Wild – Livre: uma jornada de autoconhecimento

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Com duas indicações ao OSCAR:

Melhor Atriz (Reese Witherspoon), Melhor Atriz Coadjuvante (Laura Dern)

A Dor – tem um Elemento de Vazio –
Não se consegue lembrar
De quando começou – ou se houve
Um tempo em que não existiu –

(Emily Dickinson in “Poemas e Cartas”)

“Wild” (Livre) é baseado no best-seller autobiográfico de Cheryl Strayed, publicado em 2012, dezessete anos depois que a autora vivenciou os eventos narrados no livro. Em 1995, Strayed iniciou uma caminhada solitária pela Costa do Pacífico nos EUA, percorrendo um total de 1,8 mil quilômetros (a pé). O filme estrelado por Reese Witherspoon e dirigido por Jean-Marc Vallée (deClube de Compras Dallas) apresenta de forma não linear os acontecimentos que culminaram nessa jornada e especialmente a viagem solitária e árida de uma mulher fragmentada demais para suportar a vida em um ambiente doméstico.

Há vários precipícios na Costa do Pacífico, mas talvez o que fica mais evidente desde o início é o precipício psicológico vivenciado por Strayed. Um abismo se formou de maneira abrupta em torno de sua aparente sanidade após a morte de sua mãe, a pessoa mais importante da sua vida. E para suportar a vida sem ela, Cheryl descontruiu a pessoa que ela tinha sido até então e iniciou uma queda vertiginosa em um precipício de relações fugazes e drogas, que resultou, inclusive, no fim do seu casamento.

 

“Se sua coragem negar-lhe, vá além de sua coragem.” (Emily Dickinson)

A difícil vivência do luto é um dos pontos evidenciados no filme. Alguns pesquisadores têm tentado definir as diversas fases do luto relatando sobre um período inicial de dormência que pode levar à depressão e, depois, a uma fase de reorganização e recuperação. No entanto, segundo Zisook e Shear (2009) em pesquisas recentes sobre o luto tem-se evidenciado o quão variáveis e fluídas podem ser essas experiências, pois elas podem diferir consideravelmente na intensidade e abrangência a partir de grupos culturais ou, mesmo, de pessoa para pessoa. Acrescentam ainda que até agora nenhuma teoria sobre as fases do luto tem sido capaz de explicar como as pessoas lidam com a dor da perda, por que elas experimentam diferentes graus e tipos de angústias em momentos diferentes, e como ou quando elas ajustam suas vidas sem seu ente querido. Mas, talvez, a resposta para isso esteja no sentido que cada indivíduo dá ao seu luto, assim, por mais universais que sejam alguns sofrimentos e algumas dores, há sempre particularidades que merecem ser observadas.

 

“Depois que me perdi na selvageria do meu luto, encontrei o caminho para fora da floresta”. (Strayed)

 

A decisão de parar, de tentar equilibrar-se novamente mesmo diante do peso da ausência (e as cenas das tentativas de suportar o peso da mochila gigante em suas costas são uma metáfora disso), foi criando forma e se solidificando através da lembrança da filha que ela um dia havia sido. Nessa decisão, as palavras calculadas e vazias do psicólogo que a atendeu não surtiram efeito.

Em seu manual do luto, o psicólogo resumiu em linhas gerais a dor vivida pela paciente, mostrando-lhe a fragilidade do seu estado a partir das suas atitudes. Mas, às vezes, palavras são apenas um amontoado de letras suspensas em um universo sem significado. Nesses momentos, o silêncio pesa, mas acalma. O silêncio, para ela, foi o elemento necessário para manter seus pés em movimento sobre o chão. Foi em busca do silêncio, de manter-se viva (e não simplesmente leve), que ela iniciou a jornada.

“Levei anos para ser a mulher que a minha mãe criou.”(Strayed)

Strayed tinha se transformado em um caos emocional, mas não estava indiferente, nem apática. E, de certa forma, foi isso que tornou possível uma reação. O filme poderia cair muito facilmente em uma mera e vazia encenação de alguma história de superação apresentada em um livro de autoajuda, mas salva-se graças aos recursos de feedback que ajudam a mostrar a natureza fragmentada da personagem em sua busca por reconstruir uma história na qual pudesse viver. Ela não é uma pecadora que se redime de seus pecados ao final, nem um herói solitário que sabe exatamente aonde quer chegar. Sua vida é um amontoado de acontecimentos, muitas vezes confusos e aleatórios. O final de sua caminhada é renovador porque, no silêncio e na solidão, ela conseguiu, finalmente, reconstruir a pessoa que foi, ou a pessoa que na lembrança que ela inventou ela deveria ser.


FICHA TÉCNICA DO FILME

LIVRE

Título Original: Wild
Direção: Jean-Marc Vallée
Roteiro: Nick Hornby, Cheryl Strayed (memoir “Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail”)
Elenco Principal: Reese Witherspoon, Laura Dern, Thomas Sadoski
Ano: 2014
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Para Sempre Alice: Alzheimer e a arte de perder

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Indicado ao Oscar de Melhor Atriz: Julianne Moore

Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Atriz – Filme Categoria Drama (Julianne Moore)

“Meus ontens estão desaparecendo e meus amanhãs são incertos. Então, para que eu vivo? Vivo para cada dia. Vivo o presente… Esquecerei o hoje, mas isso não significa que o hoje não tem importância.”  Para Sempre Alice, Lisa Genova

O filme é baseado no livro homônimo da neurocientista e escritora Lisa Genova e tem como personagem principal Alice (Julianne Moore), uma mulher de 50 anos, bonita, bem sucedida na carreira (como professora de Linguística na Universidade de Columbia) e na vida pessoal (três filhos crescidos, um marido atencioso), convidada constantemente para eventos científicos para apresentação das ideias defendidas em seu livro “De Neurônios a Pronomes”. No universo de Alice, o entendimento das palavras e de como elas ganham sentido e significado em nosso cérebro compõe a base de toda a sua trajetória como pesquisadora. Assim, ao começar esquecê-las, mesmo que aparentemente em forma de simples lapsos de memória, a sua vida, antes tão direcionada e objetiva, começa a ser encoberta por um estranho e crescente borrão, tirando-lhe não apenas a coerência, mas a forma.

 

A doença de Alzheimer (DA) é clinicamente dividida em dois subgrupos de acordo com seu o tempo de início. Dado antes dos 65 anos (DA de início precoce), se caracteriza por um declínio rápido das funções cognitivas. Esses casos são mais raros, correspondendo a 10% do total, e observa-se um acometimento familiar em sucessivas gerações diretamente relacionado a um padrão de transmissão autossômico dominante ligado aos cromossomos 1, 14 e 21 (SENI, 1996; ENGELHARDT et al., 1998 apud TRUZZI & LAKS, 2005).

 

Alice foi fazer os exames temendo deparar-se como uma doença como o Câncer, então, depois de algumas consultas e acompanhada pelo marido (a pedido do seu médico), recebe o diagnóstico devastador: tinha Alzheimer e, como estava no subgrupo de portadores da doença “antes dos 65 anos”, teve que dolorosamente concluir que suas funções cognitivas seriam afetadas rapidamente. Além disso, havia, também, uma grande possibilidade de seus filhos virem a ter os mesmos sintomas no futuro, pois nessas situações a doença é transmitida geneticamente.

Ironicamente, a inteligência de Alice e sua vida dedicada à produção de conhecimento contribuíram para atrasar o diagnóstico, já que ela foi capaz de pregar peças em seu cérebro e encontrar artifícios para mascarar sua doença, sustentando a efetividade dos processos mentais por mais tempo. Assim, quando o problema veio à tona, a estabilização tornou-se menos efetiva e a deterioração cognitiva mais rápida.

 

“Eu sempre fui muito guiada pelo meu intelecto, pelo meu modo de falar, pela minha articulação. E agora vejo as palavras na minha frente e não consigo me expressar. Não sei quem sou, não sei o que mais vou esquecer.” (Alice)

O devastador entendimento de que aquilo que a define é o que lhe será bruscamente tirado marca o início da complexa jornada de Alice. O rápido progresso da doença e suas consequências para a família é retratada de forma sensível e direta. Vimos como alguns tentam se esquivar de responsabilidades, como outros tentam manter a esperança em uma possível cura e há aqueles (como Lydia, sua filha mais nova, interpretada por Kristen Stewart) que escolhem permanecer por perto e aceitar que ainda há uma Alice, mesmo que as lembranças de quem ela fora não reflitam a pessoa que ela é.

 

“Sou uma pessoa vivendo no estágio inicial de Alzheimer. E, assim sendo, estou aprendendo a arte de perder todos os dias.” (Alice)

 

O que há de mais especial no filme é a interpretação de Julianne Moore, pois através das suas expressões, especialmente do seu olhar, e o tom da sua voz, vimos Alice pouco a pouco desaparecendo ou, quem sabe, abrigando-se em algum universo ainda não explorado de sua mente. Com ela, iniciamos o processo de esquecimento, a estranha arte de perder, vimos suas tentativas de manter as palavras na memória a partir do uso de jogos em seu smartphone, de suportar entender a brevidade da vida ao lembrar-se das histórias que ouvia de sua mãe:

“Quando eu era bem nova, na segunda série, minha professora falou que borboletas não vivem muito, algo em torno de um mês, e fiquei tão chateada. Fui para casa e contei para a mamãe. E ela disse: ‘É verdade. Mas elas têm uma linda vida’. E isso me faz pensar na vida da minha mãe, na da minha irmã. E, de certa forma, na minha vida.” (Alice)

E tudo isso é, por vezes, devastador porque a coloca frente a frente com o estágio mais latente da fragilidade humana: a inevitável constatação de que somos breves, frágeis e vivemos cercados por medo. Há um constante desamparo em Alice, ou melhor, em todos nós, mesmo que nossas habilidades cognitivas tentem criar mecanismos para nos manter firmes em meio a um universo em movimento, sem delimitações claras, talvez um universo indiferente (como diria Carl Sagan).

Abaixo, na íntegra, o discurso de Alice em sua última palestra. Um fato interessante é que ela havia escrito um texto extremamente científico sobre o Alzheimer, mas sua filha a orientou a dizer algo sobre o que, de fato, sentia e não uma mera descrição de sintomas, assim ela o fez:

“A poetisa Elisabeth Bishop escreveu: ‘A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério’. Eu não sou uma poetisa. Sou uma pessoa vivendo no estágio inicial de Alzheimer. E assim sendo, estou aprendendo a arte de perder todos os dias. Perdendo meus modos, perdendo objetos, perdendo sono e, acima de tudo, perdendo memórias.

Toda a minha vida eu acumulei lembranças. Elas se tornaram meus bens mais preciosos. A noite que conheci meu marido, a primeira vez que segurei meu livro em minhas mãos, ter filhos, fazer amigos, viajar pelo mundo. Tudo que acumulei na vida, tudo que trabalhei tanto para conquistar, agora tudo isso está sendo levado embora. Como podem imaginar, ou como vocês sabem, isso é o inferno. Mas fica pior.

Quem nos leva a sério quando estamos tão diferentes do que éramos? Nosso comportamento estranho e fala confusa mudam a percepção que os outros têm de nós e a nossa percepção de nós mesmos. Tornamo-nos ridículos. Incapazes. Cômicos. Mas isso não é quem nós somos. Isso é a nossa doença. E como qualquer doença, tem uma causa, uma progressão, e pode ter uma cura. Meu maior desejo é que meus filhos, nossos filhos, a próxima geração não tenha que enfrentar o que estou enfrentando. Mas, por enquanto, ainda estou viva. Eu sei que estou viva. Tenho pessoas que amo profundamente, tenho coisas que quero fazer com a minha vida. Eu fui dura comigo mesma por não ser capaz de lembrar das coisas. Mas ainda tenho momentos de pura felicidade. E, por favor, não pensem que estou sofrendo. Não estou sofrendo. Estou lutando. Lutando para fazer parte das coisas, para continuar conectada com quem eu fui um dia. 

‘Então, viva o momento’, é o que digo para mim mesma. É tudo que posso fazer. Viver o momento. E me culpar tanto por dominar a arte de perder. Uma coisa que vou tentar guardar é a memória de falar aqui hoje. Irá embora, sei que irá. Talvez possa desaparecer amanhã. Mas significa muito estar falando aqui hoje. Como meu antigo eu, ambicioso, que era tão fascinado em comunicação. Obrigada por essa oportunidade. Significa muito para mim.”  Alice

 

Lydia: O que eu acabei de ler, você gostou?
Alice: O quê?
Lydia: Sobre o que era?
Alice: Amor. Sobre amar.
Lydia: Isso mesmo, mãe. Era sobre o amor.

Em “Para sempre Alice”, vimos como uma pessoa, em um dado contexto, reage à sua própria deterioração, como ela avalia cada fase desse processo (quando ainda tem condições para isso) e observamos as decisões que ela é capaz de tomar quando o futuro é, de fato, totalmente incerto ou certo de uma forma muito ruim. Em algumas das decisões de Alice podemos fazer um paralelo com o filme Amour, em que a morte passa a ser uma possibilidade menos angustiante do que imaginar uma vida na qual você não se reconheça.

Alice aprendeu a ser autossuficiente desde muito cedo, afinal sua mãe e irmã morreram quando ela era bem jovem, e seu pai era um alcóolatra. O pensar a fazia existir. Daí quando sua mente se torna um labirinto e as palavras deixam de formar discursos ou, até mesmo, meras sentenças, quando não há como resgatar lembranças da memória, pois nela esse conceito estava caótico ou totalmente perdido, fica aquela sensação estranha que, talvez, a Alice tenha deixado de existir. Porém, o filme também é sobre esperança, por isso que, ao final, quando vimos uma Alice quase sem voz, balbuciando com dificuldade algumas palavras, mas entendendo (ainda que parcialmente) o significado de um texto recitado por sua filha, tem-se um vislumbre de alguém que ela foi e isso, naquele momento, é tudo.

 

TRUZZI, Annibal; LAKS, Jerson. Doença de Alzheimer esporádica de início precoce.Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 32, n. 1,   2005 .   Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832005000100006&lng=en&nrm=iso. access on  20  Jan.  2015.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832005000100006.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

PARA SEMPRE ALICE

Título Original: Still Alice
Direção: Richard Glatzer, Wash Westmoreland
Roteiro: Lisa Genova (livro), Richard Glatzer, Wash Westmoreland
Elenco Principal: Julianne Moore, Kristen Stewart, Alec Baldwin, Kate Bosworth
Ano: 2014
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Alan Turing e “O Jogo da Imitação”: o que significa ser humano?

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Com oito indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Morten Tyldum), Melhor Ator (Benedict Cumberbatch), Melhor Atriz Coadjuvante (Keira Knightley), Melhor Roteiro Adaptado (Graham Moore), Melhor Direção de Arte, Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora Original.

 

“O que eu sou? Sou uma máquina ou um ser humano? Um herói de guerra ou um criminoso?”

“O Jogo da Imitação” conta a história de um dos mais importantes cientistas do século XX, Alan Turing, responsável por descobertas em áreas que vão desde a computação até a biologia molecular. É o gênio que criou uma máquina, precursora dos computadores, capaz de quebrar o código da máquina alemã Enigma, ajudando os Aliados a vencer a Segunda Guerra Mundial, o que diminuiu de forma significativa muitas tragédias desenhadas em mapas de ataque alemães e, principalmente, segundo alguns historiadores, o tempo de duração da guerra. Com a publicação de vários artigos e os trabalhos realizados na Segunda Guerra, Turing revolucionou o campo da criptografia e seus métodos contribuíram com o desenvolvimento da área de Inteligência Artificial.

 

Alan Turing, Fotografado por Elliott & Fry studio em 29 de Março 1951

 

O herói de guerra e gênio da matemática morreu sozinho em sua casa (aos 41 anos –  1952) em meio às suas invenções, fórmulas e cianureto. Isso depois de ter sua mente e seu corpo destruído por um processo de castração química. Por quê? Por ser homossexual e, assim, não conseguir “controlar” seus desejos tão humanos em uma época e em um país (Inglaterra) que tal conduta era tida como uma conduta criminosa.

Até 1974 as conquistas de Turing durante a Segunda Guerra eram desconhecidas e foi apenas em 2013 que o “perdão” lhe foi concedido pela Rainha da Inglaterra. Nas palavras do ministro da Justiça, Chris Grayling, “Turing merece ser lembrado e reconhecido pela sua fantástica contribuição aos esforços de guerra e por seu legado à ciência. É um tributo apropriado a esse homem excepcional”.

 

 

Segundo o Diretor Morten Tyldum [1], duas grandes questões permeiam o filme: “O que significa estar vivo? O que significa ser humano?”.

Para mim Turing é tanto um filósofo quanto um matemático, porque suas ideias lidam com o que significa pensar. Só porque alguém ou alguma coisa pensa de forma diferente de você, isso não significa que ele(a) não esteja pensando.” (TYLDUM [1])

 “O Jogo da Imitação”, a expressão que deu nome ao filme, é o título de um dos capítulos de um famoso artigo de Turing, publicado na revista Mind [2]. O artigo propõe inicialmente examinar uma questão que permeia toda a sua obra:

‘As máquinas podem pensar?’ Isso deve começar com definições do significado dos termos “máquina” e “pensar”. As definições podem ser enquadradas de forma a refletir tanto quanto possível o uso normal das palavras, mas essa atitude é perigosa, pois se o significado das palavras “máquina” e “pensar” são definidos pela maneira como elas  são comumente usadas é difícil concluir que o entendimento do significado é a resposta para a pergunta… Em vez de tentar uma definição desse tipo, proponho substituir a questão por uma outra… A nova forma do problema pode ser descrita em termos de um jogo que chamamos de ‘jogo de imitação (Turing, [2])

Essa, então, é a proposta: um computador que fosse capaz de fazer o “jogo da imitação” de tal forma que em uma conversa entre um ser humano e uma máquina, uma terceira pessoa (que estivesse participando da conversa em outra sala) não conseguisse distinguir entre a máquina e o humano. Posteriormente, esse jogo foi denominado Teste de Turing.

 

 

O filme é uma adaptação do livro “Alan Turing: The Enigma”, escrito pelo matemático Andrew Hodges. O diretor Tyldum apresenta o filme como um quebra-cabeças formado a partir da junção (não linear) de três fases da vida de Turing:  quando ele estudou na Escola de Sherborne, na adolescência, e conheceu Christopher Morcom; na Segunda Guerra, quando ele liderou um grupo de gênios que desvendou o código da máquina alemã Enigma; e quando foi preso pelo crime de praticar condutas homossexuais.

“Sabe por que as pessoas gostam de violência? É porque faz você se sentir bem. Humanos acham a violência profundamente satisfatória. Mas retire a satisfação e o ato se torna vazio.” (Alan Turing – Filme)

Ao retratar a adolescência de Turing em 1928 (quando ele tinha 16 anos), é apresentado Christopher Morcom, seu único amigo na escola de Sherborne e seu primeiro amor (ainda que platônico), cuja morte prematura em 1930 marcou profundamente os rumos que Turing daria às suas pesquisas. Conforme relatado em [3], Alan tornou-se obcecado em desvendar a natureza da consciência, a sua estrutura e suas origens. Ele desejava entender o que tinha acontecido com Christopher, considerando um aspecto essencial: sua mente. […] E qualquer área do conhecimento que pudesse ter relevância nesse contexto tinha que ser explorada. Assim, ele mergulhou em trabalhos relacionados à biologia, filosofia, metafísica, lógica matemática e, até mesmo, mecânica quântica. Começou a entender, como natural, pensar sobre a mente como uma máquina inteligente, cujos processos podem ser modelados e previstos a partir do uso da lógica matemática.

Christopher Morcom e Alan Turing em 1928

 

Christopher deu a Turing um propósito, ainda que a ideia de um primeiro amor não vivido tenha contribuído ainda mais para amplificar alguns aspectos da sua personalidade, muitas vezes identificados como negativo, como sua arrogância e seu distanciamento das pessoas. Talvez o distanciamento fosse uma forma de sobreviver, já que seus pensamentos poderiam ser considerados complexos demais para a maioria das pessoas e sua homossexualidade era algo abominável no contexto em que vivia.

 

 

A segunda fase da vida de Turing é apresentada no período da Segunda Grande Guerra (1939-1945). Nessa fase, tem-se o encontro de Turing com Joan Clarke (interpretada por Keira Knightley), uma estudante de matemática de Cambridge. Foi a única mulher que trabalhou como criptonalista em sua equipe. De uma família de eruditos, conseguiu, em parte, romper algumas barreiras impostas às mulheres na época. Talvez a proximidade entre ela e Turing tenha relação com o fato de ambos estarem à margem da sociedade da época, como se eles não se enquadrassem no contexto.

Durante os anos que viveram em meio a códigos e a pressão da guerra, tornaram-se grandes amigos, inclusive, como relata Joan Clarke em [4], em uma das viagens que fizeram, Alan, que não era propenso a contatos físicos, beijou-a e a pediu em casamento. Considerando que na época uma mulher tinha que, por obrigação social, casar-se e um homem não podia revelar-se homossexual, a questão do casamento entre amigos pareceu algo coerente a ser feito. Mas Alan não conseguiu levar isso adiante e o noivado foi rompido, mas não a amizade. De certa forma, Joan foi uma das poucas pessoas que Turing deixou se aproximar a ponto de enxergá-lo sem a máscara da genialidade ou da arrogância.

 

“A Guerra se arrastou por mais dois solitários anos. E a cada dia mostrávamos nossos suados cálculos. Todo dia decidíamos quem vivia ou morria. Todo dia ajudávamos os Aliados a vencerem e ninguém sabia… E o povo fala da Guerra como uma batalha épica entre civilizações. Liberdade contra tirania. Democracia contra Nazismo. Exército de milhões sangrando no chão. Frotas de navios afundando no oceano. Aviões lançando bombas do céu. A Guerra não era assim para nós. Éramos só meia dúzia de entusiastas numa vila ao sul da Inglaterra.”(Alan Turing – Filme)

A Segunda Guerra Mundial foi o marco de uma grande mudança: o vencedor não seria o mais forte, mas sim o mais preparado. E estar preparado envolvia a intersecção entre dois universos até então praticamente disjuntos: ciência e tecnologia. O conhecimento científico que antes estava preso aos muros da universidade, na cabeça de alguns pesquisadores, poderia, de fato, ser transformado em tecnologia capaz de mudar os rumos da história. E foi isso que Alan Turing fez. Mostrou que os artigos publicados antes mesmo dele completar 24 anos não eram uma série de linhas imaginárias ou conjuntos puramente abstratos povoando sua complexa mente, suas ideias poderiam ser usadas para criar máquinas ou definir métodos que resultariam, dentre outras coisas, no fim de uma guerra.

A equipe que trabalhou com ele, especialmente Joan Clarke, teve um papel importante em todo o processo mas, sem a máquina criada por Turing, que no filme foi denominada Christopher (em alusão ao seu primeiro amor), possivelmente os códigos da Enigma demorariam ainda mais a serem desvendados, o que prorrogaria a guerra e suas terríveis consequências. Ter nas mãos o quadro estratégico dos ataques alemães também significou ter que tomar decisões complexas. Como disse Turing no filme, “às vezes não podemos fazer o que nos faz sentir bem, nós temos que fazer o que é lógico”.

 

 

A terceira parte do quebra-cabeças é Turing no final da vida, aos 41 anos de idade, com dificuldade em fazer uma palavra-cruzada, com medo de ser afastado daquilo que lhe restou: suas máquinas e seus códigos. Segundo [5], “Turing admitiu abertamente a sua homossexualidade e como castigo o estado ofereceu-lhe uma escolha entre a prisão ou um tratamento hormonal (a castração química). Ele escolheu a segunda opção, que previsivelmente provocou danos em seu corpo e em sua mente. A condenação também custou ao herói de guerra suas habilitações de segurança e o impediram de viajar para os EUA e outros países”.  A interpretação de Benedict Cumberbatch trouxe à tona toda a fragilidade de Turing. De certa forma, sua mente sempre tão dinâmica e repleta de dados, parecia vazia e sem alicerce. Essa tragédia, que elimina um universo único, que é um ser humano, Turing não conseguiu evitar. A ignorância e a intransigência de certas pessoas, baseadas em determinadas leis, foram maiores que sua inteligência e espírito.

 

Alan: Conseguiu o que quis, não foi? Um trabalho, um marido, uma vida normal.

Joan: Ninguém normal poderia ter feito aquilo. Hoje, pela manhã, eu estava em um trem que passou por uma cidade que não existiria se não fosse graças a você. Comprei uma passagem de um homem que, possivelmente, estaria morto, se não fosse graças a você. Li em meu trabalho que todo um campo de investigação científica só existe graças a você. Agora, se você desejava ser normal… Posso te prometer que eu não iria querer isso. O mundo é, precisamente, um lugar infinitamente melhor por você não desejar ser normal.

Joan foi amiga de Turing ao longo de toda a sua breve vida e, também, sua confidente.  A forma como esse relacionamento é conduzido no filme é um dos seus principais méritos. A cena em que vimos um Alan quebrado e confuso, longe de seu habitual orgulho e do controle de suas habilidades cognitivas, questionando se era um inadequado, ou se não era “normal” o suficiente para ser feliz, é um dos momentos mais sensíveis do filme.

Alan Turing aos cinco anos de idade

 

Voltando às duas questões iniciais: “O que significa estar vivo? O que significa ser humano?” Não temos essa resposta no filme, nem creio que dar essas respostas era a pretensão do diretor. As questões levantadas já são suficientes para nos fazer refletir sobre uma parte importante da história, mas especialmente sobre questões relacionadas àquilo que consideramos certo ou errado, humano ou monstruoso, moral ou imoral.

Por muito tempo a Inglaterra relutou em conceder o perdão a Turing, pois dizia que era inapropriado conceder o “perdão” a quem “foi devidamente condenado pelo o que então era um delito”. A palavra “perdão” considerando, nesse contexto, o sujeito que perdoa e aquele que é perdoado carrega em si uma triste ironia. Estão perdoando alguém cujo crime foi ser humano, que buscava se sentir vivo, que usava sua mente complexa para tentar entender como pensamos e, considerando que isso seja algo maravilhoso, como podemos construir máquinas que possam ter a sua própria maneira de pensar.

 

[1] http://www.theguardian.com/science/2014/nov/14/imitation-game-alan-turing-benedict-cumberbatch

[2] Turing, A.M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, 433-460. Disponível em: http://www.loebner.net/Prizef/TuringArticle.html

[3] http://www.nndb.com/people/952/000023883/

[4] My Engagement to Alan Turing by Joan Clarke (later Joan Murray). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB2e9R7bXCk

[5] PICKETT, Brent. Alan Turing, Natural Law & Homosexuality. Dez, 2014. Disponível em: http://www.thecritique.com/articles/decoding-apologies-to-alan-turing-is-post-mortem-pardon-meaningless/

 

Trailer:

 

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FICHA TÉCNICA DO FILME

O JOGO DA IMITAÇÃO

Título Original: The Imitation Game
Direção: Morten Tyldum
Roteiro: Andrew Hodges (book), Graham Moore (screenplay)
Elenco Principal: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode
Ano: 2014
REFERÊNCIAS

[1] http://www.theguardian.com/science/2014/nov/14/imitation-game-alan-turing-benedict-cumberbatch

[2] Turing, A.M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, 433-460. Disponível em: http://www.loebner.net/Prizef/TuringArticle.html

[3] http://www.nndb.com/people/952/000023883/

[4] My Engagement to Alan Turing by Joan Clarke (later Joan Murray). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB2e9R7bXCk

[5] PICKETT, Brent. Alan Turing, Natural Law & Homosexuality. Dez, 2014. Disponível em: http://www.thecritique.com/articles/decoding-apologies-to-alan-turing-is-post-mortem-pardon-meaningless/

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Boyhood – Da Infância à Juventude

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Richard Linklater), Melhor Ator Coadjuvante (Ethan Hawke), Melhor Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette), Melhor Roteiro Original (Richard Linklater) e Melhor Edição. 

“As pessoas viajam para admirar a altura das montanhas, as imensas ondas dos mares, o longo percurso dos rios, o vasto domínio do oceano, o movimento circular das estrelas e, no entanto, elas passam por si mesmas sem se admirarem.”

Santo Agostinho, Confissão X [1]

Boyhood é uma sensível e arriscada experiência realizada por Richard Linklater.  O filme não é sustentado por um enredo com grandes reviravoltas ou espetaculares efeitos, nem tem um final que fecha todas as arestas, na verdade, não é possível identificar quais arestas devem ser fechadas, já que o filme, como a vida, é uma experiência contínua, sem delimitações precisas ou entendimento a priori de quando tudo acaba.

O que acompanhamos na tela são os 12 anos da vida de um garoto (dos 6 aos 18 anos), e as mudanças que o tempo pode provocar na relação dele com as pessoas e na sua percepção dos acontecimentos. O que torna esse filme tão singular é a maneira como Linklater o construiu, filmando as cenas em 12 anos, considerando as mudanças de cada personagem/ator, das mais visíveis, como o crescimento ou envelhecimento natural, até as mais sutis, como o sentido que cada sujeito tem do contexto vivido.

Linklater já tinha lidado com a questão da passagem do tempo na construção de outros filmes, vide a trilogia Before, que conta a história de um casal aos 23 (Antes do Amanhecer), 32 (Antes do Pôr-do-Sol) e aos 40 anos (Antes da Meia-Noite), acompanhando a idade cronológica dos atores. Em outras sagas também vimos os atores crescerem juntamente com os personagens, como é o caso de Harry Potter ou de algumas séries de TV. Mas em nenhuma dessas situações vimos isso acontecer em um espaço tão curto, ou seja, nas 3 horas de duração do filme.  E é a possibilidade de ver esses atores/personagens modificando-se no decorrer da história que a torna tão especial e um dos motivos que fez essa obra de Linklater ser tão aclamada.  Mas não foi só isso…

O tempo é uma das principais variáveis do filme, e para que sua passagem fosse assimilada de forma profunda, Linklater utilizou-se de músicas (Coldplay, Foo Fighter, Lady Gaga, Arcade Fire…), tecnologias (iMac G3, Xbox 360, Wii, Facebook, Facetime…), política (eleição do Obama), cinema/livros (Harry Potter, Toy Story, Star Wars, Homem Aranha…) e, especialmente, um roteiro que tornou o amadurecimento de cada pessoa do filme crível, sem exageros.

Mason: Não existe magia de verdade no mundo, não é?

 

Mason (o excelente Ellar Coltrane) é filho de pais separados (Patricia Arquette e Ethan Hawke, ambos em interpretações marcantes) e tem uma irmã mais velha (Lorelei Linklater). Sua mãe carrega a responsabilidade de criar sozinha duas crianças e ainda ter que fazer uma graduação e tentar uma nova profissão, enquanto isso, o pai dos meninos viaja pelo mundo, sem emprego ou local fixo. A passagem do tempo dá a mãe experiências desastrosas em dois relacionamentos com homens abusivos e alcóolatras, e torna o pai, aos poucos, um homem mais responsável, ainda que menos interessante. Mason é a nossa ligação com essa família e, através dos seus olhos, vamos solidificando a ideia de que a vida é por si só  um acontecimento extraordinário.

Mason: Então de que adianta?
Pai: O quê?
Mason: Não sei, tudo.
Pai: Tudo? De que adianta? Não faço ideia. Ninguém sabe. Estamos só vivendo, sabe? Pelo menos você está sentindo algo. Aproveite, isso passa. Você envelhece e não sente tanto, você cria resistência.

 

Há várias abordagens na psicologia que tenta explicar o desenvolvimento humano. Desde as teorias de Piaget até a vertente sócio-histórica de Vygotsky. O desenvolvimento pode ser equiparado, em um dado nível, a um processo de transformação. Segundo [2], as transformações concernentes à vida de uma pessoa estão relacionadas a um conjunto complexo de fatores: “a etapa da vida em que a pessoa se encontra; as circunstâncias culturais, históricas e sociais nas quais sua existência transcorre; e as experiências particulares privadas de cada um e não generalizáveis a outras pessoas”. É claro que essas experiências são intensificadas na infância e na adolescência, pois é nessa época que ocorrem as transformações físicas mais intensas, o que é refletido nas transformações psicológicas. Por isso, ao vermos as transformações dos pais e dos filhos no filme, verificamos que em um dado ponto, os adultos tornam-se mais presos a um padrão de comportamento, não há mudanças consistentes, enquanto Mason e a irmã estão no auge de intensas transformações.

Mason: Parece que todo mundo está em algum lugar intermediário. Sem realmente vivenciar nada.

O filme inicia-se com Mason, aos seis anos, observando o céu e a sensação que temos no decorrer do tempo é que, para ele, tudo parece ser transitório, mas há um sentido constante de apreciação da beleza da vida. E o desejo de apreender o momento, ainda que pareça que ele sabia que isso seja impossível, o faz iniciar-se na fotografia. Nas palavras de Cartier-Bresson, entendemos que “fotografar é prender a respiração quando todas as faculdades convergem para captar a realidade fugaz”. É essa inconstância da vida e, ao mesmo tempo, a ideia de que as coisas parecem girar em torno de algo incompreensível e, por isso mesmo, sem sentido, que dá um tom de melancolia à história. Diferente de uma ideia niilista, em que tudo tanto faz e ponto, parece permanecer em Mason uma sensação de que mesmo se todos os caminhos, de fato, não levem a nada, ainda é interessante fazer o percurso.

Nicole: Sabe quando dizem ‘aproveite o momento’? Acho que é ao contrário. É como se o momento nos aproveitasse.
Mason: Eu sei, é constante. Os momentos são… Parece que sempre é o agora.

[1] AGOSTINHO, Santo. Confissões, IN-CM, Lisboa, 2001. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/agostinho_de_hipona_confessiones_livros_vii_x_xi.pdf

[2] OLIVEIRA, Marta Kohl de. Ciclos de vida: algumas questões sobre a psicologia do adulto . Educação e Pesquisa, Brasil, v. 30, n. 2, p. 211-229, ago. 2004. ISSN 1678-4634. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/27931/29703>. Acesso em: 12 Jan. 2015. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022004000200002.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

BOYHOOD: DA INFÂNCIA À JUVENTUDE

Título Original: Boyhood
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater
Elenco Principal: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Lorelei Linklater and Ethan Hawke
Ano: 2014

Alguns Prêmios:

Golden Globes: Melhor Filme – Drama, Melhor Direção, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
AFI Awards: Filme do ano.
Austin Film Critics Association: Melhor Direção, Melhor Filme, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
Berlin International Film Festival: Urso de Prata (Melhor Direção)
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A Culpa é das Estrelas: quando o infinito é breve

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“Você me deu uma eternidade dentro dos nossos dias numerados, e sou muito grata por isso.”(Hazel)

O filme “A culpa é das estrelas”, baseado no livro homônimo de John Green, conta a história de Hazel, uma garota de dezesseis anos, diagnosticada com câncer aos treze, e seu encontro com Augustus (Gus), com quem compartilha a experiência de viver a emoção do primeiro amor mesmo diante da constatação cruel e sem artifícios da brevidade da vida.

É complexo, sob qualquer perspectiva, entender como o câncer pode afetar psicologicamente um adolescente, pois, para isso, tem-se que considerar especialmente as rápidas mudanças físicas, emocionais e sociais que acontecem nesse período.  Segundo Zebrack [1], teorias do desenvolvimento humano sugerem que, apesar de todos os pacientes com câncer experimentarem um conjunto comum de interrupções relacionadas ao seu cotidiano, essas experiências são sentidas e assimiladas de forma diferente dependendo do momento da vida que foi diagnosticada a doença.

Para a maioria dos pacientes [2], o diagnóstico e o tratamento do câncer resultam em interrupções nas atividades diárias, em uma contínua dor física, na diminuição da energia (ânimo), em alterações da aparência física, em limitações na capacidade funcional, alterações nas relações sociais e, especialmente, no confronto com a mortalidade, em reflexões relacionadas às questões existenciais universais e mudanças na percepção sobre si mesmo, sobre o futuro e o mundo.

“A depressão não é um efeito colateral do câncer, é um efeito colateral de se estar morrendo.”(Hazel)

É nesse universo de dúvida, medo e raiva latente que se encontra Hazel (Shailene Woodley), cuja força para encarar o tratamento de um câncer em estágio avançado parece ter como base o entendimento de que se deve olhar para a vida sem grandes expectativas. Hazel compreende que poderá morrer ainda jovem, além disso, pensa que assim como foi breve a sua vida, breve também serão as lembranças que os outros terão dela.

Para suportar a ideia da brevidade, tenta encarar o mundo com um certo cinismo, afinal, segundo ela, tudo tende a acabar e nada é especial, nem Aristóteles ou Cleópatra, muito menos ela. Assim, se até a nossa espécie está fadada à finitude e ao esquecimento, não será ela que tentará semear jardins fantasiosos de lembranças que, logicamente, não terão força para resistirem ao tempo.

“Eu tenho medo de ser esquecido.” (Gus)

Por isso que o encontro inusitado com Gus (Ansel Elgort) em uma sessão de terapia em grupo foi tão impactante. De certa forma, quando ele externou para o grupo seu medo (de ser esquecido) e levou-a a falar pela primeira vez (de forma espontânea) naquele ambiente que tanto a aborrecia, trouxe à tona muito da angústia que é viver constantemente tendo que considerar seu próprio fim iminente. Talvez Hazel, ao considerar o fim de todos como uma das poucas verdades que permanece constante, tenta fazer com que a ideia da morte seja assimilada de forma menos traumática, não importando se o sujeito tenha 8, 18 ou 80 anos, já que o tempo é relativo, logo complexo demais para ser mensurado.

“Tudo o que fizemos, construímos, escrevemos, pensamos e descobrimos vai ser esquecido e tudo isso aqui vai ter sido inútil.” (Hazel)

Mas entre o discurso e o pensamento há um grande abismo. É possível até que, em alguns momentos, um seja a refutação do outro, ainda que, também, funcione como uma forma de proteção. Se a terapia em grupo irrita Hazel, por não considerar o método, nem a forma como é conduzido (já que, no filme, quem faz isso é um sobrevivente frustrado), afirmar que sua existência não deve ser motivo para despertar lembranças duradouras pode ser uma forma de rebeldia, a única possível no contexto em que se encontra.

“Estou morrendo, mãe. Vou morrer e deixar você sozinha, […], e você não vai mais ser uma mãe, e eu sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer a respeito.” (Hazel)

Mas, aos poucos Hazel começa a demonstrar toda a confusão emocional que carrega dentro de si. Oscila na forma de aceitação do “esquecimento”, algumas vezes o considera uma dádiva, já que libertará as pessoas que a ama de um grande sofrimento, e outras vezes entende que tal fato reflete uma realidade terrível, já que parece determinar que sua breve vida tenha sido em vão. Os pais ficam impotentes diante do seu sofrimento e isso traz danos psicológicos profundos para todos os envolvidos.

Segundo [3], o diagnóstico de câncer em uma criança ou adolescente muitas vezes acarreta em crise familiar. A família experimenta o choque e a tristeza ao acompanhar o dia-a-dia da criança diante de uma doença potencialmente fatal. Assim, a atenção psicossocial nesses casos deve compreender o atendimento psicológico e social de apoio à criança ou adolescente e sua família durante todo o tratamento do câncer, inclusive há uma preocupação especial para que este acompanhamento ocorra por algum tempo nas famílias que vivenciaram o luto. Só o tempo pode suavizar a dor, mas um acompanhamento adequado pode ajudar a criar mecanismos para suportar a ausência e o vazio que somente esse tipo de sofrimento tão avassalador pode provocar.

“Estou apaixonado por você, e sei que o amor é apenas um grito no vácuo, e que o esquecimento é inevitável, e que estamos todos condenados ao fim, e que haverá um dia em que tudo o que fizemos voltará ao pó, e o sei que o sol vai engolir a única Terra que podemos chamar de nossa, e eu estou apaixonado por você.” (Gus)

O diferencial desse filme, considerando tantos outros sobre essa temática (e.g. Love Story – 1970, Tudo por Amor – 1991), é a linguagem utilizada por John Green no livro e que foi tão bem conduzida e refletida no roteiro. Assim, embora tendo como base um assunto tão denso, a história de amor entre Hazel e Gus é um sopro de delicadeza e esperança.

 

Os olhos da Hazel conduzem a história. Neles são refletidas as várias camadas de emoções que são apresentadas na tela. É possível entender, por exemplo, que ao perceber a si mesma como uma “granada”, ela toma a decisão que parece ser a mais lógica, ou seja, manter-se distante. Por isso Gus é tão especial, ele consegue enxergá-la profundamente, percebe o medo em suas palavras cortantes na primeira sessão de terapia, mas também tem um vislumbre da sua sensibilidade e inteligência.

Por mais que a doença tenha lhe tirado tantas formas de alegria, tenha alterado seu cotidiano, transformado o sonho de independência que permeia a adolescência em um borrão longínquo e sem sentido, Hazel ainda consegue inebriar-se através da imaginação.

“[…] Me apaixonei do mesmo jeito que alguém cai no sono: gradativamente e de repente, de uma hora para outra.” (Hazel)

A menina que tem como melhor amigo um autor que nem a conhece, que ama os livros e vê na permanência dos seus personagens em seu coração uma forma, ainda que inconsciente, de suportar a brevidade da vida é a pessoa pela qual Gus se apaixona. E, longe desse fato dar ao filme uma conotação piegas, o amor entre os adolescentes é uma forma demasiada humana de mostrar que podemos conseguir criar novos sentidos para as inúmeras variáveis que compõem o universo de significados que carregamos conosco.

“Alguns infinitos são maiores que outros… Há dias, muitos deles, em que fico zangada com o tamanho do meu conjunto ilimitado. Eu queria mais números do que provavelmente vou ter.”(Hazel)

O título do livro/filme, “a culpa é das estrelas”, vem de um diálogo extraído da peça “Júlio César”, de Shakespeare: “A culpa, caro Brutus, não está em nossas estrelas, mas em nós mesmos, que somos subordinados”. Mas, usando outro trecho de Shakespeare, é possível criar uma dúvida na origem dessa culpa, já que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha desvendar nossa vã filosofia”. Assim, não parece ser incoerente supor que algumas dores e sofrimentos são impostas ao sujeito sem que haja qualquer explicação ou culpa, tirando-lhe qualquer autonomia ou controle. Assim, para Hazel, Gus e tantos outros que precisam conviver com diagnósticos terríveis e com um conjunto limitado de dias, fica a estranha sensação de que é preciso aprender a viver morrendo, por mais paradoxal e absurdo que isso seja.

Segundo Elisabeth Kübler-Ross [4] em seu livro “Sobre a morte e o morrer”, as emoções e sensações que são vivenciadas diante da morte iminente podem ser sistematizadas em cinco estágios: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação. Vimos alguns desses estágios representados no filme, mas considerando que Hazel e Gus são adolescentes, essas manifestações também ocorrem de uma maneira diferenciada.

Gus, por exemplo, mesmo tendo tido câncer e tendo a possibilidade sempre alta de um possível retorno, tem os mesmos sonhos heroicos que muitos de nós tivemos em sua idade. Há sempre um universo de possibilidades na adolescência e isso é evidenciado através de suas palavras, de suas ações, ou seja, de sua postura diante da vida.

Gus emana vida. É como se a vida nele fosse tão intensa que por isso mesmo não coubesse em seu corpo. Sua relação com Hazel permitiu que ele compartilhasse esse excesso de vida, contribuindo para que ela percebesse um aspecto que eles tinham em comum: mesmo que suas vidas fossem definidas em um pequeno intervalo de tempo, o universo de cada um ainda era infinito. Talvez alguns infinitos sejam maiores que outros, como provou o matemático russo Georg Cantor, mas isso não significa que sejam melhores ou mais intensos. As relações que são construídas no espaço de uma vida são o que tornam cada vida única e, quem sabe, infinita.

 

[1] Zebrack BJ. Psychological, social, and behavioral issues for young adults with cancer. Cancer. 2011 May 15;117(10 Suppl):2289-94.

[2] Rowland JH. Developmental stage and adaptation: adult model. In: HollandJC, RowlandJH, eds. Handbook of Psychooncology. New York, NY: Oxford University Press. 1990; Chapter 3: 25–43.

[3] Improving outcomes in children and young people with câncer. Disponível em: http://guidance.nice.org.uk/CSGCYP/Guidance/pdf/English

[4] KUBLER- Ross, E. “Sobre a morte e o morrer”: 8ª Ed., Martins Fontes. São Paulo, 1998.

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

A CULPA É DAS ESTRELAS

Título Original: The Fault in Our Stars
Direção: Josh Boone
Roteiro: Scott Neustadter, Michael H. Weber, John Green (autor do livro)
Elenco principal: Shailene Woodley, Ansel Elgort, Nat Wolff, Laura Dern, Sam Trammell, Willem Dafoe
Ano: 2014

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