O Capa-Branca: histórias de vida no Juquery

“Por sete anos vivi cercado por todo tipo de louco, maluco, pirado,
ou seja lá como é possível chamar um doente com problemas mentais ou psiquiátricos.
Acredito que as pessoas pensam que sou meio esquisitão por causa disso.
Hoje estou aposentado e muita gente classifica meu comportamento como loucura.
Mas aposto que essas pessoas nem imaginam quais são os verdadeiros limites
da loucura – se é que a mente humana tem algum limite.”

(Walter Farias)

O jornalista Daniel Navarro compilou histórias de Walter Farias, ex-atendente de enfermagem que trabalhou e foi internado no Manicômio Judiciário do Juquery, em Franco da Rocha (SP). O Capa-Branca, que ainda será publicado, é um livro que relata, em primeira pessoa, a vida de um funcionário e paciente do que já foi a maior instituição psiquiátrica da América Latina.

“No início dos anos 1970, Walter, com pouco mais de 18 anos, via no serviço público a oportunidade de conseguir realizar seus sonhos. Ao ser aprovado no concurso para o Hospital Psiquiátrico, passou a vestir uma capa branca para cuidar de pacientes acamados ou que perambulavam os corredores das clínicas completamente alheios à realidade.

A vida do protagonista de O Capa-Branca começa a tomar outro rumo depois de sua transferência para o Manicômio Judiciário. Pacientes inofensivos deram lugar a detentos que haviam praticado crimes com requintes de crueldade. Essa realidade acabou com a sanidade dele e a única solução para o caso foi a internação no Hospital Psiquiátrico. Dali em diante, o atendente de enfermagem deixou de lado sua capa branca para se transformar em mais um paciente do Juquery e sentir na pele os horrores daquele lugar.”

O (En)Cena entrevistou Daniel Navarro para conhecer um pouco das histórias que O Capa-Branca retrata.

Daniel Navarro, jornalista e escritor de O Capa-Branca. Créditos: Paula Korosue

(En)Cena – Como foi o seu primeiro contato com o Walter? Como vocês se conheceram?

Daniel Navarro – Eu vi o Walter pela primeira vez na TV, em 2007. Ele participou do programa Casos de Família, do SBT, na época em que era apresentado pela jornalista Regina Volpato. Fiquei bastante interessado na história de vida dele, principalmente quando contou que tinha sido funcionário e paciente do Juquery. No final, ele comentou que precisava de ajuda para escrever um livro com suas memórias. Assim que o programa terminou, enviei um e-mail para a produção solicitando os contatos dele. No dia seguinte, conversamos por telefone e marcamos de nos encontrar na escola de idiomas onde eu dava aulas de francês e de italiano. Walter saiu de Franco da Rocha e foi me encontrar no centro de São Paulo.

Nesse primeiro encontro, ele deixou comigo algumas folhas sulfite com manuscritos que continham a história de alguns personagens do tempo em que trabalhou no Juquery. Dali em diante, recebi o restante dos manuscritos e começamos a desenvolver o projeto do livro. Tenho até hoje todos os manuscritos.

Morei em Fortaleza por dois anos e meio e para prosseguirmos com o livro. Eu imprimia os textos e os enviava para ele pelo correio. Dias depois, eu recebia um envelope com as observações e comentários dele escritos a caneta.

(En)Cena – Daniel, o que te motivou a escrever o livro? Por que você, jornalista, escolheu a temática da saúde mental?

Daniel Navarro – Eu já estava pensando em escrever um livro, mas não sabia por onde começar e nem tinha um tema bem definido. Outra motivação foi meu interesse por filmes, livros e reportagens sobre hospitais psiquiátricos, manicômios e presídios. No segundo ano da faculdade de jornalismo, visitei o Carandiru e, um ano antes, tinha lido Estação Carandiru, que me marcou muito. Acabei lendo esse livro três vezes. Depois, vi O Bicho de Sete Cabeças e li Canto dos Malditos, o livro que inspirou o filme. Lembro que saí bastante impressionado do cinema e no dia seguinte comprei o livro. Acho que o li em dois ou três dias.

(En)Cena – Há alguma história específica do Walter que lhe chamou mais atenção, lhe emocionou?

Daniel Navarro – É difícil dizer qual história me chamou mais atenção ou me emocionou mais. Acabei me afeiçoando pelo livro como um todo. A convivência com os pacientes das clínicas do Hospital Psiquiátrico e com os internos do Manicômio Judiciário rendem histórias fortes e impactantes. Acredito que a transformação do protagonista de capa-branca (funcionário do Juquery) em paciente despertou em mim e vai despertar nos futuros leitores diversas reações.

Complexo Judiciário do Juquery, localizado em Franco da Rocha – SP

Há alguns personagens muito interessantes, como o paciente do Hospital Psiquiátrico que permanecia trancado em uma cela por ter a habilidade de arrancar os olhos das pessoas com as próprias mãos. Também posso citar o guarda-costas responsável pela proteção de Walter no Manicômio Judiciário. E há ainda um personagem bastante misterioso do manicômio que passava o dia lendo de tudo, desde livros sobre seitas secretas, alquimia e matemática até bulas de remédio. Ele convenceu Walter a participar de um ritual secreto no campo de aviação de Franco da Rocha. Também gostei de conhecer o outro lado do célebre Bandido da Luz Vermelha. Quando Walter o conheceu, ele já era uma pessoa bem diferente daquela que saia nas manchetes dos jornais. Quando o livro for publicado – espero que não demore muito –, os leitores vão ficar bastante impressionados com a galeria de personagens de O Capa-Branca.

(En)Cena – Após conhecer a trajetória de Walter, você percebe a loucura de uma forma diferente? Sua visão sobre isso mudou?

Daniel Navarro – O conceito de loucura é muito amplo e delicado. Muitos dos pacientes internados no Juquery estavam lá porque eram pessoas indesejáveis para a sociedade. Não havia um diagnóstico preciso dos problemas psicológicos, psiquiátricos ou mentais. Conviviam no mesmo ambiente, esquizofrênicos, alcoólatras, pessoas com síndrome de down, usuários de drogas ilícitas… a lista vai longe! Até presos políticos foram parar lá dentro e morreram sem que ninguém soubesse onde foram enterrados. No início do século 20, imigrantes japoneses chegavam ao porto de Santos e só porque tinham os olhos puxados eram considerados diferentes e acabavam internados no Juquery. A política da época era limpar as ruas e eliminar aquilo que parecesse diferente e não se enquadrasse nos padrões de normalidade da sociedade.

Confesso que também já me chamaram de louco por eu ter escrito o livro com o Walter. Quando digo que vou à Franco da Rocha conversar com um ex-funcionário do Juquery que foi paciente, uma ou outra pessoa me chamam de louco.

Walter Farias, protagonista de O Capa-Branca

Ainda explorando esse conceito amplo e delicado de loucura, creio que devemos acreditar nos nossos sonhos e não nos preocuparmos com o que os outros pensam. Muitos cientistas foram considerados loucos quando anunciavam suas descobertas. Só que se eles mesmos não acreditassem nas suas ideias e as defendessem com unhas e dentes, até hoje acreditaríamos que a Terra é plana e o homem não teria ido ao espaço, só para citar alguns exemplos.

(En)Cena – Você ainda não fechou contrato com alguma editora para lançar o livro. Essa dificuldade se deve a quê? Você acha que, por ser uma obra sobre saúde mental, há empecilho para publicação?

Daniel Navarro – O processo de análise de originais é longo e muito minucioso. Comecei a enviar o original de O Capa-Branca em agosto deste ano, então ainda é muito cedo para afirmar que há algum empecilho para a publicação de uma obra que aborde a questão da saúde mental.

(En)Cena – Walter possui mais de 400 canções registradas dos mais variados estilos musicais. Ele também é inventor. Você, que relatou as memórias dele, acredita que ter passado pelo Juquery o sensibilizou para tais tipos de arte?

Daniel Navarro – Há essa possibilidade. Eu acredito que de alguma forma sua passagem pelo Juquery o sensibilizou para tais tipos de arte. Mas acho que os leitores também poderão tirar suas conclusões ao lerem O Capa-Branca.

(En)Cena – O quê, de mais valioso, você aprendeu com Walter?

Daniel Navarro – A experiência de escrever o livro com Walter foi muito enriquecedora. Além de sermos parceiros na escrita, nos tornamos amigos. Mas, depois de conhecer a história da vida dele, a lição que ficou para mim e deverá ficar para os leitores é que não podemos cometer os mesmos erros do passado nem no presente e muito menos no futuro. Ficou comprovado que modelo de confinamento de pacientes no Juquery e em outros hospitais psiquiátricos espalhados pelo país não funciona. Não adianta amontoar milhares de pacientes com os mais variados diagnósticos no mesmo lugar. Além disso, os tratamentos também devem ser revistos. Na época em que se passa O Capa-Branca – a década de 1970 –, os tratamentos não tinham quaisquer critérios. Havia absurdos como a terapia por choque insulínico e malarioterapia, que consistia na inoculação do germe da malária. Quem entrava não se curava. Os pacientes passavam dia e noite sedados. O único objetivo era controlá-los. Em um momento em que se discute a internação de usuários de crack para tratamento, acredito que essa questão deve ser discutida sem esquecermos o passado.


Sobre os autores:

Daniel Navarro é jornalista e conheceu o protagonista de O Capa-Branca enquanto assistia a um programa de TV com o tema “Sou esquisito e daí!”. Após entrar em contato com Walter Farias, recebeu os manuscritos que contavam um pouco de suas memórias no Juquery. Fluente em francês, inglês, espanhol e italiano, atualmente estuda russo e trabalhou como professor de idiomas, tradutor, intérprete. Atuou em diversos segmentos de assessoria de imprensa, como fitness, turismo, construção civil, limpeza urbana, marketing digital, gastronomia e mercado editorial.

Walter Farias é ex-funcionário do Juquery e vive até hoje em Franco da Rocha com sua família. Pai de três filhas e um filho e avô de cinco netos, atualmente está aposentado. Já compôs mais de 400 canções, todas registradas. Seu repertório inclui diversos estilos, como samba, sertanejo, MPB, entre outros. Algumas de suas músicas já foram gravadas por cantores de Franco da Rocha, Caieiras e Jundiaí. Também se dedica a inventos. Um deles consiste em um sistema que impede caminhoneiros de dormirem ao volante.

Entre em contato com o autor:

Daniel Navarro
danielnavarro@ig.com.br

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