“Não sou alegre nem sou triste: sou poeta” Cecília Meireles

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No poema “Motivo”, o tema da passagem do tempo é tratado com leveza e delicadeza por Cecília Meireles. No poema, o jogo de antítese alegre/triste, desmorono/edifico e a musicalidade encaminham o leitor para um mergulho na sua sensibilidade poética.

Os primeiros versos do poema parecem dialogar com a intensa vida da autora:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias;
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou se passo

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada
E um dia sei que estarei mudo:
– Mais nada

Uma vida envolvida pela literatura é a que viveu Cecília Meireles, que nasceu no Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1901 e em 9 de novembro de 1964 faleceu nesta mesma cidade. Viveu 63 anos e passou por circunstâncias diversas desde seu nascimento.

A professora, jornalista e poetisa nasceu 3 meses após a morte de seu pai. E mais: 3 anos após o seu nascimento morre sua mãe. Cecília Meireles, então, foi criada por sua avó materna, Jacinta Garcia Benevides, por quem Cecília será criada e a cuja memória dedicará, em 1945, o ciclo das oito Elegias de Mar absoluto.

Em 1929, Cecília Meireles defende a tese intitulada O espírito vitorioso para a obtenção da cátedra de Literatura na Escola Normal do Distrito Federal, mas não é selecionada para a vaga. Entretanto, é convidada pelo Diário de Notícias do Rio de Janeiro para tornar-se colunista durante os próximos quatro anos, quando então, já em 1934, Cecília será finalmente designada, pela Secretaria de Educação, para dirigir o Centro Infantil no Pavilhão Mourisco do Rio de Janeiro.

A esta altura, a professora estava casada com o artista plástico Fernando Correia Dias (com quem se casara em 1921) e, juntos, transformaram o Centro Infantil em um espaço encantado para as crianças, com a implantação da primeira biblioteca infantil da cidade.

No entanto, devido a intrigas políticas, é levantada a suspeita sobre a legitimidade moral e educacional dos livros do acervo, alegando-se que a biblioteca continha obras perniciosas para a formação das crianças e a biblioteca é fechada por ordem de Getúlio Vargas.

Depois desse golpe profissional, Cecília teve outro, em 19 de novembro de 1935: o suicídio do marido. Além do desgaste emocional e afetivo, viera a responsabilidade financeira de manutenção da casa e da criação de suas três Marias: Elvira, Matilde e Fernanda.

A partir daí, torna-se professora de Literatura Luso-Brasileira e de Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal; mantém uma coluna sobre folclore no jornal A Manhã, outra, de crônicas semanais, no Correio Paulistano, outra, de escritos regulares, n’A Nação, organiza a revista Travel in Brazil; por sua veia linguística, torna-se tradutora de renomados autores, como Rilke, Virgínia Woolf, Lorca, Tagore, Maeterlinck, Anouilh, Ibsen, Pushkin, além de antologias da literatura hebraica e de poetas de Israel.

Há um caso interessante ocorrido com a escritora, quando foi convidada para uma série de conferências na Universidade de Lisboa e de Coimbra. Por intermédio de um amigo, Cecília marca um encontro, em Lisboa, na Brasileira do Chiado, com Fernando Pessoa. O poeta não aparece ao encontro e, depois de aguardar por duas horas, Cecília retorna ao hotel e recebe um recado de Pessoa, no qual ele se desculpava por não ter podido vê-la. Qual o motivo? Pessoa havia consultado o seu horóscopo naquela manhã, que lhe desaconselhara por completo o encontro com Cecília naquele dia. Para compensar o desagrado, ele deixou para ela, com o pedido de desculpas, um livro: Mensagem – o que torna muito provável que tenha sido Cecília Meireles, no Brasil, a primeira leitora dessa única obra publicada em vida por Fernando Pessoa.

No final da década de trinta, com muitos problemas após a morte do marido, a poetisa recebe uma carta de um médium, que sugere a ela a eliminação de uma das letras do seu sobrenome. Ela assinava Meirelles. De acordo com o tal médium misterioso, sua vida tornar-se-ia mais leve se fosse retirada do seu nome um L. Cecília, então, passa a assinar seu sobrenome tal como o grafamos hoje: Meireles, com um único ele. E, espantosamente, a sua vida começou a tomar outro rumo.

Em 1940, Cecília se casa com Heitor Grillo e vai lecionar na Universidade de Austin (Texas), viajando pelos Estados Unidos e pelo México. Em seguida, dedica-se à sua obra, tempo em que publica obras primas como Vaga música (1942), Mar absoluto (1945) e Retrato natural (1949). Em 1953, é publicado o trabalho de extensa pesquisa, Romanceiro da Inconfidência, obra muito elogiada por Murilo Mendes. Além dessas, Cecília publicará ainda: as Canções (1956), Metal rosicler (1960) e Solombra (1963), o último de seus livros de poemas publicados em vida.

A partir de 1940, em uma nova fase de sua vida, Cecília recomeça suas viagens a países como a Argentina, o Uruguai, a França, a Bélgica, a Holanda, a Índia, incluindo Goa, a Itália, Porto Rico e Israel. Em suas viagens, procurava conhecer culturas, geografia e história. Essas viagens estão registradas a partir das contemplações em seus textos, como Doze Noturnos da Holanda (1952), dos Poemas escritos na Índia (1953), dos Poemas italianos (1953), de Pistóia, cemitério militar brasileiro (1955) e dos Poemas de viagens (1940-1964).

O gosto pelo folclore, Cecília desenvolveu a partir das histórias, das parlendas, das rimas, dos romances contatos por sua avó Jacinta, que nascera nos Açores. A menina Cecília conhecia muito bem o folclore brasileiro! Dramatizava, cantava, dançava, sabia adivinhações, cantigas, fábulas, histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça. Aos nove anos recebeu, de Olavo Bilac, uma medalha de ouro confeccionada especialmente para ela.

Neste envolvimento com a cultura e com a literatura é que Cecília Meireles estudou canto e violino, adentrou-se cada vez mais nos domínios da cultura oral, que a conduziu à literatura: à poesia, à ficção, ao teatro, à crônica, à prosa poética, aos ensaios, às conferências, aos livros didáticos e às traduções.

Em 1953, após o convite do Primeiro Ministro da Índia para visita àquele país, ela recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Delhi. Também recebeu o Prêmio Machado de Assis (1965) e Oficial da Ordem do Mérito (Chile). Também é sócia honorária do Real Gabinete Português de Leitura e sócia honorária do Instituto Vasco da Gama (Goa). Nos Açores, seu nome foi dado à escola básica da freguesia de Fajã de Cima, concelho de Ponta Delgada, terra de sua avó materna, Jacinta Garcia Benevides.

Após sua morte, foi homenageada com a impressão de uma cédula de cem cruzados novos em que está estampada a efígie de Cecília Meireles, lançada pelo Banco Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1989, seria mudada para cem cruzeiros, quando da troca da moeda.

Sua obra

A literatura de Cecília Meireles está pontuada por uma forte sensibilidade feminina, por uma introspecção, pela viagem para dentro de si e pela transitoriedade das coisas. A musicalidade está presente em sua poesia, assim como um universo de sonho, de fantasia e de solidão. No poema “Canção”, podemos perceber a melancolia citada:

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

O tema do poema sugere a tristeza causada pela perda dos sonhos, também, certa determinação em superar essa tristeza, que parece ser causada por suas próprias mãos.

A poetisa dedicou-se também às crianças e escreveu várias obras na área de literatura infantil como “O cavalinho branco”, “Colar de Carolina”, “Sonhos de menina”, “O menino azul”, entre outros. Nestes poemas infantis, há clara a marca da musicalidade, como em “Colar de Carolina”:

Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.

O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.

E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.

Para finalizar nossa pequena conversa sobre Cecília Meireles, o poema “A bailarina”, que já ilustrou inúmeros livros didáticos e que continua sendo uma das mais importantes poesias da literatura infantil:

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
Mas inclina o corpo para cá e para lá.

[…].

Conheça mais sobre Cecília Meireles nos seus livros de poemas, nos blogs com poemas, ou naqueles que foram mais divulgados pela voz de Fagner, como Canteiros e Motivo.

 

 

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Vinicius de Moraes: o poetinha da música, da literatura, do teatro e da dramaturgia

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“As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”.
Vinicius de Moraes

A conhecida frase pertence ao poema “Receita de Mulher”, de Vinicius de Moraes. O “Poetinha” não foi somente poeta, mas sua obra passa pela literatura, pelo teatro, pela música, pelo cinema. Aliás, Vinicius de Moraes foi, sobretudo, um conquistador, um amante das mulheres. Casou-se nove vezes e era um boêmio inveterado. Também era fumante e apreciador de uísque.

Vinicius de Morais nasceu no dia 19 de outubro de 1913, no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro. Cresceu no bairro de Botafogo e mais tarde na Ilha do Governador. Estudou na Faculdade de Direito do Catete. Estudou língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford a partir de uma bolsa do Conselho Britânico. Em 1941, retornou ao Brasil empregando-se como crítico de cinema no jornal “A Manhã”.

O poeta ingressou na diplomacia em 1943, quando foi aprovado no concurso para o Ministério das Relações Exteriores. Por causa da carreira diplomática, Vinicius de Morais viajou para Espanha, Uruguai, França e Estados Unidos, mas não perdeu contato com a cultura do Brasil.

Vinicius de Moraes começou a tornar-se conhecido a partir da peça “Orfeu da Conceição”, em 1956. A década de 1950 foi quando a sua carreira musical também começa a ser conhecida, quando conheceu Tom Jobim e suas composições foram gravadas por inúmeros artistas. O período áureo para o poeta ocorreu na década de 60, já que as parcerias com Baden Powell, Carlos Lyra e Francis Hime também firmaram-se, além das parcerias com Chico Buarque e João Gilberto. O parceiro Toquinho viria na década de 1970, quando já era consagrado e lançou álbuns e livros que alcançaram de grande sucesso.

A noite de 9 de julho de 1980, ao acertar detalhes com Toquinho sobre as canções do álbum “Arca de Noé”, Vinicius alegou cansaço e retirou-se para um banho. Durante a madrugada do dia seguinte o poeta foi encontrado pela empregada, na banheira de casa, com dificuldades para respirar. Toquinho e Gilda Mattoso (a última esposa do poeta) tentaram socorrê-lo, mas não houve tempo e Vinicius de Moraes morreu pela manhã, de isquemia cerebral.

A música

Sua produção musical é vasta. É considerado um dos precursores da bossa nova. Não há quem não conheça uma música do Poetinha. Entre suas músicas podemos citar a “Garota de Ipanema”, “Gente Humilde”, “Aquarela”, “A Casa”, “Arrastão”, “A Rosa de Hiroshima”, “Berimbau”, “A Tonga da Mironga do Kaburetê”, “Canto de Ossanha”, “Insensatez”, “Eu Sei Que Vou Te Amar” e “Chega de Saudade”.

O poeta foi premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com a composição da trilha sonora do filme “Orfeu Negro”. Em 1961, compõe “Rancho das Flores”, baseado no tema “Jesus, Alegria dos Homens”, de Johann Sebastian Bach. Também ganhou o Primeiro Festival Nacional de Música Popular Brasileira, com a música “Arrastão”, em parceira com Edu Lobo.

No entanto, a parceria com o músico Toquinho é considerada a mais produtiva, uma vez que rendeu músicas importantes como “Aquarela”, “A Casa”, “As Cores de Abril”, “Testamento”, “Maria Vai com as Outras”, “Morena Flor”, “A Rosa Desfolhada”, “Para Viver Um Grande Amor” e “Regra Três”.

Além disso, participou em shows e gravações com cantores e compositores importantes como Chico Buarque de Holanda, Elis Regina, Dorival Caymmi, Maria Creuza, Miúcha e Maria Bethânia. O Álbum Arca de Noé foi lançado em 1980 e teve vários intérpretes, cantando músicas de cunho infantil. Esse Álbum originou um especial para a televisão e agora está sendo relançado com as músicas regravadas por cantores como Zeca Pagodinho e Adriana Calcanhoto. O lançamento deste álbum é para comemorar os 100 anos do nascimento do poeta.

A literatura

Na literatura, sua produção poética passou por duas fases. A primeira é carregada de misticismo e profundamente cristã, como expressa em “O Caminho para a Distância” e em “Forma e Exegese”. A segunda fase tem como tema o cotidiano, e nela se ressalta a figura feminina e o amor, como em “Ariana, A Mulher”.

Além disso, a poética de Vinícius também inclina-se para os grandes temas sociais do seu tempo. O carro chefe é “A Rosa de Hiroshima”, em que ele faz uma referência à Segunda Guerra Mundial e ao bombardeio nuclear nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki que, no dia 6 de agosto de 1945, em uma demonstração de força nuclear estadunidense, a cidade de Hiroshima foi completamente destruída pela Little Boy, como era denominada a bomba nuclear:

A Rosa de Hiroshima

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.

A parábola “O Operário em Construção” alinha-se entre os maiores poemas de denúncia da literatura nacional, em que descreve o trabalho como base da vida humana; descrevendo o processo de tomada de consciência de um operário, partindo de uma situação de completa alienação: “tudo desconhecia / de sua grande missão”, sem saber “que a casa que ele fazia / sendo a sua liberdade/ era a sua escravidão”.

Entretanto, a poesia de Vinícius de Moraes é mais conhecia por seus sonetos. O diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor brasileiro encanta a todas as gerações com um tipo de poema, cuja forma (fixa) era pouco era cultivada em seu tempo.

Soneto de separação

Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot, a caminho da Inglaterra, setembro de 1938

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

O soneto de fidelidade é um dos mais conhecidos, teve sua versão musical e encanta os leitores:

Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

As rimas, o ritmo, a sonoridade, os processos figurativos estão marcados na poesia infantil do poeta. Não poderíamos deixar de mencioná-la. E, para terminar nossa conversar, saio correndo porque “passa o tempo, tic-tac”…

Relógio

Passa tempo, tic-tac Tic-tac, passa, hora
Chega logo tic-tac Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac Tic-tac
Tic-tac.

Leia mais, conheça mais em: http://www.viniciusdemoraes.com.br/site/

MORAIS, Vinicius (organização de Antonio Cicero e Eucanaã Ferrasz). Nova Antologia Poética.1a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

MORAIS, Vinicius (texto de José Castello). Livro de Letras. 1a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

CASTELLO, JOSÉ. Vinicius de Moraes: o poeta da paixão. 1a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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Amado Jorge: a literatura com cravo e canela

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Sônia Braga e Juliana Paes como Gabriela

Quem não se lembra de Gabriela (cravo e canela)? Seja interpretada por Sônia Braga ou Juliana Paes, a personagem é uma das mais conhecidas (e uma das morenas mais desejadas) da televisão brasileira. O cheiro de cravo e a cor da canela povoam o imaginário brasileiro desde que a personagem saiu das páginas do romance de Jorge Amado e começou a visitar as casas brasileiras por meio da televisão.

O romance Gabriela foi publicado 1958 e foi pela primeira vez para as telinhas em 1961, em uma produção da extinta TV Tupi. No entanto, em 1975, Sônia Braga marcaria para sempre seu nome na história da TV ao dar vida à personagem principal (com direito à inesquecível cena do telhado), na produção da TV Globo, assinada por Walter George Durst. A mais recente visita ao texto do escritor baiano foi exibida em 2012, com a adaptação de Walcyr Carrasco, em forma de macrossérie.
O criador de tão conhecida personagem é Jorge Amado, um dos mais célebres escritores da língua portuguesa!

Nesta semana em que comemoramos os 101 anos de seu nascimento, Jorge Amado é relembrado por sua importância no cenário literário brasileiro, no cenário cultural baiano, no cenário linguístico da língua portuguesa, uma vez que o reconhecimento sobre a importância do conjunto sua obra continua crescendo no Brasil e no exterior.

Jorge Amado retratou da melhor maneira possível as diversidades culturais do Brasil, voltando seu olhar especialmente para o Nordeste brasileiro em um momento em que o país estava começando e visualizar as dificuldades por que passavam aquela região. Suas obras já foram publicadas em 49 línguas e 55 países.

Sua produção está permeada por elementos de sua vivência e de sua participação no cenário político, cultural, social brasileiro. O escritor nasceu em 10 de agosto de 1912, município de Itabuna, sul do Estado da Bahia. Filho de fazendeiro de cacau, passou sua infância em Ilhéus, onde fez os estudos secundários. Neste momento inicia seu trabalho em jornais e começa a participar da vida literária.

O primeiro romance, O país do carnaval, foi publicado em 1931. Em 1933, casou-se com Matilde Garcia Rosa, com quem teve uma filha, Lila, e publicou seu segundo romance, Cacau. Formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935 e, militante comunista, foi obrigado a exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942, período em que fez longa viagem pela América Latina. Ao voltar, em 1944, separou-se de Matilde Garcia Rosa.

Em 1945, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi eleito o deputado federal mais votado do Estado de São Paulo. Jorge Amado foi o autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à liberdade de culto religioso.

Jorge Amado e Zélia Gattai

Nesse mesmo ano, casou-se com Zélia Gattai e em 1947, ano do nascimento de João Jorge, primeiro filho do casal, o PCB foi declarado ilegal e seus membros perseguidos e presos. O escritor, novamente, teve que se exilar com a família, agora na França, onde ficou até 1950, quando foi expulso. Neste período, em 1949, morreu no Rio de Janeiro sua filha Lila. Entre 1950 e 1952, viveu em Praga, onde nasceu sua filha Paloma.

Quando retornou ao Brasil, em 1955, Jorge Amado afastou-se da militância política e dedicou-se inteiramente à literatura. Foi eleito, em 6 de abril de 1961, para a cadeira de número 23, da Academia Brasileira de Letras, que tem por patrono José de Alencar e por primeiro ocupante Machado de Assis.
Jorge Amado morreu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001. Foi cremado conforme seu desejo, e suas cinzas foram enterradas no jardim de sua residência na Rua Alagoinhas, no dia em que completaria 89 anos.

A obra de Jorge Amado recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, entre os quais destacam-se: Stalin da Paz (União Soviética, 1951), Latinidade (França, 1971), Nonino (Itália, 1982), Dimitrov (Bulgária, 1989), Pablo Neruda (Rússia, 1989), Etruria de Literatura (Itália, 1989), Cino Del Duca (França, 1990), Mediterrâneo (Itália, 1990), Vitaliano Brancatti (Itália, 1995), Luis de Camões (Brasil, Portugal, 1995), Jabuti (Brasil, 1959, 1995) e Ministério da Cultura (Brasil, 1997).

O escritor recebeu títulos de Comendador e de Grande Oficial, nas ordens da Venezuela, França, Espanha, Portugal, Chile e Argentina. Também recebeu o título de Doutor Honoris Causa em 10 universidades, no Brasil, na Itália, na França, em Portugal e em Israel. O título de Doutor pela Sorbonne, na França, foi o último que recebeu pessoalmente, em 1998, em sua última viagem a Paris, quando já estava doente.

Jorge Amado era simpatizante do candomblé, religião na qual exercia o posto de honra de Obá de Xangô no Ilê Opó Afonjá, do qual muito se orgulhava. Tinha muitos amigos no candomblé, como as mães de santo Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Stella de Oxóssi, Olga de Alaketu, Mãe Mirinha do Portão, Mãe Cleusa Millet, Mãe Carmem e o pai de santo Luís da Muriçoca.

A literatura de Jorge Amado foi, inúmeras vezes, adaptada para cinema, teatro e televisão. Também foi tema de escolas de samba em várias partes do Brasil. Seus livros foram traduzidos para 49 idiomas, existindo também exemplares em braile e em formato de audiolivro. Somente na TV aberta foram onze adaptações das obras de Jorge Amado. Novelas e minisséries deram rostos, trejeitos e vozes aos típicos personagens do escritor, colaborando para a difusão de sua obra. O escritor sempre declarou que, apesar de liberar suas obras para a adaptação na TV, preferia não assistir ao resultado.

Betty Faria e Joana Fomm em Tieta

Além da morena brejeira com cor de cravo e cheiro de canela, que mexia com a imaginação dos homens da cidade de Ilhéus, outras personagens ficaram conhecidas. Tieta, a famosa personagem de Tieta do Agreste, em 1989, ganhou popularidade quando Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares adaptaram o romance para exibição na Globo. Tereza Batista, na minissérie estrelada por Patrícia França, foi assinada por Vicente Sesso em 1992. A sensual professora de culinária Dona Flor, interpretada por Giulia Gam em 1998, trouxe a divertida história de uma mulher entre os maridos Vadinho e Teodoro.

O cinema também rendeu-se à literatura amadiana: Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), Tenda dos Milagres (1977), Gabriela (1983), Jubiabá (1983), Tieta do Agreste (1996), Pastores da Noite (2003), Quincas Berro D’Água (2010) e Capitães de Areia (2011).

Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendona em Dona Flor e Seus Dois Maridos

Jorge Amado soube como revelar a beleza e as características do povo, da cultura, da sensualidade da Bahia como nenhum outro escritor conseguiu. A partir dele, todo o país pode conhecer mais o jeito agreste de Ilhéus e Itabuna, o sofrimento nos campos de cultivo de cacau, as ruas, as cores e o sabor de Salvador.

Jorge Amado e José Saramago

Teve amigos em diversas esferas da sociedade. Correspondeu-se com os brasileiros Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato e Gilberto Freyre, entre outros; Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e José Saramago, entre tantos outros estrangeiros. No campo da política, a correspondência se estabeleceu com nomes os mais variados como: Juscelino Kubitschek, François Mitterrand e Antônio Carlos Magalhães.

Um acervo com mais de cem mil páginas em fase de catalogação está na Fundação Casa de Jorge Amado, uma organização não-governamental e sem fins lucrativos que ocupa o casarão que fica de frente para o Largo do Pelourinho, em Salvador. É uma instituição cultural com várias atividades e um núcleo de pesquisas, com documentação sobre o próprio Jorge Amado, Zélia Gattai e a literatura baiana, aberta à visitação e dando destaque a cursos, seminários, oficinas, ciclos de conferências, palestras, lançamentos de livros e discos, exposições, com enfoque nos temas literários, artísticos e das ciências humanas.

A pedido do escritor, o símbolo da Fundação é Exu, um dos mais poderosos orixás da liturgia do candomblé:

Quem guarda os caminhos da cidade do Salvador da Bahia é Exu, orixá dos mais importantes na liturgia dos candomblés, orixá do movimento, por muitos confundido com o diabo no sincretismo com a religião católica, pois ele é malicioso e arreliento, não sabe estar quieto, gosta de confusão e de aperreio. Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia-luz da aurora ou do crepúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite, Exu guarda sua cidade bem-amada. Ai de quem aqui desembarcar com malévolas intenções, com o coração de ódio ou de inveja, ou para aqui se dirigir tangido pela violência ou pelo azedume: o povo dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca seus caminhos ao falso e ao perverso. (AMADO, 2002).

Escolhido o símbolo, seu grande amigo e membro fundador da instituição, Carybé, tratou de personificá-lo através de um desenho para identificar a Fundação e conferir personalidade e reconhecimento às ações da instituição.

Referências:

AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 42 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

FUNDAÇÃO CASA DE JORGE AMADO. Salvador: Casa de Palavras, 2008. ISBN: 978-85-7278-108-4.

FUNDAÇÃO CASA DE JORGE AMADO: catálogo do acervo de documentos / Myriam Fraga, apresentação. Salvador: Casa de Palavras, 2009. ISBN: 978-85-7278-121-3.

FUNDAÇÃO CASA DE JORGE AMADO. Zélia Gattai. Salvador: Casa de Palavras, 2008. ISBN: 978-85-7278-106-0.

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Luiz Fernando Carvalho: “o público não é burro”

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Foto: Divulgação / Canal Brasil

Cineasta e diretor de televisão, Luiz Fernando Carvalho de Almeida (Rio de Janeiro, 28 de julho de 1960) estudou Arquitetura e Letras. Aos 18 anos, fez seus primeiros trabalhos em cinema, ainda como estagiário para, pouco depois, começar a trabalhar no núcleo Usina de Teledramaturgia da Rede Globo, onde conheceu o diretor de fotografia Walter Carvalho com quem realizou diversos trabalhos. Nesse núcleo, foi diretor assistente das minisséries O Tempo e o Vento (1985) e Grande Sertão: Veredas (1985).

Durante seu trabalho na Rede Globo, pôde conviver com muitos diretores, com os quais teve conhecimento teórico e prático. Com eles aprendeu o enquadramento de câmera e produção até a direção de grandes atores. Segundo Carvalho (2002, p. 18),

[…] Avancini foi uma figura importante também na minha formação prática, porque veio nesse momento em que eu buscava fazer essa transfusão entre cinema e televisão, o que eu poderia receber como um ensinamento de uma linguagem e de outra, sem ser preconceituoso: Ah, televisão é ruim, cinema é bom… Eu não acredito nisso. No caso específico da dramaturgia, eu percebo que existem coisas boas tanto num veículo quanto no outro, e coisas ruins tanto num como no outro […].

Durante esta época, Carvalho abandonou definitivamente a faculdade de Arquitetura e foi cursar Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), pois acreditava que essa escolha podia ajudá-lo no seu percurso.

Em 1986, escreveu e dirigiu o curta-metragem A Espera, baseado no livro Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes. Esse filme recebeu os prêmios de Melhor Filme, melhor atriz (Marieta Severo) e melhor fotografia (Walter Carvalho) no Festival de Gramado, melhor curta metragem (Concha de Oro) no Festival de San Sebastian, Espanha e o Prêmio Especial do Júri no Festival de Ste Therèse, Canadá.

Seguindo uma tendência de levar obras literárias às telas, dirige, em 1987, ao lado de Denise Saraceni, a telenovela Helena, na Rede Manchete, adaptação assinada por Mário Prata, Dagomir Marquezi e Reinaldo Moraes. Também dirigiu a telenovela Carmen (1987), Vida Nova(1988), e esteve na equipe de direção da telenovela Tieta (1989). Depois disso, teve uma fase produtiva na televisão em que trabalhou na equipe da minissérie Riacho Doce (1990), das novelas Pedra sobre Pedra (1992), Renascer (1993) e O Rei do Gado (1996) e os especiaisOs Homens Querem paz (1991), Uma Mulher Vestida de Sol (1994) e A Farsa da Boa Preguiça (1995).

Cena de O Rei do Gado

Com Lavoura Arcaica (2001), baseado no romance homônimo de Raduan Nassar publicado em 1975, recebeu muitos prêmios no Brasil e no exterior. A exploração do texto é, segundo Carvalho, parte para a construção imagética, a começar pela equipe de produção, com o auxílio de especialistas sobre a obra em construção. A minissérie Os Maias (2001) foi construída a partir de tais cuidados: a pesquisa sobre a obra de Eça de Queirós, a discussão com especialistas na obra, a viagem aos lugares descritos na obra literária. Nessa minissérie, houve uma atenção especial para a composição dos cenários que começou desde a limpeza dos monumentos e reformas na casa do “Ramalhete” e a preparação do figurino da minissérie seguiu a mesma linha do processo de criação.

Cena de Lavoura Arcaica

Ainda na televisão, na área da transposição de textos literários para o audiovisual, vale destacar a microssérie Hoje é Dia de Maria (primeira e segunda jornadas), de 2005. De acordo com o sítio da emissora, estas minisséries apresentaram-se como inovadoras, já que, para compor a história da menina Maria, os realizadores buscaram elementos folclóricos e míticos presentes em contos populares compilados por Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Sílvio Romero. E mais: a história é repleta de metáforas e simbolismo, com linguagem, estrutura narrativa e estética baseada nos sonhos. Neste caso, Luiz Fernando Carvalho assinou a direção e também o roteiro, sendo também muito premiado.

Foto: Divulgação da minicrossérie Hoje é Dia de Maria

Em 2005, surge a primeira realização do projeto Quadrante: Pedra do Reino. A minissérie foi filmada em 16 mm e finalizada em alta definição, o roteiro foi assinado por Braulio Tavares, Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho, que também foi o responsável pela direção da trama. O projeto Quadrante foi idealizado para mostrar a diversidade cultural do país, a partir da adaptação de obras literárias nacionais filmadas na região onde se passa a história original, com a participação de elenco e mão-de-obra locais. O projeto visa a descentralizar o processo artístico e de produção, além de ajudar na formação de novos profissionais, criando um viés educacional. A Pedra do Reino teve como cenário a cidade de Taperoá, no sertão da Paraíba.

O Quadrante foi o primeiro projeto de teledramaturgia da TV Globo trabalhado em multiplataforma, com conteúdos complementares exibidos em diferentes mídias. O canal GNT realizou um documentário sobre a vida e a obra de Ariano Suassuna. O Multishow exibiu uma edição especial do Revista Bastidor, mostrando o processo de criação, entrevistas e o dia-a-dia das filmagens. E o Sistema Globo de Rádio transmitiu entrevistas com os atores da minissérie e artistas ligados ao Movimento Armorial.

A segunda produção do projeto Quadrante foi Capitu. O roteiro foi assinado por Euclydes Marinho, mas o texto final e a direção por Luiz Fernando Carvalho. Ao inserir elementos modernos como os aparelhos de mp3 usados pelos dançarinos para ouvir a valsa na cena do baile, assumir a tatuagem no braço da protagonista Letícia Persiles (Capitu jovem) e adotar músicas clássicas, samba, rock e músicas de bandas internacionais e nacionais, a direção quis reforçar o caráter atemporal e universal da obra de Machado de Assis, reafirmando sua modernidade. Também foi uma tentativa de investir no público jovem, desfazendo o preconceito que muitos têm sobre o escritor. Temas como modernidade, costumes, feminilidade, maternidade, amor, ciúme, homoafetividade, crueldade, ambiguidade e dúvida foram discutidos pelos seguintes profissionais: o pesquisador e escritor Antônio Edmilson Martins Rodrigues; os psicanalistas Carlos Byington, Luiz Alberto Pinheiro de Freitas e Maria Rita Kehl; o jornalista e escritor Daniel Piza; e os ensaístas Gustavo Bernardo e Sergio Paulo Rouanet.

Cena de Capitu

Em 2010, Luiz Fernando Carvalho dirigiu a microssérie Afinal, o Que Querem as Mulheres? escrita por João Paulo Cuenca com a coautoria de Cecília Giannetti e Michel Melamed. Melamed é ainda responsável por interpretar o protagonista, André Newmann, um estudante de psicologia que pesquisa qual seria a resposta para a fundamental pergunta nunca respondida por Sigmund Freud: “Afinal, o que querem as mulheres?”, assunto de sua tese de doutorado.

O último trabalho de Luiz Fernando Carvalho exibido na televisão foi a microssérie Subúrbia (2012), produzida e exibida pela Rede Globo. A série foi escrita por Luiz Fernando Carvalho e Paulo Lins, com direção-geral de Carvalho.

O percurso trilhado por Luiz Fernando Carvalho na direção de suas obras revela uma atenção dispensada às obras literárias. Ele pertence a um momento em que surge uma geração de diretores ligada nas possibilidades expressivas do meio. Essa geração está voltada para o aprimoramento da linguagem televisiva, especialmente da teledramaturgia, trazendo a possibilidade da impressão de marcas de autoria na direção, efetivando a “TV de autor”.

O diretor explica o que entende por televisão no trecho retirado de uma entrevista concedida àFolha de São Paulo, na época em que estava sofrendo fortes críticas com relação ao suposto hermetismo de A Pedra do Reino. 

[…] Pertenço ao grupo daqueles que acreditam que o público não é burro, mas doutrinado debaixo de um cabresto de linguagem. Luto contra isso. Sabendo da dimensão que a televisão alcança no Brasil, tratá-la apenas como diversão me parece bastante contestável. Precisamos de diversão, mas também precisamos nos orientar e entender o mundo […] (www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1006200712.htm)

Carvalho surge como referência ou inspiração para os profissionais audiovisuais que estão à procura de uma nova forma de se fazer TV.

Foto: Divulgação/http://tvg.globo.com/programas/capitu/capitu/platb/2008/11/26/com-a-palavra-o-diretor/

Há, portanto, certa semelhança, ao menos no nível de discurso, entre os interesses da emissora e do diretor Luiz Fernando Carvalho: suas obras são, geralmente, influenciadas pelos grandes textos da literatura ou são adaptações destes. A alta qualidade estética e audiovisual de seus produtos convém, evidentemente, à emissora, que também é beneficiada pelo marketing, premiações nacionais e internacionais, parceria e lançamento de produtos em outras mídias.

Referências:

CARVALHO, Luiz Fernando. Sobre o filme Lavoura arcaica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

____. Capitu: minissérie. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

 

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A vida é um pisca-pisca

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Poetas, escritores, filósofos e, sobretudo, religiosos, têm seu conselho em face da morte. Todos nós temos nossa opinião para alguém num momento de enfrentamento de morte. Mas e como nós enfrentamos a vida diante de um caso próximo de morte? Fiquei pensando muito sobre isso nesses dias… E fiquei pensando muito sobre o que estou fazendo da minha vida.

O poeta Mário Quintana já nos ensinou que não há como falar em morte, em vida, sem falar em tempo. É ele, o tempo, o senhor de todos os nossos destinos, é o tempo que escorre entre nossos dedos e nos leva embora a vida, o nosso dever de casa, no poema “O Tempo”:

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

(Mario Quintana)

E quando se vê, já se está partindo, já se está deixando amigos, amores, familiares, já se está deixando filmes sem ser vistos, livros não lidos, gostos não provados. É o tempo, que na mitologia, seus filhos engole sempre. Todos lembram-se de Cronos (que a teus filhos engolia)… E as Parcas? Conhecidas como as Moiras (na Grécia), são três deusas – Nona (Cloto), Décima (Láquesis) e Morta (Átropos) – que determinam o curso da vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem Júpiter (Zeus) pode contestar suas decisões. Nona tece o fio da vida, Décima cuida de sua extensão e caminho, Morta corta o fio. São também designadas fates, daí o termo fatalidade.

É o tempo que, no romance Os Maias (e nas nossas vidas!), desgasta Alencar, engorda Carlos, encalvece João da Ega, torna grisalho o Taveira, e faz o Craft “avelhado” e doente do fígado. Enfim, desgasta, engorda, encalvece, dissipa, se esvai.

Neste romance, é o tempo também que modifica a atitude das personagens, que traz consigo a recordação de um espaço carregado de objetos que são vestígios dum mundo agora estranho, abandonado, misturado, coberto de pó, com estragos e em meio a sombras, que traduz a destruição de todos os sentimentos, a morte total advinda do tempo. Morte manifesta também na ferrugem verde que cobre a estátua de Vênus, no Jardim, e o pó no retrato de Pedro da Maia. Com isso, um ciclo está fechado, tudo acabou de vez. Ou, nas palavras de Carlos: “Um efeito de conclusão, de absoluto remate”.

O poeta “Boca do Inferno”, Gregório de Matos, também traz uma reflexão sobre a brevidade da vida no soneto a seguir:

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

(Gregório de Matos)

Cada tempo tem sua ideia sobre o passar da vida, sobre o chegar da morte. Da Idade Média à contemporaneidade, passando pelo Renascimento e, principalmente pelo Romantismo, a morte está na agenda das discussões.

E volto à reflexão primeira sobre o que faço do meu dever de casa, da vida, breve, que tenho só minha… bem, sigo piscando, tecendo meu rosário de piscadas, como nos ensina Lobato, por meio de Emília, nas suas memórias:

(Emília) –  A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais […] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre?, perguntou o Visconde. – Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?

 

 

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Alberto Caeiro: o Mestre de Fernando Pessoa

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Alberto Caeiro da Silva nasceu em 16 de abril 1889, em Lisboa, e morreu tuberculoso em 1915, na mesma cidade. Era órfão de pai e viveu no campo com uma tia. Não teve instrução além da primária. Por essa razão, escrevia mal o português.

Esses traços biográficos harmonizam-se perfeitamente com a poesia de Caeiro: poeta que está em contato direto com a natureza, sua lógica não é diferente da lógica da ordem natural.

Para Caeiro, as coisas são como são. Seu mundo, portanto, é o mundo do real-sensível ou real-objetivo: tudo aquilo que existe e que percebemos pelos sentidos. Pretendendo ser objetivo, Caeiro ansiava por registrar as sensações sem a mediação da racionalidade (leia-se: pensamento).

Segundo Álvaro de Campos, Alberto Caeiro é um mestre que “pensa” com os sentidos. Mas isso não implica ausência de reflexão na postura de Caeiro; apenas uma forma diferente de pensar. Noutras palavras: ao defender a supressão do pensamento na relação do homem com a natureza, apelando para a supremacia dos sentidos, esse poeta constrói uma poesia filosófica, resultado do esforço de convencer o leitor de que a relação com a natureza deve ser uma relação natural, sem a mediação do pensamento.

 

 

Quando o “eu-poético” diz: “Sou um guardador de rebanhos./O rebanho é os meus pensamentos”, ele está, simplesmente, sinalizando que sua relação com o mundo independe do pensamento (seu rebanho) e, por isso, esse rebanho deve ser guardado (entenda-se: não deve permear o contato com o mundo). Quando refere que pensa “[…] com os olhos e com os ouvidos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca.”, está defendendo a hegemonia dos sentidos na relação homem/mundo.

É nessa perspectiva que é construído o poema XX de O Guardador de Rebanhos:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entre no mar em Portugal.
Toda a gente sabe disso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E por onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.

Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

 

 

Nesse poema há uma tensão marcada pela dicotomia entre o rio Tejo e o “rio da minha aldeia”: pensar no Tejo (vê-lo) é representar momentos grandiosos da história da nação portuguesa (leia-se: as grandes navegações e as conquistas ultramarinas); pensar no “rio da minha aldeia” é estar só ao pé dele (leia-se: percebê-lo, compreendê-lo e fruí-lo pelos sentidos).

Ao construir sua poesia “filosófica”, Alberto Caeiro parece estar se referindo a um momento da evolução humana em que ainda não havia ocorrido a cisão homem/natureza. Ele deseja, portanto, o retorno à Natureza, criticando as posturas que possam distanciá-lo dela. De acordo com Gomes (1987, p. 26),

Caeiro empreende a viagem da conquista da Natureza. E o meio de que se serve é a poesia, restituída à sua missão essencial, qual seja, a de fundir o homem ao mundo. E essa fusão se dá no instante em que ele, ao nomear, nos revela a Natureza virginal, ainda não tocada pela consciência que deforma as coisas. A poesia realiza-se como espaço sagrado que reinstaura o mundo diante de nossos olhos, através da palavra depurada e reduzida ao essencial.

Espécie de poeta-filosófico, Alberto Caeiro extrai seus pensamentos do contato direto com as coisas e com a natureza, não dos livros e da civilização. Defende a simplicidade da vida e a sensação, único meio válido, segundo ele, para obtenção do conhecimento. Veja o fragmento do poema II de O Guardador de Rebanhos:

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Eu sei dar por isso muito bem…
[…]
Creio no mundo como num malmequer.
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

E não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

O objeto dos estudos literários, conforme você sabe, é o texto literário. Os conhecimentos sobre literatura (biografia, contexto sócio-histórico, tendências estéticas) são refletores que iluminam a leitura dos textos literários. Isso é consenso entre os estudiosos da área. Sabendo disso, vamos ampliar nosso espectro de leitura de poemas? Então, a partir de agora, para cada heterônimo, apresentaremos um poema no final do item: de Alberto Caeiro, leia a seguir o poema V de O Guardador de Rebanhos:

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei.  Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas?  Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica?  Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do Universo”…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo

     E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

 

 

Para Caeiro, as coisas são como são. Seu mundo é o mundo do real-sensível ou real-objetivo: tudo aquilo que existe e que percebemos pelos sentidos. Pretendendo ser objetivo, Caeiro ansiava por registrar as sensações sem a mediação da racionalidade: é um mestre que “pensa” com os sentidos. Quando o “eu-poético” diz: “Sou um guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos”, ele está, simplesmente, sinalizando que sua relação com o mundo independe do pensamento (seu rebanho) e, por isso, esse rebanho deve ser guardado (leia-se: não deve permear o contato com o mundo). Quando refere que pensa “[…] com os olhos e com os ouvidos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca.”, está defendendo a hegemonia dos sentidos na relação homem/mundo. Veja:

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

O paganismo está mais presente no poema VIII-Num Meio-Dia de Fim de Primavera de O Guardador de Rebanhos, que você poderá ler integralmente em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/alberrr.html>
Para deixar você curioso, citarei apenas um fragmento:

[…]
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele [o Menino Jesus] foi à caixa dos milagres e roubou três. […]

Livros

Boa leitura e, como diria Ricardo Reis, carpe diem!

 

Referências:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___. Poesia: Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

___. O Guardador de Rebanhos e outros poemas. Seleção e introdução de Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1993.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Ricardo Reis: a face clássica de Fernando Pessoa

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Ricardo Reis nasceu, na cidade do Porto, em 19 de setembro de 1887, estudou em colégio jesuíta e formou-se em Medicina. Do ponto de vista político, era defensor da Monarquia e não concordava com a República. Por isso, autoexilou-se no Brasil. A cultura clássica, o latim, o grego e a mitologia eram suas grandes paixões. Isso explica não apenas as inquietações que marcam sua poesia, mas também os traços horacianos (leia-se: clássicos) que nela sinalizam a preocupação constante de fruir o momento (carpe diem horaciano): a vida nada mais é que momentos breves, instantes volúveis. Gozar o momento significa estar atento a tudo que a vida oferece. Mas o viver deve ser sereno, sem sobressaltos e sem excessos: com o mínimo de dor e gozo possível:

[…]
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece. […]

Noutra oportunidade, temos:

[…]
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
        Translúcidos como água
        Em taças detalhadas,

Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
        E as rápidas carícias
        Dos instantes volúveis. […]

As preocupações de Ricardo Reis gravitavam em torno de um problema crucial: remediar o sentimento da fraqueza humana e da inutilidade de agir, por meio de uma arte de viver, que leve à morte sem remorsos ou ressentimentos.

A poesia de Reis é marcada, também, pelo paganismo, evidenciado, no fragmento a seguir, pela presença do politeísmo:

[…]
Não matou os outros deuses
O triste deus cristão.
Cristo é um deus a mais,
Talvez um que faltava.
[…]

 

Acima dos humanos e dos deuses, esse poeta neoclássico identifica uma força maior, uma entidade implacável e que todos nós obedecemos: o Fado (leia-se: o Destino). Essa percepção fica clara quando o “eu-poético” afirma: “Como acima dos deuses o Destino/é calmo e inexorável.”

Ricardo Reis, a faceta clássica da obra de Fernando Pessoa, é, como seu mestre Caeiro, indiferente à vida social: valoriza a vida campestre e a simplicidade das coisas. Mas, diferentemente do mestre, que se sente feliz integrado à natureza, sente-se fruto de uma civilização cristã decadente, que dá largos passos rumo à destruição.

A consciência da passagem do tempo e a inevitabilidade da morte são dois momentos relevantes da poesia de Reis. De acordo com ele, em face dessas duas circunstâncias, nada se pode fazer: o destino de cada um de nós já vem traçado pelo Fado:

[…]
Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa

Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
        Fenece, e vai com ele
        Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
        Nem distingue a memória
        Do que vi do que fui.

A cada qual, com a statura, é dada
A justiça: uns faz altos
O fado, outros felizes.
Nada é prêmio: sucede o que acontece.
Nada, Lídia, devemos
Ao fado, senão tê-lo. […]

Mas enquanto a morte, imposição do Fado que nos faz impotentes, não chega, o que o “eu-poético” sugere que façamos?  Sugere que aproveitemos os prazeres que a vida oferece, mas com parcimônia:

[…]
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
        Ouvindo correr o rio e vendo-o. […]

Por que Ricardo Reis, ao defender a fruição dos prazeres da vida, aconselha a moderação? Trata-se de uma atitude tipicamente epicurista: segundo as teorias do filósofo grego Epicuro, o homem deve buscar uma vida de prazeres naturais e equilíbrio, mas sem paixões violentas. É por isso que Reis desconfia da felicidade extrema, buscando sempre evitá-la ou controlá-la pela razão.

Para Abdala Júnior; Paschoalin (1990), o rigor formal da poesia de Ricardo Reis resulta da ânsia de harmonia e equilíbrio na arte poética, que deveria realizar um poema que, do ponto de vista formal, fosse tão gracioso quanto o pensamento do qual nasce:

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis é considerado neoclássico. Várias razões fundamentam essa afirmativa: seu espírito grave e estilo elevado; sua busca de perfeição e equilíbrio; seu intelectualismo e convencionalismo; sua frieza quando trata das relações amorosas. A essas razões, soma-se a presença da mitologia pagã.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

A efemeridade da glória e da fortuna está marcada nesse poema, pois o poeta pede para ser coroado de rosas e de folhas breves. A beleza da rosa é efêmera e as folhas breves remetem-nos à Antiguidade Clássica, quando os poetas recebiam uma coroa de louros.

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas –
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

 

As rosas apagar-se-ão tão cedo quanto a fronte que a carrega. Tudo é fugaz, como o passar do rio. Você já pensou nisso? Pense para mais tarde nos encontrarmos em Alberto Caeiro.

Referências:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___. Poesia: Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Álvaro de Campos: o “eu” futurista de Fernando Pessoa

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A obra de Fernando Pessoa é construída por duas partes distintas e complementares: a ortônima, assinada pelo próprio Fernando Pessoa (Fernando Pessoa “Ele Mesmo”) e a heterônima, máscaras por meio das quais ele realiza a parte considerada mais instigante de sua obra.

Em primeiro lugar, cumpre que se diferencie heterônimo de pseudônimo: o primeiro é constituído de máscaras ou personalidades, com biografia, cultura, filosofia e olhares diferenciados sobre o homem e a vida. É justamente por causa da heteronímia que a obra de Fernando Pessoa é plural.

O pseudônimo, como o próprio prefixo pseudo sugere, é um falso nome, dado a determinada pessoa. A biografia, a cultura, a filosofia e o olhar diferenciado sobre o homem e a vida são da pessoa que recebe o pseudônimo, o que significa dizer que ele, o pseudônimo, não cria personalidades, apenas nomeia uma que já existe.

Cada um dos heterônimos criados por Pessoa é um poeta diferente dos outros, por isso precisamos nos reportar ao conceito de realidade como complexidade: se a realidade é complexa, compreendê-la exige um determinado esforço e uma multiplicidade de olhares, uma vez que nenhum olhar consegue abarcá-la em sua totalidade. Partindo desse princípio, Fernando Pessoa cria arquétipos, sintetização de diferentes perfis espirituais sob uma única personalidade, com o objetivo de observar, analisar e tentar compreender a realidade. Nascem daí os heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1890, em Tavira, extremo sul de Portugal. Era engenheiro naval formado na Escócia, mas viveu na ociosidade, mais por não sujeitar-se à rotina de um emprego do que por falta de oportunidades para consegui-lo: bater ponto, ficar confinado no escritório, debruçar-se sobre uma prancheta e manipular instrumentos de cálculo eram atividades que não o entusiasmavam.

Poeta futurista, homem do século XX, das fábricas, da energia elétrica, das máquinas, da velocidade, Álvaro de Campos é um inadaptado, vive à margem de qualquer conduta social. Por isso, é considerado o poeta do “não”. Isso, no entanto, não implica que fosse só emoção, sistema nervoso, febre. Álvaro de Campos é, sobretudo, lucidez, razão. Falando de si mesmo, esse poeta futurista revela:

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com o coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

A marginalização social e a defesa intransigente da lucidez são os dois principais aspectos explorados nesse poema, o que justifica a inadaptação em que vive o poeta e sua perspectiva existencial, orientada não pelo coração, mas pela razão, uma vez que ele insiste que é lúcido.

 

 

Álvaro de Campos é um poeta inquieto. Sua trajetória vai de uma fase decadentista (início de sua carreira), passa por aventuras futuristas (influência do poeta americano Walt Whitman) e chega a uma poesia intimista, com marcas profundas de angústia e melancolia. Na base de todos esses momentos está o sensacionismo, a noção de que a vida é sensação e de que a única realidade em arte é a consciência dessa sensação, uma vez que toda arte fundamenta-se nela (na sensação). Isso fica mais ou menos revelado no trecho a seguir do poema Passagem das Horas:

[…]
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo, longínquo.
[…]

O momento decadentista da poesia de Álvaro de Campos revela, como é da natureza do Decadentismo, a sensação que o “eu-poético” tem da decadência do mundo, não de sua própria decadência: ele reage em face das vicissitudes que marcam o momento de sua existência, numa atitude subjetivista, que pode ser detectada neste fragmento do poema Opiário:

[…]
É antes do ópio que a minha alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
[…]

Apesar de trazer saudade dos tempos de menino, Álvaro de Campos é um homem voltado para o presente, é um poeta da modernidade que canta, em grandes odes, a era contemporânea, num tom exaltado, elétrico e permeado pela emoção e numa fala destravada e coloquial. O verso eleito por ele é o verso livre, constituído por meio de uma fala que se derrama, sem disciplina aparente, marca registrada do heterônimo mais afinado com o Futurismo.

O verso de Campos expressa uma energia explosiva que procura transmitir o espírito do mundo moderno: um mundo de máquinas, multidões e velocidade, que fazem da poesia desse heterônimo uma manifestação febril, plena de gritos que exclamam e interrogam. No fragmento do poema Ode Triunfal, construído a partir das sensações da vida urbana e industrial, você perceberá esses traços característicos do engenheiro de Glasgow:

[…]
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis, à hora do jantar
Eia aparelhos de todas as espécies, ferros, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triunfar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!
[…]

 

 

A poesia intimista de Álvaro de Campos, como o próprio título sugere, revela as angústias particulares do “eu-poético”, decorrentes de seu desajuste ao mundo das conquistas técnicas, utilitário e, as mais das vezes, insensível aos valores humanos mais substantivos. O poema a seguir trata do inconformismo do “eu-poético”, em face do ridículo das aparências, tão natural ao mundo capitalista:

 

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tanta vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

A heteronímia de Fernando Pessoa resulta da fragmentação do eu, num mundo marcado pelos avanços tecnológicos e pelas consequentes especializações.

Mas não podemos nos esquecer de um fato: a obra de Fernando Pessoa (ortônima e heterônima) traz a marca da diversidade sem excluir a unidade, como podemos ver no poema seguinte.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

 

 

O poema Lisbon Revisited (1923) traz a irritação do poeta consigo mesmo e com os outros, o ceticismo e a angústia.

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada. 

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
[…]

No poema em questão, a irritação consigo mesmo e com o mundo pode ser encontrada desde os primeiros versos: “NÃO: Não quero nada./Já disse que não quero nada./Não me venham com conclusões!/A única conclusão é morrer.”.

Já o ceticismo é visto em “Não me tragam estéticas!/Não me falem em moral!/Tirem-me daqui a metafísica!/Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas/Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — /Das ciências, das artes, da civilização moderna!/ Que mal fiz eu aos deuses todos?/Se têm a verdade, guardem-na!”.

De acordo com Saraiva e Lopes (2001, p.1000), “o espírito reflexivo de Pessoa, acaba, em certos momentos, por desvalorizar a sua própria razão humana”. Um exemplo do que ocorre no poema Tabacaria. Neste poema, o eu-lírico vê a realidade que o circunda e reflete sobre ela.

O eu-lírico olha, da janela de seu quarto, uma tabacaria. Uma tabacaria qualquer, de qualquer cidade em que se podem ser observados carros, pessoas, animais.

A partir daí, reflete sobre a existência, sobre sua existência, a aparente banalidade da cena da tabacaria sendo vista pelo eu-lírico é cenário para reflexões filosóficas que são iniciadas pela negação:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

[…]

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

[…]

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
[…]

 

A presença de contrastes entre sensações e pensamentos, do binômio vida-conquista vivida e vida-conquista pensada (sonhada), ser e não ser, realidade e sonho, o eu e as coisas, dúvida e certeza, negações e afirmações, consciência e inconsciência, racionalidade e irracionalidade. Além disso, há muitos paradoxos, o que demonstra que a verdade das coisas está longe de ser estanque. Há também experiências abundantes e sensações marcantes: o eu poético viveu, amou, estudou e até creu, sonha e sonhou todos os sonhos e conquistou o mundo, ainda que deitado numa cama, mas as suas conquistas passadas foram máscaras que ele vestiu e hoje lhe parecem destituídas de sentido. No momento presente ele vivencia a realidade de uma sensação absoluta do fracasso de sua vida e da inutilidade das coisas, desconfiado e desesperançado de qualquer futuro pessoal ou nacional; contrapõe a realidade das coisas banais com a metafísica (NEGREIROS, 2010). A consciência pode ser entendida como sensação: a sensação de estar existindo. E, com isso, “uma terrível estranheza de existir, um acordar para a misteriosa importância de existir, que preludia o existencialismo de meados do século” (SARAIVA & LOPES 2001, p. 1000).

Você encontrará muitos poemas de Fernando Pessoa (poesia ortônima e heterônima) em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.html>

Nosso próximo caminho será pela mão de Ricardo Reis, o clássico.

 

Fontes Bibliográficas:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

LOPES, Óscar; SARAIVA, A. J. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto, 2001.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

NEGREIROS, Carlos Augusto de. Entre a realidade e o sonho: uma leitura de “Tabacaria” de Fernando Pessoa e sua relação com o Eclesiastes. In: Revista Crioula. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/08/Artigos%20e%20Ensaios%20-%20Carlos%20Augusto%20de%20Negreiros.pdf

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Tudo vale a pena em Fernando Pessoa

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Quem nunca citou a célebre frase “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”?

Esse trecho do poema Mar Portuguez é de autoria do poeta Fernando Pessoa. E poucos conhecem a beleza deste poema. A frase em epígrafe é somente uma referência aos perigos por que passaram os lusitanos na época das grandes navegações.

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por ti cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

Mas quem foi esse Fernando Pessoa, autor de uma das mais conhecidas frases da língua portuguesa?

Ele foi, além de criador de obras literárias, um criador de escritores: seu projeto de arte era vasto e sua inteligência, imaginação e capacidade criadora muito amplas. Por isso, não lhe bastava criar uma única obra, mesmo que ela tivesse diversos volumes e títulos: por meio da imaginação, idealizou diferentes personalidades poéticas. Essas personalidades, conhecidas como heterônimos, possuíam biografia, traços físicos, profissão, ideologia e estilos peculiares.

Mais de dez heterônimos foram desenvolvidos, semi-desenvolvidos ou, simplesmente, esboçados pelo autor de Mensagem. Dentre essas criações, destacam-se: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, seguidos por Bernardo Soares, Coelho Pacheco, Alexandre Search etc. Soma-se a essa galeria de poetas, o próprio Fernando Pessoa (Fernando Pessoa “Ele Mesmo”), outra das muitas faces da obra do escritor. As características dessa poesia está marcada pelas faces pessoanas em que: Alberto Caeiro pensa com os sentidos; Álvaro de Campos pensa com a emoção; Ricardo Reis pensa com a razão. Fernando Pessoa “Ele Mesmo” pensa com a imaginação.

 

 

Fernando Pessoa (1888-1935) foi o principal escritor do Modernismo português. Ao lado de Camões, é um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos. Nasceu em Lisboa e, aos cinco anos de idade, ficou órfão de pai. Por isso, em 1895, foi para a África do Sul, com sua mãe e seu padrasto, designado cônsul em Durban. Voltou a Portugal em 1905 e escreveu em língua inglesa durante algum tempo ainda. É dessa fase a obra 35 sonnets, publicada em 1918.

Em Portugal, Fernando Pessoa colaborou em várias revistas literárias que se editavam na época. Além disso, atuou como crítico em A Águia. Cultivou a poesia e a prosa (contos), não se esquecendo de criar textos de estrutura dramática, aos quais ele mesmo chamou de “poemas dramáticos”.

O ocultismo e a astrologia foram, também, objetos da curiosidade de Fernando Pessoa. A parte de sua obra que mais chama a atenção é a poesia, distinta por uma singularidade e criatividade incomparáveis na literatura de língua portuguesa e, também, na universal.

Fernando Antônio Nogueira Pessoa construiu uma das mais importantes obras das literaturas de língua portuguesa, produzida desde os treze anos de idade, vasta e de notável qualidade artística.

Com alto índice de criatividade, Pessoa incorporou, artisticamente, as formas líricas da tradição poética portuguesa, para, em seguida, ultrapassá-las.

Partindo do saudosismo, sua obra evoluiu para o paulismo, o futurismo, o interseccionismo e o sensacionismo (as vanguardas europeias), realizando uma poética experimental na qual o poeta se desdobrava em várias máscaras. Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é uma dessas máscaras e constrói a chamada obra ortônima (assinada pelo próprio Fernando Pessoa).

Em Fernando Pessoa, cada uma das máscaras constitui uma atitude-experiência por ele experimentada, mesmo que essa experiência seja fingida, como sugere o poema Autopsicografia:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Esse poema apresenta uma dialética, envolvendo sentimento e sinceridade. A compreensão dessa dialética exige que ele seja lido de acordo com duas perspectivas: a da dor do poeta-escritor (que pode sentir a dor enunciada) e a da dor “fingida” pela máscara desse poeta-escritor, que é a dor do sujeito poético, construída pela escrita.

 


A épica

Em termos esquemáticos, a poesia de Fernando Pessoa “Ele Mesmo” pode ser dividida em duas vertentes principais: a épica (poesia saudosista-nacionalista) e a lírica.

Em um tom visionário e nacionalista, Fernando Pessoa “Ele Mesmo” escreveu a obra Mensagem, publicada em 1934, única publicação do autor em vida. Essa obra, que se pretendia uma versão moderna da epopeia, chamando-se Portugal, resultou numa mistura entre o épico e o lírico.

Por que épico? Porque canta os mitos e os heróis coletivos de Portugal, lembrando, assim, Os Lusíadas.

Por que lírico? Porque expõe sentimentos de melancolia, saudosismo e euforia de um eu-lírico que, às vezes, é uma personagem histórica e, às vezes, o próprio poeta.

Nessa obra, retomando o passado grandioso das navegações e das descobertas, Fernando Pessoa pretende reacender a chama da conquista, característica maior do povo português no passado, apagada com o desaparecimento de D. Sebastião na África.

Em Mensagem, o poeta não canta o Portugal de seu tempo, o Portugal real, envolto num marasmo sem fim, mas o Portugal sonhado por seus heróis, loucos e insanos. Obra nacionalista, procura reviver o sonho de grandeza da nação, que vários poetas perseguiram desde o século XVII.

Mensagem é uma obra que procura explorar em profundidade o tema Portugal: dirige-se aos portugueses, trata de Portugal, de sua alma e de sua história. Dirige-se, ainda, a qualquer leitor, superando os nacionalismos mesquinhos, na medida em que trata da condição humana em geral, atingindo, assim, a universalidade. Não é um livro fácil. Seus vários sentidos respondem por sua complexidade, construída por uma estrutura em que há rigorosa relação entre o todo e as partes.

 

A Lírica

A vertente lírica da poesia de Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é constituída pelo Cancioneiro. Essa obra não apresenta um conjunto uniforme de temas ou mesmo uma filosofia definida como eixo condutor. Saudade, solidão, infância, vida e arte são explorados nela, às vezes com ceticismo, nostalgia e tédio. A consciência que o autor tem de si como poeta inserido numa tradição da poesia lírica e a vinculação de sua poesia à de Almeida Garrett e António Nobre são patentes no Cancioneiro.

Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é, sobretudo, o poeta da imaginação, como representam os poemas Autopsicografia (apresentado anteriormente) e o poema Isto, a seguir:

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.

Tudo que sonho ou posso,
O que me falha ou finda
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê.

Ao lado de poemas que fazem reflexão sobre a própria arte poética e o papel do artista (é o caso de Autopsicografia), há, ainda, na vertente lírica da obra de Fernando Pessoa, poemas que sondam o eu-profundo.

Leia mais em poemas em http://www.insite.com.br/art/pessoa/index.php

 

Enfim

Fernando Pessoa foi o principal escritor do Modernismo português. A poesia é a parte de sua obra que mais chama a atenção, pela singularidade e criatividade sem par na literatura de língua portuguesa e na universal. Além de criador de obras literárias, Fernando Pessoa foi um criador de escritores. Por meio da imaginação, Pessoa idealizou diferentes personalidades poéticas: os heterônimos. Além dessas personalidades, esse poeta português escreveu em seu próprio nome. Vem daí a obra de Fernando Pessoa “Ele Mesmo”.

E o poeta também é conhecido por suas cartas de amor, trocadas com Ofélia, sua namorada durante anos. Acaba de sair uma nova edição das cartas de Ofélia e Fernando, mas você pode ler algumas delas na página da Casa Fernando Pessoa: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2230

 

 

E por falar em cartas de amor, Álvaro de Campos (para quem “Todas as Cartas de Amor são Ridículas”) será nosso foco na próxima edição de Personagens. Até lá.

 

Para o meu Eli Pereira.

 

Referências:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. A Literatura Portuguesa em Perspectiva: Simbolismo e Modernismo. Direção de Massaud Moisés. São Paulo: Atlas, 1994.

_____. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1999.
_____. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

_____. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

_____. Mensagem. São Paulo: Princípio, 1993.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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