Resiliência: da muleta para o triathlon

Acidentes acontecem e quando acompanhados de sequelas físicas podem acarretar problemas de saúde mental, seja pela inatividade, por não aceitar a situação ou por outros motivos. No período pós-acidente, onde o paciente está em fase de recuperação, muitos deles precisam trocar sua rotina agitada por descanso e repouso. Nesse período, é fundamental que o paciente ocupe sua mente com outras atividades. Isso garante o bom funcionamento do cérebro e contribui para a preservação da saúde mental do indivíduo. Ser resiliente é importante.

A psicologia define a palavra resiliência como a capacidade de uma pessoa lidar com os seus próprios problemas, vencer obstáculos e não ceder à pressão, independente da situação. Em termos gerais, a resiliência é a capacidade de voltar ao seu estado natural, principalmente após alguma situação crítica e fora do comum.

Para mostrar que é possível mostrar resiliência em situações difíceis, o (En)Cena entrevistou Rafael Felipe, Analista de Comunicação, estudante de Publicidade e Propaganda e praticante de triathlon nas horas vagas. Em 2005 vivendo a plena juventude, Rafael sofreu um acidente jogando bola e depois de muitas complicações cirúrgicas ficou dois anos andando de muletas. Durante esse período, Rafael teve que abandonar todas suas atividades como trabalhar, estudar e praticar esportes, mesmo assim conseguiu manter sua saúde mental em perfeito estado.

Foto: arquivo pessoal

(En)Cena – Como era sua vida e suas atividades antes do acidente?

Rafael Felipe – Eu sempre pratiquei esporte como lazer. Jogava futebol, futsal, vôlei, tênis de mesa e nadava, mas nada com fins de rendimento ou algo parecido, apenas como lazer e diversão

(En)Cena – Em que ano foi o acidente e quantos anos você tinha? Como o acidente aconteceu?

Rafael Felipe – Foi em dezembro de 2005. Eu tinha 22 anos. O acidente aconteceu em uma noite de terça-feira, como era de praxe, fui jogar futebol society com meu irmão e amigos. Nos primeiros 10 minutos um rapaz que não conheço, por falta de perícia (habilidade mesmo), somado com a grama molhada da chuva, pulou em meu joelho. A pancada foi tão grande que o barulho foi gigante. Fiquei alguns minutos gemendo de dor. Meu primo chamou a SAMU, mas como o atendimento em Palmas é complicado, meu primo entrou com meu carro dentro do campo e me carregou para o hospital. Fui para o HGP que é bem complicado.

(En)Cena – Foi atendido no mesmo dia? Qual foi o diagnóstico?

Rafael Felipe – Fui atendido depois de muito tempo e minha mãe querer entrar com medicamento para dor. Fiquei algumas horas em uma cadeira de rodas. O primeiro diagnóstico falava que poderia ser uma ruptura ligamentar, mas fiz um raio-x que apenas mostrou que havia quebrado o fêmur bem na ponta, coisa pouca. Aí tive que fazer uma ressonância. Na época em Palmas não tinha, então dia 26/12 fui pra Goiânia e fiz a tal ressonância que confirmou a ruptura do Ligamento Cruzado Posterior e derrame da articulação devido a pancada e quebra do fêmur.

(En)Cena – Quais foram as consequências?

Rafael Felipe – Então, aí começam as complicações. Com a ruptura, deve-se de imediato fazer a cirurgia. Mas o médico ficou me enrolando por mais de 6 meses e eu fazendo fisioterapia. Por dois meses pela dor me locomovia com cadeira de rodas e depois sempre de muletas com um imobilizador de joelho que é de neopreme com barras de alumínio. Até que busquei uma segunda opinião.

(En)Cena – E a segunda opinião que você buscou constatou a mesma coisa?

Rafael Felipe –Não. Graças ao meu bom Deus o médico era bom e consciente. Falou que se ele fosse meu médico me operaria dias depois da lesão. Aí mudei pra ele. Ele foi muito ético, falou que eu tinha um médico e não podia ir direto pra ele. Eu falei “eu assumo e preciso resolver meu problema”. Fiz diversos exames até fazer as cirurgias.

(En)Cena – E ocorreu tudo bem nas cirurgias? Quais foram os resultados?

Rafael Felipe – Três dias antes da primeira cirurgia eu estava gripado e fui ao SAU. Falei pra uma médica e ela me receitou um medicamento forte. Tomei. Fiz os exames normalmente. Aí na primeira cirurgia a anestesia raquidiana deu rejeição com o medicamento que eu estava tomando. Então durante as 7h30 de cirurgia, todos os meus batimentos cardíacos ficaram acima de 175 por minuto. Só na hora da cirurgia que apareceu o problema. Acordei com aquele monte de aparelhos em volta de mim, caso meu coração parasse. Eu poderia ter morrido.  Mas como sempre falo, acho que bati na porta lá em cima e falaram: “putz, é o Rafael, ele é chato demais, manda de volta”. (risos)

(En)Cena – Deu tudo certo nessa cirurgia?

Rafael Felipe – Sim. No outro dia ainda internado foi feito novos exames que constaram que um dos pinos que foi colocado na minha perna, na verdade o tendão usado para ser o ligamento, rasgou. Ou seja, teria que fazer mais uma cirurgia. Porém isso era sexta à noite. O médico, devido ao problema no coração, só faria a outra cirurgia após a avaliação de um cardiologista. E pra variar aqui em Palmas tem uma máfia dos cardiologistas. Só tem um lugar que faz todos os exames e não funciona no sábado. Precisava dos exames para fazer a cirurgia no domingo cedo. Uma médica amiga conseguiu abrir o Cardiocenter no sábado pra me atender. Fiz os exames e não deu nada de errado. Foi apenas o medicamento que eu tinha tomado antes para gripe que causou o problema na cirurgia. Meu coração estava 100%. Aí fiz a cirurgia no domingo.

(En)Cena –  E como foi essa segunda cirurgia?

Rafael Felipe – Foi tudo beleza. Na segunda cedo o médico disse que eu estava há muitos dias no hospital e eu podia ir pra casa e ficar muito quieto. Mas é complicado. Chegando em casa, milhões de visitas e eu “quase não falo”. No mesmo dia à noite, em casa, comecei a sentir falta de ar e tive uma parada respiratória proveniente de uma embolia pulmonar. Na hora que minha mãe ligou pro meu médico, ele na hora mandou a esposa dele, pois pra minha sorte ela é pneumologista. E ele sacou na hora que deveria ser isso. Meu pai foi muito rápido também. Na hora que minha esposa falou pra ele que eu estava mudando de cor (risos), ele deu umas “porradas” em mim pra eu continuar respirando. Ele e minha mãe voaram para o hospital. Fiquei na UTI uma madrugada e parte do dia todo entubado. Fiquei uns dias no hospital e por 25 dias fiquei tomando anti-coagulante, uma injeção desagradável que dá na barriga. Aí depois disso foram mais 4 cirurgias mais tranquilas, mas todas com a tal anestesia chata.

(En)Cena – E depois de tudo isso, o que aconteceu que você ficou dois anos sem andar?

Rafael Felipe – Devido ter demorado a fazer a primeira cirurgia, o joelho criou um monte de coisas. Foram 6 cirurgias e cerca de 380 sessões de fisioterapia.

(En)Cena – Mas nesses dois anos você se locomovia de cadeiras de rodas, muleta ou de que forma?

Rafael Felipe – De muletas. Eu não conseguia andar pela dor e também porque perdi o movimento das pernas.

(En)Cena – O que mudou na sua rotina após o acidente?

Rafael Felipe – Tudo. Eu tinha uma vida bem ativa. Trabalhava, fazia faculdade. Vida bem agitada. Aí do nada, tinha que ficar paradão. Dependia dos outros pra fazer tudo. Nos primeiros dias, até banho era difícil.

(En)Cena – Como foi o desafio de viver com limitações durante o período pós-acidente? Quais eram suas principais dificuldades durante esse tempo?

Rafael Felipe – Nossa, eu que não parava, ficar na inércia em casa era bem complicado. Eu passei a maior parte do tempo em casa. E antes eu quase não ficava em casa.

(En)Cena – Psicologicamente, como você reagiu ao saber que ficaria sem andar por um tempo e não poderia ter a vida ativa que você sempre teve?

Rafael Felipe – A princípio parecia tranquilo. Mas com o tempo começou a pesar. Era um sentimento de impotência, de não poder fazer tudo que fazia normalmente.

(En)Cena – Você desenvolveu sentimentos como raiva, medo, angústia, tristeza, essas coisas?

Rafael Felipe – Eu sou muito zen. Fiquei sempre ansioso, isso sim.

(En)Cena – Em algum momento passou pela sua cabeça que você jamais poderia voltar a fazer suas atividades, como praticar esportes?

Rafael Felipe – Sim

(En)Cena – E quando você pensava nisso, o que imaginava? Que sentimentos você alimentava?

Rafael Felipe – Como te falei sou zen e sempre tive Deus comigo. Então sentimentos ruins foram poucos.

(En)Cena – E quais eram as expectativas médicas e as suas próprias expectativas?

Rafael Felipe – Então, depois de um ano que voltei ao normal, acabei virando amigo do médico e ele comentou comigo que não esperava que eu fosse voltar a ficar quase 100% como fiquei. E dei muito trabalho pra ele.

(En)Cena – Nesse período que você ficou inativo, você parou tudo? Inclusive faculdade e trabalho?

Rafael Felipe – Sim. Mas abre aspas, fiz minha filha (risos). Mas não podia trabalhar nem estudar. De manhã e tarde fisioterapia, mas na empresa eu não podia ir. Fiquei encostado pelo INSS.

(En)Cena – E o que você fez para passar o tempo, já que não podia fazer esforço físico?

Rafael Felipe – Comia e assistia filme (risos). Por isso cheguei a pesar 100kg.

(En)Cena – Estudos científicos revelam que para uma boa conservação mental, o indivíduo deve ocupar sua mente, para que ela esteja sempre trabalhando. Você não fez mais nada além de comer e assistir filme?

Rafael Felipe – Fiz sim. Como trabalho com computador, fiz vários projetos pela empresa do meu pai. Alguns freelas de publicidade mais voltados para web. Li alguns livros também.

(En)Cena – Qual foi o papel da sua família em sua reabilitação física e conservação da sua saúde mental?

Rafael Felipe – Fundamental. Apoio mais que 100%. Sem eles eu nem sei o que seria de mim.

(En)Cena – Após sua completa recuperação, que atividades você voltou a fazer? Começou algo novo?

Rafael Felipe – Em maio de 2007 fui pra Floripa assistir uma prova de triathlon e me apaixonei por aquilo. Mas com mais de 92kg era difícil. Aí comecei a nadar, pedalar e correr.

(En)Cena – Foi assim que emagreceu novamente e voltou ao peso normal?

Rafael Felipe – Exato.

(En)Cena – E hoje você pratica triathlon apenas por lazer ou profissionalmente?

Rafael Felipe – Por hobby, isso vicia. Profissionalmente nunca. (risos)

Fotos: arquivo pessoal

(En)Cena – Que dica você pode dar para os internautas no sentido de manterem sua saúde mental em perfeito estado, mesmo em situações semelhantes a que você passou?

Rafael Felipe – Ter fé e confiar no cara lá de cima, e buscar preencher a mente com algo.