“Não sou alegre nem sou triste: sou poeta” Cecília Meireles

No poema “Motivo”, o tema da passagem do tempo é tratado com leveza e delicadeza por Cecília Meireles. No poema, o jogo de antítese alegre/triste, desmorono/edifico e a musicalidade encaminham o leitor para um mergulho na sua sensibilidade poética.

Os primeiros versos do poema parecem dialogar com a intensa vida da autora:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias;
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou se passo

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada
E um dia sei que estarei mudo:
– Mais nada

Uma vida envolvida pela literatura é a que viveu Cecília Meireles, que nasceu no Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1901 e em 9 de novembro de 1964 faleceu nesta mesma cidade. Viveu 63 anos e passou por circunstâncias diversas desde seu nascimento.

A professora, jornalista e poetisa nasceu 3 meses após a morte de seu pai. E mais: 3 anos após o seu nascimento morre sua mãe. Cecília Meireles, então, foi criada por sua avó materna, Jacinta Garcia Benevides, por quem Cecília será criada e a cuja memória dedicará, em 1945, o ciclo das oito Elegias de Mar absoluto.

Em 1929, Cecília Meireles defende a tese intitulada O espírito vitorioso para a obtenção da cátedra de Literatura na Escola Normal do Distrito Federal, mas não é selecionada para a vaga. Entretanto, é convidada pelo Diário de Notícias do Rio de Janeiro para tornar-se colunista durante os próximos quatro anos, quando então, já em 1934, Cecília será finalmente designada, pela Secretaria de Educação, para dirigir o Centro Infantil no Pavilhão Mourisco do Rio de Janeiro.

A esta altura, a professora estava casada com o artista plástico Fernando Correia Dias (com quem se casara em 1921) e, juntos, transformaram o Centro Infantil em um espaço encantado para as crianças, com a implantação da primeira biblioteca infantil da cidade.

No entanto, devido a intrigas políticas, é levantada a suspeita sobre a legitimidade moral e educacional dos livros do acervo, alegando-se que a biblioteca continha obras perniciosas para a formação das crianças e a biblioteca é fechada por ordem de Getúlio Vargas.

Depois desse golpe profissional, Cecília teve outro, em 19 de novembro de 1935: o suicídio do marido. Além do desgaste emocional e afetivo, viera a responsabilidade financeira de manutenção da casa e da criação de suas três Marias: Elvira, Matilde e Fernanda.

A partir daí, torna-se professora de Literatura Luso-Brasileira e de Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal; mantém uma coluna sobre folclore no jornal A Manhã, outra, de crônicas semanais, no Correio Paulistano, outra, de escritos regulares, n’A Nação, organiza a revista Travel in Brazil; por sua veia linguística, torna-se tradutora de renomados autores, como Rilke, Virgínia Woolf, Lorca, Tagore, Maeterlinck, Anouilh, Ibsen, Pushkin, além de antologias da literatura hebraica e de poetas de Israel.

Há um caso interessante ocorrido com a escritora, quando foi convidada para uma série de conferências na Universidade de Lisboa e de Coimbra. Por intermédio de um amigo, Cecília marca um encontro, em Lisboa, na Brasileira do Chiado, com Fernando Pessoa. O poeta não aparece ao encontro e, depois de aguardar por duas horas, Cecília retorna ao hotel e recebe um recado de Pessoa, no qual ele se desculpava por não ter podido vê-la. Qual o motivo? Pessoa havia consultado o seu horóscopo naquela manhã, que lhe desaconselhara por completo o encontro com Cecília naquele dia. Para compensar o desagrado, ele deixou para ela, com o pedido de desculpas, um livro: Mensagem – o que torna muito provável que tenha sido Cecília Meireles, no Brasil, a primeira leitora dessa única obra publicada em vida por Fernando Pessoa.

No final da década de trinta, com muitos problemas após a morte do marido, a poetisa recebe uma carta de um médium, que sugere a ela a eliminação de uma das letras do seu sobrenome. Ela assinava Meirelles. De acordo com o tal médium misterioso, sua vida tornar-se-ia mais leve se fosse retirada do seu nome um L. Cecília, então, passa a assinar seu sobrenome tal como o grafamos hoje: Meireles, com um único ele. E, espantosamente, a sua vida começou a tomar outro rumo.

Em 1940, Cecília se casa com Heitor Grillo e vai lecionar na Universidade de Austin (Texas), viajando pelos Estados Unidos e pelo México. Em seguida, dedica-se à sua obra, tempo em que publica obras primas como Vaga música (1942), Mar absoluto (1945) e Retrato natural (1949). Em 1953, é publicado o trabalho de extensa pesquisa, Romanceiro da Inconfidência, obra muito elogiada por Murilo Mendes. Além dessas, Cecília publicará ainda: as Canções (1956), Metal rosicler (1960) e Solombra (1963), o último de seus livros de poemas publicados em vida.

A partir de 1940, em uma nova fase de sua vida, Cecília recomeça suas viagens a países como a Argentina, o Uruguai, a França, a Bélgica, a Holanda, a Índia, incluindo Goa, a Itália, Porto Rico e Israel. Em suas viagens, procurava conhecer culturas, geografia e história. Essas viagens estão registradas a partir das contemplações em seus textos, como Doze Noturnos da Holanda (1952), dos Poemas escritos na Índia (1953), dos Poemas italianos (1953), de Pistóia, cemitério militar brasileiro (1955) e dos Poemas de viagens (1940-1964).

O gosto pelo folclore, Cecília desenvolveu a partir das histórias, das parlendas, das rimas, dos romances contatos por sua avó Jacinta, que nascera nos Açores. A menina Cecília conhecia muito bem o folclore brasileiro! Dramatizava, cantava, dançava, sabia adivinhações, cantigas, fábulas, histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça. Aos nove anos recebeu, de Olavo Bilac, uma medalha de ouro confeccionada especialmente para ela.

Neste envolvimento com a cultura e com a literatura é que Cecília Meireles estudou canto e violino, adentrou-se cada vez mais nos domínios da cultura oral, que a conduziu à literatura: à poesia, à ficção, ao teatro, à crônica, à prosa poética, aos ensaios, às conferências, aos livros didáticos e às traduções.

Em 1953, após o convite do Primeiro Ministro da Índia para visita àquele país, ela recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Delhi. Também recebeu o Prêmio Machado de Assis (1965) e Oficial da Ordem do Mérito (Chile). Também é sócia honorária do Real Gabinete Português de Leitura e sócia honorária do Instituto Vasco da Gama (Goa). Nos Açores, seu nome foi dado à escola básica da freguesia de Fajã de Cima, concelho de Ponta Delgada, terra de sua avó materna, Jacinta Garcia Benevides.

Após sua morte, foi homenageada com a impressão de uma cédula de cem cruzados novos em que está estampada a efígie de Cecília Meireles, lançada pelo Banco Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1989, seria mudada para cem cruzeiros, quando da troca da moeda.

Sua obra

A literatura de Cecília Meireles está pontuada por uma forte sensibilidade feminina, por uma introspecção, pela viagem para dentro de si e pela transitoriedade das coisas. A musicalidade está presente em sua poesia, assim como um universo de sonho, de fantasia e de solidão. No poema “Canção”, podemos perceber a melancolia citada:

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

O tema do poema sugere a tristeza causada pela perda dos sonhos, também, certa determinação em superar essa tristeza, que parece ser causada por suas próprias mãos.

A poetisa dedicou-se também às crianças e escreveu várias obras na área de literatura infantil como “O cavalinho branco”, “Colar de Carolina”, “Sonhos de menina”, “O menino azul”, entre outros. Nestes poemas infantis, há clara a marca da musicalidade, como em “Colar de Carolina”:

Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.

O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.

E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.

Para finalizar nossa pequena conversa sobre Cecília Meireles, o poema “A bailarina”, que já ilustrou inúmeros livros didáticos e que continua sendo uma das mais importantes poesias da literatura infantil:

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
Mas inclina o corpo para cá e para lá.

[…].

Conheça mais sobre Cecília Meireles nos seus livros de poemas, nos blogs com poemas, ou naqueles que foram mais divulgados pela voz de Fagner, como Canteiros e Motivo.

 

 

Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA (PosCom-UFBA). Mestre em Letras e Linguística (UFG). Licenciada em Letras (UFG). É professora da SEDUC e da Unitins. Atua em pesquisa e desenvolve projetos nas áreas de literatura, televisão, teleficção seriada e adaptação literária. Desenvolve, com outros pesquisadores do Grupo de Pesquisa Literatura, Arte e Mídia, os projetos de Extensão “Cinema e Literatura em Debate” e “Interlúdio Literário”. E-mail: kyldesv@gmail.com