Patologia ou Patologização? A Medicalização do Ser e a Crise do Sentir na Contemporaneidade

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A patologia, enquanto ramo da ciência médica, estuda as alterações morfológicas e fisiológicas que definem os estados de saúde e doença. No entanto, quando essas categorias escapam do campo técnico e invadem o território do vivido, transformando o simples ato de existir em sintoma, nos deparamos com um fenômeno perigoso: a patologização da experiência humana. Vivemos uma epidemia de autodiagnósticos, onde cansaço, tristeza, angústia e até a lucidez  são reduzidos a rótulos do DSM-5  como se a complexidade do psiquismo pudesse ser capturada por manuais que, não por acaso, são atualizados conforme os interesses da indústria farmacêutica.  O poeta baiano Tácio Pimenta, em versos cortantes, denuncia:  

“anúncios abilolados propagandeiam pílulas/ edifícios são erguidos em fast forward/ um remédio para cada emoção? – pergunta a razão/ porém os meus olhos mal sabem o que veem”.

Essa prática não é ingênua, ela ecoa a história sombria da psiquiatria, que já serviu para segregar “indesejáveis” dos escravizados que fugiam às senzalas (diagnosticados com drapetomania) às mulheres rebeldes (tratadas com histerectomias morais no século XIX). Hoje, sob o véu do “cuidado”, repete-se a mesma lógica: individualizar o sofrimento é eximir o sistema. Se um trabalhador entra em burnout, a culpa é da sua “incapacidade de lidar com o estresse”, não da precarização laboral. Se um jovem desenvolve ansiedade, a solução é um ISRS (Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina), não a discussão sobre o futuro sob o capitalismo tardio.  Como alertam Albuquerque e Lobato (2022):  

“No neoliberalismo, glamouriza-se o sofrimento mental e naturalizam-se suas causas, reduzindo-o a disfunções cerebrais. O diagnóstico, que outrora excluía, agora valida, mas para criar novos mercados: de psicotrópicos, de terapias, de identidades medicalizadas.”

Essa é a armadilha. O mesmo sistema que nos adoece vende a cura, e lucra com a nossa incapacidade de distinguir o que é patologia do que é resistência. Maria Pato nos lembra que:  “A lógica manicomial não está confinada aos hospícios. Ela se reproduz na exigência de produtividade 7/1, na criminalização da preguiça, na patologização da divergência. O ‘normal’ é um constructo eugênico: branco, masculino, burguês, adaptado.” 

Fonte:https://br.pinterest.com/pin/8373949301502920/

A contemporaneidade assiste a uma perversa colonização das subjetividades através da psicopatologização da existência, processo que transforma respostas humanas naturais em transtornos mentais individualizados. Como alerta Han (2015), “a sociedade do desempenho produz depressivos e fracassados”, convertendo termos como depressão e TDAH em instrumentos de controle social que medicalizam desde a tristeza legítima rebatizada como “distimia”, até a indignação política, categorizada como “transtorno de desregulação do humor”. Essa apropriação do vocabulário psicológico opera uma violência epistêmica que, ao individualizar o sofrimento, esconde suas causas estruturais: enquanto o luto indígena pela terra devastada é patologizado, os executivos que ordenam tal devastação são celebrados como modelos de racionalidade.

Diante desse cenário, urge resgatar a saúde mental como ato político, contextualizando radicalmente o sofrimento, reconhecendo que não existe depressão desconectada do capitalismo tardio, nem ansiedade dissociada da necropolítica (MBEMBE, 2018) – e coletivizando os processos de cura. Como afirma Manoel de Barros (1996, p. 45), “doente era a vista que não via o invisível”, lembrando-nos que a verdadeira arte de não ser doente reside em diagnosticar as estruturas sociais adoecidas, não os indivíduos.

Referências:

ALBUQUERQUE, Flávia; LOBATO, Luciano Ernesto. Identidade diagnóstica: por que estamos nos identificando mais com transtornos? 2022. VALENTE. Revista das trabalhadoras e dos trabalhadores do Judiciário Catarinense | ano 4 | número 7 | setembro 2022. Disponível em: https://www.sinjusc.org.br/wp-content/uploads/2022/09/Valente-7-ed-20_09_2022-web.pdf. Acesso em: 15 nov. 2024.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 2016. Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/28000186.pdf?srsltid=AfmBOorDX9QmfFoNsU1uf8akX_x6wm2GqutbQCr9us-5rmOlUJYRTcYP. Acesso em: 30 mar. 2025.

 BONTEMPO, Valéria Lima. NECROPOLÍTICA, RESISTÊNCIA, SACRIFÍCIO E TERROR. 2018. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 80p.. Disponível em: file:///C:/Users/Juliana/Downloads/hals,+Bontempo.pdf. Acesso em: 10 mar. 2025.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2015. Disponível em: http://psico.cinead.org/wp-content/uploads/2021/10/HAN_BYUNG_CHUL_Sociedade-do-cansac%CC%A7o.pdf. Acesso em: 12 mar. 2025.

PATTO, Maria Helena Sousa. A cidadania negada: Políticas públicas e formas de viver. 2022. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponívelem:https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/913/826/3010?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaZXn9RkNHqGYAaWsorv0LOjhG9VtjU-nGs6FA5QR4H0vxNsqpuGUm6a4fk_aem_GLfmgYmODKXZYNPjdnE7hQ. Acesso em: 10 mar. 2025.

PATTO, Maria Helena Sousa. Mutações do cativeiro:: escritos de psicologia e política. escritos de psicologia e política. 2022. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponível em:https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/918/831/3025?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaY3LAbyD-vxVY-_hOmAzpBT4ubtlFLM_UpBoVHMXpIbq51lMmSd8ReFoms_aem_w6C2zHDifgrrM2zUVVsNcA. Acesso em: 10 mar. 2025.

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Universidade e Maternidade – Um Diálogo sobre Desafios e Invisibilidades

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No auge dos meus seis meses de gravidez, em uma UBS (Unidade Básica de Saúde), deparei-me com uma cena que ecoaria em minha trajetória acadêmica: uma mãe, ao responder às perguntas de seu filho, disse: “A mamãe teve que parar de estudar quando você nasceu, não deu para continuar…”. Naquele momento, eu, acadêmica e grávida, fui atravessada por um misto de medo e inquietação. A fala daquela mulher não era apenas uma explicação casual, mas um reflexo de uma estrutura social que historicamente exclui mães dos espaços de formação e ascensão profissional. Essa experiência foi o estopim para uma reflexão crítica sobre os desafios enfrentados por mulheres mães no ambiente universitário, um espaço que, embora se proclame inclusivo, ainda é marcado por barreiras invisíveis que perpetuam desigualdades de gênero. 

A universidade, como muitas outras instituições sociais, foi concebida em um modelo patriarcal que não considera as demandas da maternidade. Como afirma Castells (1999), o patriarcalismo é uma estrutura que permeia todas as esferas da sociedade, relegando à mulher um papel secundário no que diz respeito à educação e ao trabalho. Quando a mulher se torna mãe, essa exclusão se intensifica, pois a maternidade é vista como um impedimento à produtividade, e não como uma dimensão da vida que deveria ser integrada e apoiada. A maternidade é frequentemente romantizada como um período de sacrifício e amor incondicional (Travassos-Rodriguez & Féres-Carneiro, 2013), mas essa visão ignora os desafios concretos enfrentados por mães estudantes: noites mal dormidas, privação de sono e exaustão constantes e sem falar do chamado “baby brain”, caracterizado por alterações na memória, concentração e coordenação motora durante e após a gravidez, o que sem dúvidas impacta diretamente o desempenho acadêmico (Davies et al., 2018).

E, apesar de algumas universidades oferecerem fraldários ou extensão de prazos, essas medidas são insuficientes diante da complexidade das demandas maternas (Gomes, 2020; Saalfeld, 2019). A ausência de uma estrutura que acolha mães e crianças evidencia que a universidade não foi pensada para mulheres que exercem a maternidade. Como aponta Robeck (2020), garantir o direito à educação para mães não é apenas uma questão de assistência estudantil, mas de justiça social. A falta de creches universitárias, horários inflexíveis e a pressão por produtividade acadêmica reforçam a ideia de que “depois que você vira mãe, não adianta” – um discurso que precisa ser desconstruído.

A experiência da maternidade na academia não pode ser reduzida a uma escolha individual entre “estudar” ou “cuidar dos filhos”. É necessário reconhecer que a exclusão de mães do espaço universitário é um problema estrutural, enraizado no patriarcado e na falta de políticas públicas eficazes. Se a universidade deseja verdadeiramente ser um espaço democrático, ela precisa criar políticas de permanência (como creches, flexibilização de prazos e apoio psicológico), desconstruir estereótipos que associam maternidade a incapacidade intelectual, e ampliar o debate sobre gênero e parentalidade, integrando mães e pais na discussão. Enquanto isso não acontece, histórias como a daquela mãe na UBS continuarão a se repetir, e muitas mulheres serão obrigadas a abandonar seus sonhos acadêmicos. Mas é justamente na resistência dessas mães estudantes que reside a esperança de transformação, porque lugar de mãe é também na universidade, e nenhuma mulher deveria ter que escolher entre ser estudante e ser mãe.

Referências

TRAVASSOS-RODRIGUEZ, Fernanda; FERES-CARNEIRO, Terezinha. Maternidade tardia e ambivalência: algumas reflexões. Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 45, n. 1, p. 111-121, jun. 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v45n1/v45n1a08.pdf .Acesso em 28 Out. 2024.

GOMES, B. Mulher, mãe e universitária: desafios e possibilidades de conciliar a maternidade à vida acadêmica. Ufpb.br, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/17638. Acesso em: 28 de Out. 2024.

SAALFELD, T. Maternidade e vida acadêmica: limites e desafios das estudantes mães na Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Furg.br, 2019. Disponível em: https://repositorio.furg.br/handle/1/8568. Acesso em: 28 de Out. 2024.

ROBECK, K. G. A mulher mãe no ambiente laboral: das conquistas históricas ao desafio da reinserção ao mercado de trabalho pós maternidade. Unijuí – Universidade Regional Do Noroeste Do Estado Do Rio Grande Do Sul; Ijuí, 2020. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2021.

 

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Acadêmicas do curso de psicologia promovem roda de conversa sobre pressão estética e Transtornos Alimentares

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Na última terça-feira (29) as acadêmicas de Psicologia Camila Melo e Mariana Aires, promoveram a roda de conversa “Entre a Forma e o Fardo” como parte das atividades da disciplina de Práticas Interprofissionais de Educação em Saúde. Os participantes compartilharam reflexões e narrativas acerca de pressões estéticas, contando com as participações das professoras e psicólogas Isaura Rossatto e Ruth Cabral, que contribuíram com a discussão levantando conceitos de saúde, pressão estética e gordofobia.

“Dado ao momento em que vivemos, e a busca demasiada por padrões de belezas inalcançáveis, é preciso desnudar e questionar essas práticas, para possíveis tensionamentos e mudanças de paradigmas, partindo da discussão sobre padrões inalcançáveis.” fala pontuada pela professora Isaura, o que reverberou a reflexão de que ao colocar essa prática como inalcançável ela serve a um propósito hegemônico de perpetuação de desigualdade e manutenção do status quo dominante, que criam um ideal imaginário do qual é a base de um sistema capitalista que cria e vende o corpos magros como sendo a resposta para as infelicidades e sofrimentos. Para as psicólogas, falar sobre questões estéticas é também pensar questões socioeconômicas, de gênero, sexualidade e raça e em como esse fenômeno recai sobre cada corpo.

Foi levantado o debate de que “Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) a definição  de saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.“ As pessoas insistem em estigmatizar o corpo gordo e defini-lo como doente, levando como premissas os padrões estéticos, sem considerar em profundidade a análise do que se significa saúde”, prática essa, como frisou a professora Ruth Cabral que “recai de forma violenta sobre pessoas gordas, pois impossibilita que as mesmas tenham acesso a espaços básicos por falta de estruturas que a comportem, e também na falta de garantia de direitos, como acesso à saúde pois resumem este corpo a uma única demanda, e a inúmeras violências e negligências”. Seguido pela fala da professora Isaura sobre a necessidade de distinguir gordofobia e opressão estética, pois o primeiro recai sobre todos, porém o outro é o retrato de violência, perda de direitos e acesso de alguns corpos.

Fonte: Exposição – Opressões estéticas

 

Foram abordados os múltiplos abandonos, ou condicionamentos que pessoas gordas sofrem no ramo dos afetos, sendo o último a ser escolhido como figura de amor, pela carência de representação estética, que coloca o corpo gordo como não desejável. Refém de discursos de cunho individualista que afirmam que basta querer para alcançar o desejável corpo padrão, vendidos por ilusões capitalistas. O que reforça a necessidade de deslegitimar esses preconceitos tanto na prática quanto nos discursos que naturalizam e perpetuam violência, e assim com informação e quebra de padrões buscar alcançar uma realidade mais leve e sustentável que não oprima corpos.

Na foto: as acadêmicas Camila Melo e Mariana Aires, do curso de psicologia, da Ulbra-Palmas.
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Terapia em dia não é sinônimo de saúde mental: análise sobre o conteúdo Prapretoler

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Atualmente, fazer terapia se tornou sinônimo de resolução de todo e qualquer tipo de problemas ou sofrimento. Dita-se que tudo se resolve com terapia, mas não é bem assim. Há muito para além da terapia: existem contextos, e mais contextos em que o paciente precisará muito mais do que acompanhamento psicológico. Começando do mais primordial que é ter suas necessidades básicas atendidas: segurança alimentar, moradia e pertencimento. Além desses fatores, há o contexto sociocultural no qual os indivíduos estão inseridos, que não acolhe todas as suas singularidades e diversidades que é ditado pela classe dominante e não abarca todas as subjetividades. Nesse contexto, desabrocha o sofrimento, pois vive-se em um estado constante de sobrevivência, inadequação e precariedade.

Afirmar que terapia é suficiente para lidar com todo sofrimento é culpabilizar o sujeito por fracassos que estão intrinsecamente ligados à sua situação socioeconômica, à sua falta de oportunidades e acesso a garantia de seus direitos, e até o seu apagamento por falta de representatividade estética e cultural. Então uma mudança de comportamento ou um pensamento positivo não será o suficiente para lidar com esse sofrimento. Neste cenário sabemos que as condições não corroboram para que o sujeito tenha a oportunidade de um bom desempenho.

 “O sofrimento existencial muitas vezes é tido como subjetivo ou particular, podendo ser resolvido com mudanças comportamentais. Mas é fato que o contexto e o território têm muita influência no desempenho individual, criando condições favoráveis ou desfavoráveis.” (Borges; Gomes, 2024).

Um cotidiano marcado por opressões, violências, precariedade, vulnerabilidade e violações de direitos não se resolve em sessão de terapia, é preciso pensar o indivíduo em seu contexto específico de vida. Quando tornamos a terapia um único dispositivo possível para solucionar e elaborar o sofrimento, estamos a universalizando e a aplicando como se coubesse a todos os seres humanos de forma única. Este pensamento já é parte do problema, pois ao padronizar e normatizar o ser humano, negligencia-se as diversas subjetividades. Este ato é realizado pela branquitude, que coloniza toda e qualquer forma de pensamento que se distancie da sua “norma culta”. A visão neoliberal individualiza o campo da saúde mental, coloca o indivíduo como o único responsável pelo bem-estar e manutenção da sua saúde mental. Por isso, o processo terapêutico passa a ser vazio de sentido, implicado apenas de uma prática colonialista e violência simbólica.

Fonte: Freepik

É preciso pensar o sujeito na sua complexidade e multiculturalidade, reduzindo o paradigma de que existe um sujeito padrão, do qual se extrai a média dos demais. Cada ser humano é único em sua subjetividade, legitimidade e formas de existir. Por mais que se desenvolva técnicas e protocolos, jamais devemos tomar como única métrica para se desenhar todos os comportamentos e formas de existir. A relatividade contextual, o “depende”, devem ser eixos norteadores, pois: depende do contexto, do ambiente, da cultura, da raça, do gênero e da classe social a qual o ser humano é atravessado. Todos os marcos interseccionais, por tanto, a clínica deve ser pensada a: 

“Considerar a pertença racial de todo sujeito em sofrimento, ainda que não seja uma temática de interesse do paciente, pois compreende que ela é um dos elementos que estruturam as dimensões biopsicossocial do indivíduo. É uma clínica atenta ao cotidiano, com vista a identificar crenças e valores que fortalecem um referencial de humano universal, que na verdade tem, raça, gênero e classe. É uma prática que se confronta diariamente com a solidão dos múltiplos abandonos e privilégios experimentados pelas diferentes categorias raciais no Brasil” (Borges; Gomes, 2024). 

Assim, quebrando paradigmas de universalidade e hegemonia que circundam o fazer clínico que enquadra e rotula todos os sofrimentos. É estando sensível ao ser humano único que chega a você, é tornando sua escuta apurada e livre, é desconstruindo certezas, é resistir e renunciar o lugar do suposto saber mais sobre o outro por ocupar o espaço do poder, do detentor do conhecimento, é saber ler o sofrimento e compreender em que crenças e valores eles estão estruturados, é quebrar a ideia de ser humano universal, é ouvir para além dos estereótipos, é emancipar o saber psicológico, torna-lo capaz de atender todas as camadas sociais e culturais é:

“A psicologia precisa assumir seu passado-presente como operadora da colonização das subjetividades enquanto ciência da norma, que nada mais é do que as formas hegemônicas (brancura, cisgeneridade, masculinidade, heterossexualidade, magreza e etc.) convertidas norma de saúde. Para além de mera culpa, a psicologia precisa fazer seu compromisso ético-político e se divorciar da norma como baliza ontológica e etiológica! Não adianta ter discurso alinhado e prática violenta! Afinal, há violências que são cometidas com voz suave e palavras doces. Denunciar a norma como produtor de sofrimento e violência é fundamental para questionar as práticas de ajustamento que recebem cotidianamente roupagens mais coloridas em eufemismos da gramática psi.” (Miranda,2024).

Por isso é necessário o cuidado para não cair na cilada de afirmar que a clínica é o único dispositivo de manutenção de saúde mental enquanto ferramenta da psicologia, para não a colocar a favor de uma ciência que normatiza, coloniza e violenta diferentes subjetividades, produzida para uma lógica de mercado que desconsidera outras formas e construções de saberes.

Referências 

BORGES, Bárbara, GOMES, Francianai. Nem todo mundo precisa de terapia, algumas pessoas precisam apenas experimentar um cotidiano digno. Bahia. 21 Jul. 2024. Instagram: @prapretoler. Disponível em: <link>. Acessado em 18 set. 2024.

BORGES, Bárbara, GOMES, Francianai. Não confunda vulnerabilidade socioeconômica com sofrimento existencial. Bahia. 21 Jul. 2024. Instagram: @prapretoler. Disponível em: <link>. Acessado em 18 set. 2024.

MIRANDA, Deivison. (sem título). Bahia. 20 Ago. 2024. Instagram: @deivisonmiranda_. Disponível em: <link>. Acessado em 18 set. 2024.

 

 

 

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A necessidade de flexibilidade e mudanças de paradigmas na construção de uma vida melhor: Um diálogo com Ailton Krenak

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Pensar no fim do mundo hoje não é uma realidade distante, basta abrir qualquer rede social, ver um jornal, ou sair de dentro de casa. São crises ambientais, guerras, violências desmedidas, consumismo desenfreado dos recursos naturais e daria para listar outros milhares de fenômenos que podem acabar com nossa existência. Todos provocados ou intensificados por nós, humanos. Soma-se a esse cenário caótico uma população extremamente adoecida, fruto desse modo de viver criado por nossa “civilização”, que alimenta a mentira de que “precisamos” de mil e um apetrechos para sobreviver. Nos afastamos das nossas origens, tomamos a natureza como objeto e até a nós mesmos. Tudo que produzimos vira comércio. Nessa perspectiva, esse trecho do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo de Ailton Krenak traz a seguinte reflexão: 

“Acabaram os cientistas. Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria. Antes de essa pessoa contribuir, em qualquer sentido, para abrir uma janela de respiro a essa nossa ansiedade de perder o seio da mãe, vem logo um aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente”, (Krenak, 2020, p.31). 

Ailton Krenak / Fonte: Fliparacatu-Divulgação

Ao ler este trecho, eu me senti descobrindo ouro. Estamos tão submersos em fazer da nossa vida pura mercadoria a serviço do capitalismo neoliberal, que a universidade serve ao mercado da profissão e não ao desenvolvimento intelectual, o conhecimento se tornou mero objeto, não se usa mais ciência para se descobrir mundos, trata-se de como desempenhar melhor, de estatísticas, de rotular, padronizar, embalar e vender tudo, então perde-se aí uma grande oportunidade de redirecionar a busca de conhecimento, o fazer da ciência  uma modificação de paradigmas, para uma mudança significativa de estruturas, como uma ferramenta revolucionária e não para fazer mais do mesmo : aparato artificial para dar mais um tempo de canseira na gente”. E sobre esse pensamento de Krenak quero destacar dois pontos: o primeiro é que ele invoca o fato que essa mesma ciência pode ser usada para salvar o ser humano do caos instaurado na humanidade advindo desse modelo de vida no qual estamos submersos, dessa pandemia de adoecimento mental, dessa catástrofe ambiental, e da pobreza de espírito, seria a hora de usar nossa capacidade criativa, nossos conhecimentos ancestrais para criar novas formas de vida “para abrir uma janela de respiro”. E o segundo é a crítica a esse modo de vida em que tudo se torna commodity, até expressões da alma como: Arte, música, dança, e a espiritualidade que tornam-se mercadorias pois: “Toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria”.

Penso aqui que flexibilidade seria uma ferramenta indispensável numa mudança a nível de mundo, onde vivemos com padrões tão altos e fixados em papéis tão rígidos. O primeiro e mais nocivo dos papéis tendo a dizer que é um pensamento estabelecido no inconsciente coletivo de que todos estamos fazendo ou precisamos fazer algo grandioso, com performances de desempenhos inalcançáveis ditadas pelo neoliberalismo, que só gera sofrimento e adoecimento, e são incansavelmente potencializadas pelas redes sociais e seu imediatismo pois: “…ela pode nos induzir a uma grande ilusão de resultados, de eficácia. Você se dedica a esse ambiente por horas a fio e acho que está movendo alguma coisa, mas na verdade podemos ficar ali a vida inteira e não mover nada.” (Krenak, 2020, p.49), tendo essa fala  como gancho já engato uma segundo ponto que é a ideia que coloca o homem com  funcionamentos para além de sua capacidade física e mental ,vivemos o maior tempo de aceleramento da história, que gera adoecimento em massa, depressão, ansiedade e um excesso de patologização do comum, pois também é uma era que banaliza, exclui e ridiculariza qualquer vestígio mínimo de humanidade, já dizia Byung:

“A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de  desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos de obediência’, mas ‘sujeitos de desempenho e produção’. São empresários de si mesmos, no lugar de ‘proibição’, ‘mandamento’ ou ‘lei’, então ‘projeto’ ou ‘iniciativa’ é ‘motivação’. A sociedade disciplinar é dominada pelo ‘não’. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, pelo contrário, gera depressivos e fracassados.”, (Byung-Chul Han, 2015).

E quando nos propomos a viver como máquinas de desempenho, o homem coloniza até sua condição humana, nesse trecho do livro “A terra dá, a terra quer”, traz um bom desenho de que :  “Contudo, não são todos os animais que conseguimos adestrar. Alguns ficam atrofiados fisicamente – quando se exige do animal um esforço físico para além do que é capaz. Outros ficam atrofiados mentalmente – quando o animal recebe um choque mental violento” (Bispo, 2023, p.7). Então ao exigir do ser humano que física e mentalmente consiga dar conta de toda essa insanidade moderna, é igual a insistir em um colapso de ambas as esferas, não é à toa que vivemos essa epidemia de mentes e corpos atrofiados, vivendo dia após dia como autômatos.

Por fim é necessário ressaltar o papel mais destrutivo o da individualização, em que nos separamos da terra e uns dos outros, nos colocando como únicos responsáveis pela nossa própria existência e bem estar, algo que resulta numa  lógica de auto culpabilização e sentimentos de fracassos pois já sabemos que os níveis onde se deve chegar  tornam-se inalcançáveis, mas a maior sandice da história é o ser humano comprar essa mentira ,pois nós somos sociáveis desde o ventre, não temos capacidades de existirmos sem o contato com o outro, e essa mentira de auto suficiência, de sermos superiores a todas as espécies só resultou no sucateamento, e destruição do maior órgão vivo, o nosso planeta, onde cada ecossistema necessita do outro para manter sua existência, assim retratando nossa realidade, e diria que até superficialmente, pois as questões que aqui trouxe não engloba todo o problema, e nessa perspectiva é que penso, Como mudar essa realidade? o que traria luz a esse túnel escuro?, se não uma flexibilidade, uma nova forma de olhar a nossa existência, questionar os roteiros frouxos, não se contentar em aceitar essa como única condição de vida, é ousar novas formas de viver, é criar novos mundos, ou até povoar velhos mundo com a sabedoria de nossos ancestrais, de forma simples e objetiva Krenak contribui com seu pensamento: “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar. (Krenak, 2020, p. 57)”. 

Espantosamente brilhante essa sugestão de que se esse modelo de existir está sufocante, por que não pensar em um outro? Por que só aceitar? Por que não ir contra essa rigidez de pensamento de que só devemos aceitar, e seguir a maré? O nosso saudoso Nego Bispo que hoje já ancestralizou, contribuiu com seu pensamento otimista, que é necessário confluências: “um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluência, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente” (Bispo, 2023, p.9). É na retomada do contato com o outro que podemos criar e fortalecer uma nova forma de existência, é no contato com o outro que nos transformamos em outro alguém, um contato genuíno e real que desafie os formatos de relações líquidas que nossa sociedade atravessa, e é assim que criaremos novos contextos e escreveremos uma história possível, da qual não sairemos destruídos, evocando mundos diversos que se implodem na existência com o outro, assim Nego Bispo através de um diálogo com Krenak, traz a fala: “procura animar uma perspectiva em que as confluências não dão conta de tudo, mas abrem possibilidade para outros mundos”. (Krenak ,2020, p. 42) e assim tomo de empréstimo a sabedoria ancestral de Nego bispo em: A terra dá, a terra quer:

“Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a 3 confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização… e assim por diante. (Bispo, 2023, p. ). 

Nego Bispo / Fonte: Brasil de Fato

Aqui ele traz de forma genial em sua fala simples, a possibilidade de repovoarmos nossos imaginários, para a sociedade do desempenho o descanso, para o individualismo o coletivismo, para o fim do mundo um recomeço, pois não existe fim na perspectiva de Antônio Bispo dos Santos:

 

“Nós, caminhando pelos penhascos,

atingimos o equilíbrio das planícies.

Nós, nadando contra as marés,

atingimos a força dos mares.

Nós, edificando nos lamaçais,

atingimos a firmeza dos lajeiros.

Nós, habitando nos rincões,

atingimos a proximidade da redondeza.

Nós somos o começo, o meio e o começo.

Existiremos sempre,

sorrindo nas tristezas

para festejar a vinda das alegrias.

Nossas trajetórias nos movem,

Nossa ancestralidade nos guia.”

(Antônio Bispo dos Santos).

Referências 

BISPO, Antônio. A Terra dá, a terra quer. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2019. 

BYUNG-CHUL HAN. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015. 

KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2022. 

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2019. 

(Sem autor definido). Redes da Maré. Somos começo, meio e começo – um até breve a Nêgo Bispo. Rio de Janeiro,2023. Disponível em: <link>.

 

 

 

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A universidade como um sistema de manutenção de desigualdade

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Por Lílian Rosa Ribeiro Nunes (Acadêmica de Psicologia) – lilianrosanunescosta@gmail.com

O homem está mais perto de sua superpotência como jamais antes na historia, ele levanta cedo, toma seu café e parte para sua jornada de trabalho, produz como nunca, dedica horas a fio a seu trabalho de vital importância, habita espaços tão belos como nunca visto antes, nada se compara a tecnologia e arquitetura de seus espaços instragamáveis. As construções decadentes de outras épocas nem se aproximam do esplendor dos majestosos prédios de concreto espelhado, é tão evoluído que suas relações já não lhes tomam tempo, seus afetos são distribuídos em corações em redes sociais, logo ele tem capacidade de nutrir uma grande rede de amigos.

Nunca antes teve homem com tanta influência mundial na palma da mão, nunca mais precisou ler um livro inteiro, logo podia usar esse tempo para produzir, não precisava passar horas escutando conversas, pois sua conversa é na velocidade dois. Tem toda a diversão que precisa ao rolar infinitamente o feed em um milhão de conteúdos, e consequentemente está “dopaminado”; não precisa perder tempo com frivolidades, conta com a mais alta tecnologia para limpar, lavar e cozinhar, e a recompensa por suas árduas horas de trabalho é poder ir a magníficos shoppings que oferecem todas as possibilidades de cores, sons, cheiros e sabores. É a felicidade ao toque magnético do cartão, o super-homem está além da natureza. O calor e o frio não o alcançam. Tem ar-condicionado e aquecedor, enfim o super homem é belo, branco e magro. Não sofre preconceitos, racismo, violência e pobreza. Ele está acima do bem e do mal, alcançou a evolução a nível nunca sonhado antes, moldado e criado à imagem e semelhança do seu senhor sistema capitalista e neoliberal!

Essa é a imagem contemporânea do sucesso. Acredito que se fosse desenhar um modelo ideal de cidadão seria apresentado assim, é um modelo bastante vendido. Hoje o homem vem sendo moldado e projetado para seguir e servir a lógica de mercado, sem se importar com as implicações e adoecimento geral que esse modelo de existir provoca e os sistemas patriarcais e racistas que são perpetuados pelo mesmo. As instituições deveriam ser responsáveis para formar pensadores e criadores de novos sistemas capazes de provocar mudanças em si e em seus contextos de atuações através da formação de pensadores e intelectuais críticos, com profundidade, conteúdo e visão de mundo (aí entra a capacidade de o estudioso ir para além da sua bolha e contexto econômico e social).

Nunca antes na história se teve acesso a tantas áreas e dimensões de forma tão acessível como traz a internet e rede sociais, sem precisar se fixar em paradigmas únicos, mas ainda assim os modelos geradores de saber, as ditas universidades, estão quase que exclusivamente a serviço do mercado de trabalho, com sua atuação e orientação voltadas a formar mão de obra para o mercado. Vivemos um tempo de maior ascensão da universidade no Brasil, nunca antes na história foi tão acessível a entrada nesse mundo acadêmico (não quer dizer também que todos têm acesso, o buraco é muito mais embaixo). Porém a abertura dessas portas não é para formar mais pensadores que se desenvolvem humanamente. Visa mais a formação profissional, a finalidade das universidades tem sido formar mão de obra para o mercado de trabalho.

Essa crítica vem no nível de pensar que se as instituições que eram para criar sujeitos capazes de enxergarem os sistemas que estão inseridos, quais os seus interesses e a serviço de quem estão, nada mais são que massa de manobra replicadoras, que contribuem para a manutenção desse sistema injusto, desigual e precário.

É necessário pensar para além da atuação, sua formação está a serviço de que ou de quem? Serve a qual interesse? Não tenha pressa de chegar lá, se preocupe mais em como vai estar quando chegar. Agucem o senso crítico, embasem suas práticas e não me refiro só a métodos cartesianos. É ser capaz de mergulhar profundamente na realidade do nosso país que é tão rico em sua diversidade. É descolonizar suas teorias e práticas. Resista, faça da sua atuação uma potência e assim contribuir com a construção de um mundo mais justo e humano!

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