência, como veremos a seguir. Além disso, além de Ariel, temos o príncipe Eric no reino humano.

Eric é a peça chave para a compreensão de Úrsula e para o restabelecimento do equilíbrio masculino-feminino da estrutura psíquica. Enquanto príncipe, Eric representa a esperança de renovação da consciência. Não ouvimos falar sobre seu pai ou sua mãe e ele tem somente um tutor e vive com marujos ao mar. A atitude consciente aqui também se encontra unilateral, sem o elemento feminino.

Mas na noite do aniversário do Príncipe Eric, Ariel sob a superfície e se apaixona por ele. Em uma tempestade que se seguiu, o navio é destruído e Ariel salva Eric. A sereia canta para ele, mas rapidamente o deixa quando ele recupera a consciência para evitar ser descoberta. Fascinado pela voz que ficou em sua cabeça, Eric promete encontrar quem o salvou.

Antes de continuarmos a análise é importante falar sobre a figura da sereia. As sereias na Mitologia Grega eram seres extremamente perigosos. Seu canto levava os homens a se afogarem. Elas personificam um aspecto perigoso da anima, a ilusão destruidora. Esse aspecto da anima, representado pela sereia, simboliza um sonho irreal de amor, de felicidade, e de calor materno (o ninho) — um sonho que afasta o homem da realidade (JUNG, 2002).

Eric está preso nessa anima negativa e encantadora. Ele não consegue estabelecer uma relação com uma mulher real. Mesmo quando Ariel adquire pernas humanas, ele ainda vive preso ao ideal ilusório de mulher. Ariel da sua voz a Úrsula, em troca das pernas. Ou seja, para se humanizar ela perde justamente o encanto que leva os homens a destruição. Mas Eric ainda fica preso a essa ilusão representado pela mãe.

Ele é um puer aeternus, que não se compromete, não quer crescer. Nota-se isso no seu jeito infantil com que brinca com seu cachorro de estimação. Mas por trás dessa anima encantadora, está Úrsula, que aqui simboliza a Mãe Terrível, como aspecto regressivo da psique. O herói representado por Eric terá que lutar com ela para que a consciência se liberte da infância e sua anima possa se humanizar e se desenvolver.

Vários mitos e contos de fadas relatam essa passagem na jornada do herói, onde ele mata o dragão (ou outro anima terrível) e salva a donzela em perigo. Após, então, matar Úrsula, Eric liberta a psique do caráter regressivo e sua anima Ariel também é liberta do animus terrível, representado por seu pai.

Muitos contos de fadas relatam que a anima possui um guardião com aspecto de um deus terrível e até demoníaco, um “animus da anima” e o herói também precisa superá-lo.  E o filme termina com o casamento, e o estabelecimento do equilíbrio masculino e feminino na consciência. Úrsula, por meio de Ariel, obteve seu devido reconhecimento e agora pode se tornar Rainha novamente.

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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A Rainha Má de Branca de Neve e a inveja

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Branca de Neve é um dos contos de fadas mais populares. Diversas adaptações para cinema, televisão já foram feitas com base nele.

A estória de Branca de Neve começa nos apresentando uma princesa que ao nascer perde a sua mãe. Seu pai então se casa com uma nova mulher. Ao crescer a beleza da menina desperta na Rainha inveja motivando sua crueldade, a ponto de tentar cometer assassinato. O tema da mãe que morre e uma madrasta que entra em seu lugar é um tema recorrente nos contos de fadas.

Mãe e madrasta na verdade são a mesma pessoa. São duas faces da mesma moeda. E no desenvolvimento da personalidade, a transformação da mãe boa em mãe terrível torna-se estritamente necessário. A expulsão do paraíso materno é um fator preponderante para o processo de individuação. Sem essa expulsão ficamos na zona de conforto e não nos desenvolvemos. Seremos o eterno “filhinho (a) da mamãe”.

Além disso, os contos de fadas costumam apresentar de forma simbólica sentimentos comuns a toda humanidade. E em Branca de Neve temos um sentimento básico em evidência: A inveja.

A Rainha, madrasta de Branca de Neve, inveja a beleza da menina, pois não se conforma com o envelhecimento e com a perda do posto de mais bela.

 

 

A esse respeito, Betthelhein (2002) diz o seguinte:

A perda da proteção materna sofrida por Branca de Neve a deixou vulnerável a uma outra mulher que não a acolheu como filha, pois a Madrasta, vítima da necessidade de ser bela, sedutora, a desejada por todos, não conseguia cuidar de outra mulher que, mesmo sendo menina, se constituía numa ameaça.

Pode-se dizer que Branca de Neve, trata de uma estória do desenvolvimento feminino. Apontando como a psique da mulher pode evoluir e se desenvolver. Não que os homens não possam se beneficiar desse conto, mas neles o benefício será mais no aspecto de sua anima.

No desenvolvimento psíquico o ego das mulheres, até certa idade, se estrutura em torno da beleza e sedução. Não quero entrar no mérito da questão, nem dizer o que é certo ou errado, mas nosso inconsciente coletivo está pautado nessa estrutura – basta observar que a indústria de cosméticos, moda e tudo aquilo que se liga à beleza é voltada em sua maioria esmagadora para a mulher. E nos mitos, temos geralmente como representante da beleza uma deusa, exemplos disso são Afrodite na Grécia, Vênus em Roma e Oxum na África.

 

Com o passar dos anos e a conseqüente degradação do corpo, a mulher que se encontra no processo de individuação já deveria estar em contato com outros aspectos da psique, como o animus e o Self. E nesse processo de amadurecimento o centro de sua psique deveria deixar de ser ego e passar a ser o Self e essa identificação com a beleza diminuída.

Não digo que com isso as mulheres não devam mais ser vaidosas, mas é necessário deixar de fazer da beleza e da juventude seus únicos atributos.

Infelizmente o que vemos atualmente em nossa sociedade é uma grande quantidade de mulheres, principalmente no ocidente, onde a perda da juventude e da beleza é algo aterrorizante. E esse é o drama da Rainha que vê em sua filha a passagem do tempo e a diminuição de sua beleza. Ela é uma mulher extremamente imatura a ponto de deixar de ser uma mãe cuidadosa.

 

Note que ela não possui um relacionamento com o inconsciente, ela está completamente identificada com sua persona. Seu animus é quase inexistente, pois o marido é omisso na relação dela com a Branca de Neve, não exercendo a sua função de discernimento e reflexão.

Quantas mulheres atualmente em nossa sociedade, onde a imagem é privilegiada, não “assassinam” a sua própria criação em função de uma atitude unilateral, sufocando sua criatividade.

 

Entretanto, a Rainha tem um caminho para o seu desenvolvimento, projetado em Branca de Neve. Através da princesa e sua jornada, a Rainha pode se desenvolver e sair da unilateralidade. E a jornada de Branca de Neve possui muitos paralelos com o mito grego de Psique.

No mito Afrodite, a deusa mais bela, com inveja da beleza de Psique a pune enviando-a (assim como a Rainha) para ser sacrificada. Entretanto Eros, filho de Afrodite, se compadece e se apaixona por Psique, salvando-a do destino trágico.

Em Branca de Neve temos a figura do caçador que se compadece da princesa e entrega a Rainha o coração de um veado. Aqui a figura do animus começa a aparecer e começa a apresentar vestígios de reflexão e de proteção, mesmo sendo considerado apenas um simples servo.

Após esse episódio, Branca de Neve vai viver em uma casa com os sete anões. Onde passa a cuidar da casa para eles, lavando, limpando e cozinhando.

Nesse estágio, a princesa encontra o animus em sua forma múltipla, ainda que indiferenciado, e um tanto primitivo. Mas ele já apresenta seu lado prestativo e o mais importante Branca de Neve se relaciona com ele, vive com ele e negocia com ele: Ela cuida dos anões em troca de proteção.

 

Um aspecto importante dos anões é que eles trabalham nas cavernas garimpando pedras preciosas. A caverna é um símbolo do inconsciente, portanto o trabalho de retirar os tesouros do inconsciente para a ampliação da consciência já está sendo feito pelo animus.

A Rainha descobrindo o paradeiro de Branca de Neve tenta por três vezes matá-la. Na primeira vez ela amarra de uma forma violenta, uma fita ao redor da cintura da menina fazendo-a perder o fôlego, da segunda vez da um pente envenenado a menina e na terceira vez ela da à menina a tão famosa maçã envenenada.

Essa estrutura de três provas, ou três tentativas é muito comum em contos de fadas. Na verdade, esse “três” sempre se desdobra para um “quatro”, o número da totalidade, por isso nos contos há três tentativas, com uma quarta completamente diferente das anteriores.

Nota-se que as duas primeiras tentativas de matar Branca de Neve estão associadas à vaidade e a terceira à sedução, pois a maçã na mitologia grega está associada a da deusa do amor, da beleza e da sedução, Afrodite. E ela sucumbe a todas as tentativas, sendo auxiliada nas duas primeiras pelos anões.

Em seu mito, Psique também sucumbe em sua ultima tarefa, que foi pegar o creme de beleza de Perséfone, a qual foi alertada a não abrir. Mas sua curiosidade e vaidade femininas fizeram-na abrir, levando-a a cair como morta. Ou seja, Branca de Neve e a Rainha devem amadurecer em relação à beleza e sedução, o que equivale a perder a ingenuidade e desenvolver a capacidade critica provinda de seu animus.

 

O desfecho é conhecido: um príncipe que andava pelas redondezas avistou o caixão de vidro feito pelos anões, ficando apaixonado. Ele leva o caixão para seu castelo. No caminho, a carruagem tropeça, e o pedaço de maçã que estava na garganta de Branca de Neve sai, e ela volta a respirar. O príncipe a pede em casamento, e convida para a festa a Rainha, que comparece, morrendo de inveja. Como castigo, ao sair do palácio, acabou tropeçando em um par de botas de ferro que estavam aquecidas. As botas fixaram-se na rainha e a obrigaram a dançar; ela dançou e dançou até, finalmente, cair morta.

Diferentemente de Afrodite, que no mito é transformada pela jornada de Psique, fazendo-a mudar de atitude e aceitar a beleza da jovem. A Rainha mantém sua atitude unilateral, permanecendo na inveja em relação a Branca de Neve, que agora alcançou um desenvolvimento de sua personalidade e iniciou um relacionamento com seu inconsciente, simbolizado pelo seu animus – príncipe.

Infelizmente, a Rainha não consegue demonstrar alegria e amor pela filha. Muitas mães infelizmente invejam a beleza e a as conquistas de suas filhas. Suas vidas não vividas e pautadas no ego são fonte de amargura e raiva. E a Rainha, tristemente, encontra o destino de todo aquele que mantém uma atitude radicalmente unilateral, que é a morte.

 

Referências:

BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos contos de fadas. 16 ed. – Paz e Terra: São Paulo: 2002

JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 21 ed.Vozes. Petrópolis: 2008.

NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São    Paulo:2002.

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As bruxas dos contos de fadas: aspectos sombrios da alma feminina

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Temos atualmente uma profusão de adaptações para o cinema de contos de fadas e todos eles voltados para um público mais adulto.

O que chama a atenção é que nessas produções a figura da bruxa ou madrasta ganha um grande destaque com atrizes consagradas. E no fim elas acabam sendo até mais interessantes que as mocinhas. No caso do filme Malévola, baseado no conto A Bela Adormecida, a fada desprezada se torna a protagonista do filme e assistimos toda a trama pelo olhar daquela que seria a “bruxa”.

Nos contos de fadas clássicos e famosos como Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel e o citado Bela Adormecida temos sempre presente a figura da bruxa ou madrasta que persegue a bela jovem, se tornando um importante catalisador do processo de individuação da heroína.

Para compreendermos a bruxa é importante salientar que se trata de um arquétipo. A bruxa/madrasta representa uma faceta do arquétipo da Grande Mãe, e nele está inserida a bruxa ou madrasta (a mãe diabólica, terrível), a velha sábia e a deusa que representa a fertilidade, bondade e piedade (aspectos da mãe boa).

Infelizmente, esse é um aspecto negligenciado em nossa sociedade.

Em uma sociedade como a nossa, judaico-cristã, com uma forte base patriarcal não há uma imagem arquetípica da mulher. Marie Louise Von-Franz, em seu livro O Feminino nos Contos de Fadas, cita que Jung sempre dizia que a mulher não tem uma representante no “Parlamento de Cima”.

É evidente que o patriarcado trouxe muitos avanços em termos de cultura e tecnologia e foi extremamente necessário para o estabelecimento da ordem, das leis e para o desenvolvimento intelectual da humanidade. E com isso a deusa-mãe foi afastada durante certo tempo, acentuando e desenvolvendo o pólo masculino da psique masculina.

Entretanto a consciência quando persiste demais em um curso de ação, em uma situação que se torna ultrapassada os conteúdos reprimidos voltam a se “vingar” da atitude unilateral. A obstinação em um curso de ação acarreta a dissociação e a neurose.

Dessa forma, os aspectos femininos, tanto no homem – em relação à sua anima – quanto na mulher, ficaram negligenciados. Isso acarretou na mulher uma insegurança e uma incerteza em relação a sua essência. E no homem também uma insegurança em relação aos seus sentimentos. Hoje os homens também se sentem perdidos em relação a esse feminino não compreendido.

Ainda em O feminino nos contos de fadas, Von Franz aponta para o fato de que a Deusa-mãe ainda não fez a sua reaparição em uma filha humana, assim como temos um representante do Deus encarnado em um filho, Jesus.

Temos atualmente à devoção à Virgem Maria, mas essa figura surgiu acompanhada de varias restrições. A Deusa-mãe foi acolhida pela igreja católica, mas em uma forma purificada de sua sombra e de uma forma “adequada”.

Portanto o aspecto sombra da Deusa-mãe necessita fazer a sua reaparição e nossa sociedade. E a bruxa dos contos de fadas, simboliza justamente a Deusa-Mãe negligenciada, a Deusa da terra, ou seja, o feminino em seu aspecto destrutivo. Esses aspectos sombrios do feminino são: a inveja, a vingança, a sexualidade e o contato com a natureza.

Contudo, a bruxa é um aspecto extremamente necessário para o desenvolvimento psicológico e para o processo de individuação da mulher. Sem ela a heroína não sairia do lugar. Nos contos vemos que a sombra da boa mãe negligenciada é quem torna a heroína ou princesa tridimensional. A bruxa mostra o aspecto da mãe natureza. Se observarmos os animais, veremos que ela aparece com uma dose de maldade. Mas uma maldade positiva. As raposas, por exemplo, costumam morder os filhotes quando atingem certa idade, obrigando-o assim a assumir a sua liberdade.

A mãe que possui um instinto feminino saudável sabe que deve afastar o filho que se agarra demais a ela. Infelizmente hoje, esse instinto está doente e temos uma geração de mimados e filhinhos da mamãe que não assumem responsabilidade. Hoje esse tipo de comportamento é considerado imoral, a mãe “deve” ser boazinha e possuir uma piedade ilimitada – a imagem da Virgem Maria caridosa e que recebe todos os pecadores com seu manto.

Contudo é essa mãe terrível quem nos força a sair da zona de conforto. O ser humano sempre busca o prazer e o aconchego doa braços da boa mãe, e ele sempre tende a se tornar inerte nesse estado paradisíaco. Entretanto nesse estado, não há desenvolvimento. Sem a mãe terrível para nos expulsar do paraíso não progredimos.

Portanto, ao aceitar o desconforto, o sofrimento e as limitações impostas pela bruxa, podemos nos desenvolver em direção a uma totalidade, capaz de integrar o bom e o ruim, o agradável e o desagradável.

Referências:

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

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“Interestelar” e os aspectos psicológicos do inconsciente

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Antes de começar a análise do filme devo avisar a quem não assistiu
que há vários spoilers ao longo do texto
.

O filme começa nos contando a história de Cooper um ex engenheiro da Nasa, viúvo e que vive com seus dois filhos e o sogro em uma fazenda. Cooper agora se tornou fazendeiro, uma vez que uma praga nas colheitas fez com que a humanidade regredisse e agora precisasse mais de fazendeiros do que engenheiros.

Veremos então que em um futuro indefinido, a humanidade corre o risco de extinção, devido a exploração indevida dos recursos do planeta e está sendo ameaçada de extinção devido a fome e a uma onda de poeira que causa sérios problemas respiratórios.

Se analisarmos a sociedade ocidental não estamos longe disso. Vivemos ainda em sociedade dominada pelo Logos, ou seja, pelo principio racional, patriarcal, dominado pela ânsia do poder. Uma vez que Carl Jung atribui ao Logos, a masculinidade, na mulher, o Logos é atribuído ao seu animus.

Conforme Carl Jung o Logos, luta por se desembaraçar do calor e da escuridão primevos do útero. Porém, o espírito que ousa isto sofre inevitavelmente a desvantagem de uma excessiva ênfase na consciência patriarcal. Nada, porém, pode existir sem seu oposto, e, portanto, a consciência é incapaz de existir em a inconsciência, assim como o Logos sem sua contraparte compensatória, o Eros, principio feminino (Dicionário Critico Junguiano, 2015).

O principio feminino Eros, se encontra representado aqui pela natureza, ou seja, nossa sociedade se encontra fortemente identificada com o principio masculino e com a racionalidade pura. O homem ocidental perdeu o contato com o inconsciente e com o irracional. E o filme traz justamente uma critica e uma antevisão do que pode acontecer se continuarmos em uma atitude unilateral.

Murphy a filha mais nova de Cooper começa a ter contato com um “fantasma”, o qual ela acredita querer se comunicar com ela. Cooper descobre que o fantasma é uma inteligência que se comunica por meio de mensagens codificadas graças ao campo gravitacional.

Essas mensagens o leva a uma estação secreta da Nasa, onde uma missão especial está sendo desenvolvida afim de encontrar um planeta habitável para a raça humana. Cooper é então convocado a essa missão. Nessa estação o engenheiro fica sabendo a respeito do buraco de minhoca que foi aberto próximo a Saturno e que leva a novas galáxias onde é possível encontrar um planeta compatível para a raça humana.

Bem o buraco de minhoca, é um conceito hipotético da física, que significa um atalho no espaço-tempo. O nome “buraco de minhoca” (ou verme) vem de uma analogia usada para explicar o fenômeno. Da mesma forma que um verme que perambula pela casca de uma maçã poderia pegar um atalho para o lado oposto da casca da fruta abrindo caminho através do miolo, em vez de mover-se por toda a superfície até lá, um viajante que passasse por um buraco de verme pegaria um atalho para o lado oposto do universo através de um túnel topologicamente incomum.

Um dado interessante sobre isso é que ao final do filme duas mulheres salvam o planeta. Com a ajuda de Cooper evidentemente, mas são elas os dois elementos principais da salvação: a menina Murphy e a cientista Amelia Brand. A NASA anteriormente já havia enviado algumas naves de exploração nas chamadas Missões Lázaro. Uma clara alusão ao mito bíblico de Lázaro, que retorna da morte, porque eles entram em sono induzido para acordar quando for necessário.

Três pilotos dessa expedição encontram três planetas possivelmente habitáveis e é para lá que a equipe de Cooper vai. Cooper é o comandante, Amelia a cientista, Romily o co-piloto, Doyle o técnico e o robô Tars formam a equipe expedicionária.

Ao passar pelo buraco de minhoca a equipe se dirige ao primeiro planeta, porém descobrem que ele possui uma enorme dilatação gravitacional temporal por estar tão perto da gargântua (um buraco negro). Lá cada hora na superfície equivale a sete anos na Terra. Além disso, o planeta é inóspito uma vez que é coberto por um oceano raso e agitado por ondas gigantescas. Ao regressarem descobrem que ficaram 23 anos lá. Agora a equipe só tem combustível para apenas um planeta. Amélia sugere ir ao planeta de Edmunds, seu grande amor, amor que havia partido anteriormente para lá, e havia enviado notícias de que as coisas iam bem.

O interessante nessa escolha, é que Amélia (uma cientista) se baseia apenas em seu sentimento, uma vez que não há dados racionais para a ida ao planeta de Edmunds. Ela se diz cansada da racionalidade e que o amor pode ser a resposta que a humanidade procura. Algo irracional, baseado apenas em uma intuição profunda.

O amor na psicologia analítica é um grande catalisador do processo de individuação. Uma força propulsora que transcende o ego. O amor é capaz de transcender tempo e espaço. E como dito anteriormente é justamente essa força que precisa ser resgatada na consciência coletiva.

Amelia representa a função sentimento, aquela que dá valor a alguém ou algo e oposta ao pensamento estatístico e cientifico vigente em nossa sociedade atual. É esse valor que nos faz enxergar nossa individualidade, mesmo tendo características em comum com toda humanidade. E é essa função que ensina o valor do lugar em que vivemos. No filme vemos que embora existam tantos planetas e galáxias assim como a Terra, nosso planeta é especial e único para nós.

E a jovem Amélia tem razão. Após a escolha errada (eles vão ao planeta que a cientista não queria ir tendo vários problemas inclusive a morte de um componente da equipe), ela é enviada por Cooper ao planeta de Edmunds e fica como a responsável pela exploração e colonização do planeta.

Murphy, filha do comandante Cooper, em Terra e agora adulta, devido a sua inteligência trabalha como cientista da NASA ajudando na equação que permitirá o lançamento de uma enorme estação espacial usando a gravidade, mas para que a equação funcione é necessário dados adicionais da singularidade de um buraco negro.

Ao mesmo tempo seu pai Cooper se joga em sacrifício no buraco negro para coletar os dados que podem salvar a raça humana. Eles e Tars emergem em um hipercubo multidimencional, onde o tempo é mostrado como uma dimensão espacial enquanto portais mostram pequenos momentos do quarto de infância de Murphy. Ele está na quinta dimensão!

Cooper descobre que ele era o fantasma de sua filha que enviava os dados dados “do futuro” para o momento da infância. A quinta dimensão pode ser interpretada como uma metáfora sobre inconsciente.

Para Carl Jung (2008) o inconsciente é atemporal e não espacial.

 

“Há neste algo de não-espacial e de atemporal. A prova empírica deste fato encontra-se nos chamados fenômenos telepáticos que, no entanto, ainda são negados por um ceticismo exagerado, mas que na realidade ocorrem com muito mais freqüência do que em geral se acredita’. A intuição da imortalidade repousa, a meu ver, num sentimento peculiar de expansão espaço-temporal.”

No inconsciente não há passado, nem futuro. Os fenômenos sincronísticos descritos por Jung são justamente uma quebra na consciência do ego que é pautada no pensamento cartesiano e presa no espaço-tempo. Sincronicidade tem a ver com simultaneidade. É uma coincidência significativa de dois ou mais acontecimentos, em que se trata de algo mais do que uma probabilidade de acasos (JUNG, 2000).

Na verdade o filme é uma tentativa de mostrar de forma simbólica o fenômeno da precognição e de como funciona nos “bastidores” do inconsciente a sincronicidade. Observamos no filme algumas suposições de Jung de que a psique não pode ser localizada espacialmente e nem ser determinada de forma temporal.

E mais do que isso, somos totalmente influenciados no presente pelos acontecimentos passados e pelas possibilidades futuras. As pessoas que possuem a função intuição bastante desenvolvida possuem a capacidade de se conectar com essa corrente do inconsciente, por essa razão são pessoas que possuem extrema dificuldade de viver no aqui agora.

No hipercubo Cooper descobre que na verdade quem criou o buraco de minhoca são na verdade humanos do futuro que dominaram outras dimensões e construíram esse espaço para que ele pudesse se comunicar com a filha e salvar a humanidade. Dessa forma ele descobre que quem foi escolhido para salvar a humanidade não foi ele, mas Murphy. Cooper levanta uma questão metafísica importante quando afirma ao computador TARS que quem abriu o buraco de minhoca “fomos nós”. Ou seja, seres humanos do futuro se comunicando e influenciando o presente e passado.

Não sou especialista em mecânica quântica, mas pelo pouco que sei, de acordo com ela um elétron pode se comportar como partícula e como onda. Partícula é um objeto sólido com uma localização especifica no espaço. Ondas não são sólidas e estão espalhadas assim como as ondas na água e não possuem localização especifica.

Como onda um elétron pode estar em qualquer lugar, sem localização precisa, dentro de um campo imenso de possibilidades. Mas o simples ato de observar um elétron faz com que ele se comporte como partícula. É como se ele tivesse consciência de estar sendo observado. Entretanto quando não se está observando ele pode estar em qualquer lugar.

Transpondo para o aspecto psicológico todos nós temos uma consciência cujo ego é o centro. O ego não é totalidade da consciência (apesar de no processo de conscientização os conteúdos passarem pelo ego) e é ele quem nos dá a noção de eu. Entretanto, por não ser toda a consciência, sentimos algumas vezes que temos outro alguém em nós a nos observar. Esse observador, que é a nossa consciência e que observa a matéria, faz com que nos comportemos como partícula e assim faz com que tenhamos localização especifica no tempo e espaço.

O ato de não haver mais a consciência como observadora, que se esvai com a morte, faz com que a psique volte a se comportar como onda. Retornando a totalidade do inconsciente. Ao entrar no braço negro Cooper não possui mais localização no tempo e espaço e está no campo de onda, onde as possibilidades futuras e o passado estão juntos. Ele está com consciência no inconsciente. E nessa gama de infinitas possibilidades ele age como observador do passado colapsando uma nova realidade.

O engenheiro, usando radiação gravitacional, passa os dados que TARS coletou da singularidade do buraco negro para o relógio de pulso da Murphy adulta, permitindo que ela solucione a equação e lance a estação espacial da NASA. E assim ela salva a humanidade, enquanto Amélia continua desbravando o novo planeta.

O fato de uma consciência observar a matéria no inconsciente soa de forma bastante paradoxal! Mas se compreendermos de forma simbólica fazemos algo semelhante no processo da psicoterapia, quando observamos nossos sonhos, nossos processos inconscientes e nossos aspectos sombrios. E quando observamos o inconsciente colapsamos em partícula aquele aspecto observado dando forma a ele na realidade do aqui agora, promovendo foco e podendo alterar a nossa realidade.

Concluindo, o ser humano sempre olhou para o céu e se perguntou qual seria seu lugar entre as estrelas. Entretanto esqueceu-se de olhar para baixo, para seu próprio lar e não se questionou qual o seu lugar e papel no aqui agora, na Terra.

 

Esse filme é, portanto, uma grande reflexão para que passemos a olhar nosso presente, nosso papel na sociedade e de qual forma podemos, individualmente, contribuir para a melhoria da sociedade, principalmente na questão da Ecologia, duramente afetada pela modernidade, conforto e explosão habitacional. No filme eles não fazem isso e se voltam para as estrelas fugindo de seu papel social e da responsabilidade de “consertar” o estrago feito. Mas o filme é uma ficção, e nós ainda podemos mudar antes que seja tarde.

 

Referências:

ARNTZ, W; BETSY, C & VICENTE, M. Quem somos nós? – A descoberta de infinitas possibilidades de alterar a realidade diária.Rio de Janeiro: Prestigio Editorial, 2007.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis:Vozes, 2008.

JUNG, C. G. Sincronicidade. Petrópolis: Vozes, 2000, 10ª edição.

VON FRANZ, M. L. Puer Aeternus – A luta do adulto contra o paraíso da infância.

http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/logos.htm – Acesso em 16-01-2015

 

Trailer:

 

https://www.youtube.com/watch?v=frD_IiY_A3E

 

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

INTERESTELAR

Diretor: Christopher Nolan
Roteiro: Jonathan Nolan, Christopher Nolan
Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain, Michael Caine, John Lithgow
Produção: Legendary Pictures

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Pã e o arquétipo dos instintos primitivos

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Pã na Grécia, ou Lupércio em Roma é o deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores. Filho de Hermes e da ninfa Dríope, habita em grutas e vaga pelos vales e pelas montanhas, caçando ou dançando com as ninfas.

 

É representado com orelhas, chifres e pernas de bode, amante da música, traz sempre consigo uma flauta. É temido por todos aqueles que necessitam atravessar as florestas à noite, pois as trevas e a solidão da travessia os predispunham a pavores súbitos, desprovidos de qualquer causa aparente e que são atribuídos a Pã; daí o nome pânico.

Ele tambémteria sido um dos filhos de Zeus com sua ama de leite, a cabra Amalteiae seu grande amor foiSelene, a persponificação da Lua. Em uma versão egípcia, Pã estava com outros deuses a margem doRio Niloe surgiu Tifão, inimigo dos deuses. O medo transformou cada um dos deuses em animais e Pã, assustado, mergulhou em um rio e disfarçou assim metade de seu corpo, sobrando apenas à cabeça e a parte superior do corpo, que se assemelhava a uma cabra; a parte submersa adotou uma aparência aquática. Zeus considerou este estratagema de Pã muito esperto e, como homenagem, transformou-o em uma constelação, conhecida como Capricórnio.

 

 

O filosofo grego Plutarco afirmou que Pã estava morto. Isso significa que Pã e seu simbolismo não é bem aceito pela sociedade ocidental.

Seu aspecto foi associado ao diabo o que denota que suas características foram associadas ao mal. Além disso, Rafael Lopez-Pedraza em sua obra: “Hermes e seus filhos”, associa Pã à masturbação, que mesmo a despeito do desenvolvimento intelectual da sociedade ocidental, é vista ainda como um tabu e como algo sujo.

A masturbação quando extrema pode ser destrutiva levando a um comportamento obsessivo compulsivo, afastando inclusive o indivíduo do contato afetivo proporcionado pela relação sexual. Entretanto de forma positiva ela favorece um relacionamento com o corpo, ligando as imagens sexuais ao corpo físico e emocional.

Essa morte simbólica de Pã, mostra que perdemos o contato com nosso corpo físico com seus desejos e com o corpo emocional. Mas Pã é o deus do pânico da loucura e dos pesadelos. Todos os que adentravam as florestas podiam ser tomados pelo pânico e pela loucura.

 

 

A floresta simboliza o inconsciente e adentrar a esse mundo pode fazer aflorar o pânico diante de nossos aspectos instintivos reprimidos e causar uma loucura momentânea. Pã é da metade para baixo bode, simbolizando o aspecto animal da natureza humana e seu lado instintivo. Sendo símbolo dos excessos, desejos irrefreáveis e incontroláveis que move nossa natureza animal. O fato de estar nas pernas, significa que não temos consciência nem controle racional sobre ele.

Contudo, mesmo com esse aspecto era capaz de produzir sons belíssimos com sua flauta, mostrando o lado elevado e belo da criação humana. A associação de Pã com Selene, a deusa da Lua, mostra que ele possui uma intima ligação com nossos aspectos lunáticos. Quando Pã aparece, esses aspectos de loucura e pânico podem trazer a cura, pois assim podemos compreender melhor essas patologias atribuídas a ele.

  

 

Esse deus pagão precisa encontrar seu lugar novamente em nossa consciência, pois como cada um dos outros deuses, sendo reprimido e esquecido se volta com toda a força em seu aspecto destrutivo. Ele foi o deus que sofreu mais repressão com o advento do cristianismo. Mas sem ele perdemos nossa dimensão corporal.

Hoje temos a expressão “bode expiatório”, que significa alguém sob o qual projetamos nossa sombra, nosso lado inferior, animalesco e desprezível, tentando nos livrar da culpa e dos nossos problemas. Pã é esse bode, que deve ser reconhecido em nós mesmos, para que não mais projetemos nossas sombras e assim passemos a ter mais consciência, contribuindo para um mundo mais humano e mais belo.

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Arquétipos em “O Conto da Princesa Kaguya”

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Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Filme de Animação.

O filme é baseado no conto do Cortador de Bambu, um conto japonês bastante popular. A história conta que um dia, enquanto cortava bambus na floresta, um velho, sem filhos se deparou com um misterioso e brilhante talo de bambu. Depois de cortá-lo, ele encontrou dentro dele uma criança do tamanho de seu polegar, que parecia uma boneca. Ele alegrou-se por ter encontrado uma menina tão bonita e a levou para casa. Ele e sua esposa criaram-na como sua própria filha e a chamam de Princesa.

 

 

A menina tinha um crescimento acelerado e logo se tornou uma bela jovem que gostava de correr pela floresta com seus amigos, pobre, suja, mas que possuía muitos desejos e sonhos. Seu pai, por outro lado, continuava a trata-la como uma verdadeira princesa. Ele à levou para a cidade para dar-lhe uma boa educação, mas teve muita dificuldade na missão de transformar a menina em uma “perfeita dama”.

 

Na verdade ele projeta em Princesa seu próprio desejo em ascender de classe social esquecendo os desejos e anseios da filha. Isso mostra um problema muito recorrente que gera muita angustia em pais e filhos, quando os pais com seus desejos e anseios não satisfeitos projetam na criança aquilo que não conseguiram realizar. E esse é um fardo muito grande para qualquer criança!

 

 

Como Princesa se transforma em uma jovem de beleza incomum, ela passa a ser cobiçada por cinco nobres, e também pelo próprio Imperador. E seu nome passa a ser Kaguya, ou seja, Bambu. Entretanto a menina não quer se casar e anseia voltar para sua vida simples interiorana. Por isso ela envia seus pretendentes em tarefas praticamente impossíveis de serem concretizadas, tentando assim, evitar o casamento com um estranho que não ama.

 

Mas Kaguya terá que enfrentar seu destino e punição por suas escolhas. Kaguya é apenas um prêmio para esses homens, e por essa razão ela sente um desespero imenso. Nesse desespero o povo da Lua (local de onde ela veio), ouve seu lamento e anuncia que virão buscá-la. E não há como reverter a situação.

 

 

Pode-se dizer que esse é um conto de fadas visto da perspectiva da princesa. O fato de ela ser uma filha da Lua, que desce a Terra (parece que o próprio povo decidiu enviá-la a Terra), mostra que se trata de uma heroína típica de contos de fadas e de mitos. Seu nascimento é mágico e seu destino incomum. Mas ao contrário das heroínas clássicas, as quais não são retratadas em sua dimensão humana, Princesa sofre, sente e anseia.

 

Kaguya é um arquétipo. No filme podemos perceber que os arquétipos necessitam da consciência do ego e da vida humana para se manifestarem e se humanizarem. Sem a dimensão humana eles são apenas potencialidades. Aparentemente Princesa falha em sua missão, uma vez que não conseguiu ser feliz aqui na Terra, mesmo assim sua história traz lições de extremo valor.

 

Quantas vezes deixamos de realizar nossos desejos em prol das convenções passadas a nós pela família e pela sociedade? E o quanto sofremos com as consequências de nossas escolhas? No filme, Kaguya sofre com a consequência de não haver seguido seu coração e ter ficado com seu amigo de infância Sutemaru. Quando ela se conscientiza disso já é tarde demais!

 

 

Quantas vezes nos arrependemos quando é tarde demais?  Quando não se pode mais voltar atrás?

 

Além disso, quando o povo da Lua vem buscá-la ela dá mais uma lição que pode parecer óbvia e clichê, mas que nos esquecemos constantemente em nossa vida diária: que a beleza da vida humana está no conflito. A felicidade e o sofrimento humano, inerentes à condição humana, são partes da nossa beleza. Kaguya não quer retornar ao mundo dos arquétipos, pois somente na condição humana é que existe a possibilidade de crescimento.

 

 

Além disso, enquanto ansiamos por posses, dinheiro e poder, ela descobre que sua alma era feliz com a simplicidade. Seu verdadeiro amor estava o tempo todo a sua frente e na vida simples é que ela conseguia ser ela mesma. A grande lição do filme, é que não importa o quanto se tenha, ou título que se carrega, se você não estiver seguindo o caminho da sua alma, tudo isso não vai adiantar nada. Pelo contrário, ao resistir em ouvir o desejo de nossa alma, ganhamos apenas dor, sofrimento e neuroses.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


 

FICHA TÉCNICA DO FILME

O CONTO DA PRINCESA KAGUYA

Direção: Isao Takahata
Música composta por: Joe Hisaishi
Autor: Isao Takahata
Duração: 137 minutos
Data de lançamento: 23 de novembro de 2013 (Japão)

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