Quero ser John Malkovich

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Podemos afirmar que o sujeito é verdadeiramente aquilo que aparenta ser?

Articulando as discussões da Psicanálise e o filme “Quero ser John Malkovich”, quais forças veladas operam em nossas vidas de modo a nos determinar e definir nossas ações e comportamentos? Indique uma cena (ou mais de uma cena) que materializa esta situação de fragilidade, nomeando personagens em articulação com aspectos conceituais. Lembre-se de refletir sobre as funções de EGO, ID, SUPEREGO e, fundamentalmente, o INCONSCIENTE.

Resposta:

Não. O sujeito é complexo, uma polifonia de vozes (já observado no século XIX por Dostoiévski), e, como diz Lacan, numa clara crítica ao cartesianismo de Descartes, o homem pensa onde não é e é onde não se pensa. O que transparece na superfície do indivíduo é parte do que ele, conscientemente, deixa ser visto. Mas, em uma observação mais aprofundada são nítidas as contradições entre aquilo que a pessoa aparenta ser e o que verdadeiramente é. Essas contradições residem no inconsciente do sujeito, pois se as contradições viessem à tona em sua totalidade no consciente, muito provavelmente o homem se fragmentaria.

Primeira Cena – Marionete
http://youtu.be/LU19Rqy1s9Y

A primeira cena do filme traz uma metáfora da projeção do inconsciente do personagem Craig. Nela a marionete executa uma espécie de dança do desespero. O ápice da cena se dá quando a marionete olha para o alto e “vê” quem tem domínio sobre seus movimentos (Craig), assim ela busca o espelho e nele observa, em vários aspectos, como sua figura é vista pelo outro, a triste figura que ele é e, principalmente, vislumbra a figura que poderia ser. Não suportando o que enxerga, ele destrói o espelho, mas mesmo com a destruição de sua imagem, ele ainda existe. Assim, a marionete pode ser representada pelo EGO consciente, que está preso às regras da sociedade, família etc representados pelos fios que a movem através da autoridade do SUPEREGO (o títere). Em meio a tudo isso, há pulsões que residem no inconsciente do indivíduo, representadas pelo desespero e angústia da marionete.

Na cena seguinte, tem-se o “diálogo” entre Craig e o macaco. Esta cena solidifica a ideia da profunda angústia vivida pelo personagem. “Você não sabe a sorte que tem de ser um macaco, pois consciência é uma maldição terrível. Eu penso, eu sinto, eu sofro”. O seja, por maior que fosse o dom que ele tinha (em relação às questões profissionais, por exemplo), a figura na qual ele estava preso, ou seja, o homem em que ele se transformou, não tinha como seguir adiante, só lhe restava a triste consciência da sua limitação e o cansaço do seu corpo exposto na decadência da sua própria figura. Essa figura decadente é fruto dos recalques às pulsões advindas do seu inconsciente.

Um dos personagens mais intrigantes do filme é a Maxine, dado o enorme poder de manipulação que ela exerce sobre os demais personagens. No entanto, ao invés de discorrer comentários sobre a sua força, é interessante a interpretação de uma possível projeção do seu parceiro ideal (uma junção do homem e da mulher desejados) tendo como base a figura do John Malkovich quando este está sob a influência de Lotte. Pode-se observar que tal junção é o ideal para Maxine, já que ela tem a sua disposição, em um mesmo ser, o corpo do homem e o “olhar” de uma mulher. De igual forma, há em Lotte o desejo de ser para a Maxine essa simbiose “homem e mulher”, que é sentida no momento em que ela é John Malkovich. Daí tem-se a frustração da personagem, pois ao sair do Malkovich, ela retorna sua condição de ser “somente mulher”. Evidencia-se o recalque que é trazido à tona no momento que, sendo John Malkovich, ela dá vazão aos seus mais recônditos desejos, rompendo tais barreiras.

A fila que se forma para “ser John Malkovich” representa um anseio coletivo de ser o outro, quando a pessoa que você é não reflete aquilo que você queria ser. Algumas indagações emergem desse fato: a vontade de ser um outro é universal? Em algum ponto da vida, talvez haja um desejo de desapegar-se do “ego”, não para ser um outro, mas para buscar um “eu” que pela sua própria complexidade é inatingível? Por mais bem resolvida que uma pessoa seja, há sempre uma falta?

Em uma das últimas cenas do filme, pressionado pelo Dr. Lester e por Lotte, Craig tem que decidir entre a vida de Maxine e a sua vida como John Malkovich. Nesse embate, ele percebe que até sua figura como Malkovich é frágil, incompleta, falha. Assim, quando questionado se é Malkovich, ele grita “não sou John Malkovich”. Então, nesse momento, ele deseja separar-se de seu objeto de desejo. Até então, a figura de Malkovich funcionava simbolicamente como um “falo” e separar-se dele, numa atitude de castração, seria seu pior pesadelo. No momento em que o poder advindo do objeto de desejo perde um pouco o sentido pela consciência de sua limitação, ele sai e volta a ser Craig. Isso porque, ao final, ele entende que sempre foi o Craig, mesmo no corpo do outro, ainda era ele.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

QUERO SER JOHN MALKOVICH

Diretor: Spike Jonze
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: John Cusack, Cameron Diaz, Catherine Keener, Orson Bean;
Ano: 1999
País: EUA, Inglaterra
Gênero: Drama

Nota: Questão apresentada pela professora Alice na disciplina de Psicologia Clínica I (2008/1) no curso de Psicologia do CEULP/ULBRA

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procurando nemo

Análise das contingências do filme “Procurando Nemo” e sua utilização no setting terapêutico

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“Procurando Nemo” conta a história de dois peixes-palhaço, Marlin e Nemo, pai e filho. O início da história apresenta a base de sustentação de muitas das motivações e medos dos personagens principais, pois a Coral (o peixe-mãe de Nemo) morre ao tentar proteger seus filhotes. Marlin estava junto, mas não conseguiu proteger Coral, nem as crias. Somente uma ova sobreviveu ao ataque. Nemo, o sobrevivente, além de ser criado apenas pelo pai, nasceu com uma das nadadeiras diferenciadas (era bem menor que o normal). Agregando esse fato à questão de ser o sobrevivente de uma tragédia, eis o cenário ideal para uma criação superprotetora e insegura. No primeiro dia de escola, Nemo – ao discutir com seu pai – vai em direção ao alto-mar e é capturado por um mergulhador. Daí inicia-se a jornada do pai a procura do filho.

Nessa jornada, Marlin conta com a ajuda de um peixe chamado Dory, uma criatura otimista, engraçada e com sérios problemas de memória. Enquanto isso, Nemo passa a viver em um aquário no consultório do dentista que o capturou. Nesse aquário faz novos amigos e estes tentam lhe ajudar a voltar para o pai e a se livrar da sobrinha do dentista (uma criança mimada que costuma matar seus pobres peixes). O desafio, o ato de bravura, a dor, a perda, a necessidade de superação, a amizade e o amor entre pais e filhos formam a tônica que fizeram desse filme um sucesso de público e crítica. Com “Procurando Nemo”, a Pixar ganhou o Oscar de melhor animação e fez um conto belíssimo sobre as buscas que travamos dentro do oceano de significados que compõe cada um de nós.

As contingências encontradas no filme e que podem ser relevantes em um contexto clínico serão dispostas a partir da contingência de Três Termos:

S —  R  –>  S, onde:

• S indica estímulos ambientais.
• S antes do R – ambiente antes da ação.
• R indica resposta (ou comportamento).
• O traço, uma probabilidade de a resposta ocorrer.
• A seta uma certeza que haverá conseqüência.
• S depois da seta – o ambiente depois da ação.

As contingências apresentadas acima podem ser usadas em diversos contextos clínicos, a saber:

– Suponhamos uma situação em que os pais enviam o filho para a terapia por acreditarem que a criança não tem limites. Depois das entrevistas realizadas, de alguns encontros com a criança e seus pais, a psicóloga entende que a criança está apenas realizando ações relativa a sua idade e o que ocorre é que os pais em questão são muito protetores, pois já perderam um filho em um trágico acidente. Como tal situação envolve uma criança cujos pais estão reforçando a incidência de um comportamento rebelde justamente por não darem espaço à criança de vivenciar coisas comuns a sua idade, é interessante que a psicóloga – em um dos encontros – convide os pais para participar do processo e mostrar o filme para eles e a criança.  A analogia para tal situação do filme é clara, nesse aspecto é até interessante que não haja maiores explicações por parte da psicóloga. Mas que, a partir da exposição do filme, sejam trazidas à tona certas variáveis de controle que possam ser usadas para uma mudança do comportamento tanto dos pais, quanto da criança.

– A vida cotidiana de pessoas extremamente desconfiadas não deve ser das melhores, pois se há uma desconfiança extrema, então todas as decisões tendem a cair sobre a própria pessoa, já que estas não confiam no outro o suficiente para compartilhar certos aspectos da vida. Um ponto interessante do filme é a amizade que surge entre Marvin e Dory mesmo sendo tão diferentes. Tal diferença até contribui para que eles possam vencer os desafios que lhes são apresentados. Nesse contexto, a cena em que Marvin tem que deixar uma difícil decisão nas mãos de Dory é emblemática, pois ali ele prova que, finalmente, confiou nela. A ideia que fica é a de que a busca dos dois é um trabalho em equipe, uma jornada conjunta. Tal ideia pode ser muito bem utilizada no setting terapêutico.

– Um ponto divertido no filme, ainda que quase trágico, é a luta dos três tubarões contra o desejo de comer peixe. Ali é mostrada o quão complexa é a fuga do que se acredita ser “sua real natureza”. Talvez o pior tipo de preconceito seja aquele que a pessoa carrega dentro de si por achar que está presa a um tipo de comportamento ou a um estereótipo. Compreender que a maior luta que se trava não é com o outro, mas sim consigo mesmo, é um desafio extremo. As variáveis necessárias para a mudança de comportamento, consideradas em função de um dado ambiente, têm que provocar o entendimento da contingência pelo próprio indivíduo. Ou seja, muitas consequências negativas não são percebidas pelas pessoas, é como se as respostas das quais essas se derivaram não tivessem um link entre si ou, melhor, que tais links não fossem claros para o indivíduo que os provocou.

– Muito interessante também a questão de relacionarem o Marlin a um comediante em potencial por ele ser um peixe-palhaço. Essa passagem do filme é uma maneira lúdica de mostrar à criança questões relativas a determinados preconceitos, por exemplo, de credo, classe social etc. Não precisamos ser simplesmente aquilo que nosso contexto histórico-social nos impõe, pois apesar de ser histórico e social, o indivíduo também é reflexo de suas contingências, do comportamento que tem no tempo presente. E isso é algo que deve ser considerado em qualquer análise comportamental, ou seja, que a força de um passado não pode ser fator decisivo para engessar o presente e subtrair o futuro.

De uma forma geral, essas situações apresentadas corroboram com a ideia de que filmes podem ser usados para o entendimento de contingências. Mesmo histórias lúdicas ou metafóricas podem, em um dado nível, contribuir muito para que o indivíduo entenda certas operações capazes de estabelecer determinados comportamentos. Ao invés do terapeuta apontar diretamente tais conseqüências que advém de determinados comportamentos do sujeito, é mais apropriado promover a descoberta disso pela própria pessoa. Essa descoberta pode ser construída a partir de várias situações e, nesse ínterim, a história de um filme ou de um livro pode ser uma delas.

REFERÊNCIAS:

OLIVA, V. H. S.; VIANNA, A.; NETO, F. L.. Cinematerapia como intervenção psicoterápica:características, aplicações e identificação de técnicas cognitivo-comportamentais. Disponível em: http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol37/n3/138.htm. Último acesso: 27/06/2010.

SKINNER, B, F. O comportamento verbal. São Paulo: Cultrix, 1978.

VANDENBERGHE, Luc. A Análise Funcional. In: M. Z. S. Brandão; F. C. S. Conte; F. S. Brandão; Y. K. Ingberman; V. L. M. Silva; S. M. Oliani. (Org.). Sobre Comportamento e Cognição. Contingências e Metacontingências: Contextos Sócio-verbais e o Comportamento do Terapeuta. 1 ed. Santo André, SP: ESETec, 2004, v. 13, p. 62-71.

 

FICHA TÉCNICA DO FILME:

PROCURANDO NEMO

Título original: Finding Nemo
Diretoção: Andrew Stanton, Lee Unkrich
Roteiro: Andrew Stanton, Bob Peterson, David Reynolds
Ano: 2003
País: EUA/ Austrália
Gênero: Animação

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Em nome de Deus

Em nome de Deus

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Reflexão sobre o filme “The Magdalene Sisters” (Em nome de Deus)

E Jesus disse “quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. E, um a um, os homens foram se retirando, a começar pelos mais velhos. Então, Jesus perguntou “onde estão os homens que te condenavam?”.

Na década de 1960, período retratado pelo filme, ocorria, entre outras situações, a liberação sexual e a discussão sobre os direitos das mulheres.  Em meio a um país extremamente católico e assustado com a estranha mudança de valores que se instalava no mundo, tradicionais famílias irlandesas, tentavam no silêncio e na força de dogmas, manter a estabilidade e o equilíbrio que a falta de domínio e o excesso de perguntas podem provocar. Isso porque vivemos em pequenos mundos repletos de ignorâncias bem elaboradas, protegidos por frágeis e místicas rotinas.

O medo do homem e a sua necessidade de manter-se alienado em consistentes universos de estupidez são, muitas vezes, a causa que o leva a cometer as mais variadas formas de atrocidades. O filme retrata de maneira clara o quanto o homem tenta separar o mundo em duas vertentes bem definidas, o bem e o mal. Um bem e um mal interpretado segundo determinadas regras de grupos que sustentam as verdades tidas como absolutas naquele espaço e tempo. É interessante observar que, nesse ínterim, a vida na terra tem pouca importância diante de um céu ou de um inferno eternos. Em nome dessa eternidade é que a vida passa a ter um significado menor e o sofrimento passa a ser um fator relevante no alcance do etéreo.

No filme, o pecado está no mais fraco. Ou seja, numa sociedade de homens, a mulher direta ou indiretamente, é culpada pelos atos de fraquezas que contradizem as regras de um Deus produzido e consumido por toda a comunidade. Se a mulher é culpada a priori e se os fatos reais não podem ser considerados em seu favor, dada a existência do ato que a tornou impura e pecadora, então só lhe resta uma vida inteira de sofrimentos na busca de uma remissão divina.  Essa é a verdade que imperava naquela época, naquele lugar (e em muitos outros), então, como em outras situações ocorridas na história, a maioria prefere seguir um Deus e uma religião que apresenta verdades duras, mas simples e claras, do que suportar a incerteza e a insegurança de interpretar o mundo segundo sua própria ótica e princípios.

Tudo é irônico no filme. Desde o título até a denominação da congregação das freiras (irmãs da Misericórdia). Nisso é interessante observar o quanto as palavras perdem o sentido, ou, o quanto toda uma sociedade pode aceitar absurdos cruéis como verdades incontestáveis. Jesus, nesse contexto, talvez tenha sido, para os articuladores de muitas religiões e seitas, o mais paradoxal dos profetas. Isso porque sua vida é indubitavelmente um exemplo de misericórdia, perdão e amor ao próximo. Um próximo que é refletido a partir de uma fé baseada no respeito à vida e ao individuo. É essa misericórdia que não existe nas freiras do filme, que choram ao relembrar de um filme visto na infância, e são totalmente apáticas perante o sofrimento real do próximo. Mas, a explicação para esse fato recai invariavelmente no fator da “vantagem interpretativa”. Isso porque o próximo é um igual. Para Hitler e o povo alemão, por exemplo, os judeus não eram humanos, logo não eram próximos. Para as freiras, as mulheres que foram enviadas para o seu “lar Madalena” não eram mulheres dignas de Cristo, eram mulheres que precisavam do sofrimento para alcançar a salvação e suportar ver a face misericordiosa de um Deus que se alimentava da dor.

Outro ponto importante no filme é a forma como as mulheres vão ressaltando alguns traços de sua personalidade na medida em que o desespero e o sofrimento aumentam. No entanto, é complexo e um tanto estúpido afirmar que a bela é má porque roubou o colar “telefone” da moça que tinha distúrbios mentais, que desejar a morte da serviçal da casa é monstruoso, dado o fato que esta só cumpria com seus deveres, que a freira teve uma vida repleta de regras e absurdos e, assim, em nome da instituição pela qual ela vivia, perdeu a capacidade de discernimento sobre o bem e o mal. Ou seja, em certos aspectos, justifico a passividade do povo alemão diante do genocídio que ocorreu em seu país, defendo teses sobre a obscura submissão do povo judeu no período histórico em que eles quase foram dizimados, passo a acreditar que misericórdia é atirar a primeira pedra, sem a vergonha de ser o último a acreditar em um Deus que seja contrário a vida na terra. Enfim, a falta de empatia, o desejo doentio pelo poder e o medo podem reduzir ao absurdo as instituições sociais e religiosas e levar a refutação dos nossos maiores valores: a vida e a liberdade.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

EM NOME DE DEUS

Título Original: The Magdalene Sisters
Diretor: Peter Mullan
Roteiro: Peter Mullan
Elenco: Geraldine McEwan, Anne-Marie Duff, Nora-Jane Noone, Dorothy Dufft;
Ano: 2002
País: Reino Unido/ Irlanda
Gênero: Drama

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Acordo para a morte

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[…] eu quis matar sem casuística, matar para mim, só para mim! A esse respeito eu não queria mentir nem a mim mesmo! Não foi para ajudar minha mãe que eu matei – isso é um absurdo! Eu não matei para obter recursos e poder, para me tornar um benfeitor da humanidade. Absurdo! Eu simplesmente matei; matei para mim, só para mim. […] Eu precisava saber de outra coisa, outra coisa me impelia: naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho, como todos, ou um homem? Eu posso ultrapassar o limite ou não! Eu ouso inclinar-me e tomar o poder ou não! Sou uma besta trêmula ou tenho o direito de…

– Matar? Tem o direito de matar? (p. 428, Crime e Castigo, Dostoiévski)

Década de 80 (século XX)

Paraíso

6h

A professora acorda para mais um dia de trabalho. Executa a rotina matinal da maioria de nós: toma banho, escova os dentes, escolhe uma roupa básica, faz seu café da manhã. Depois pega o material da aula, pois várias crianças na faixa dos 10 anos de idade a esperam. Uma lembrança faz nascer um sorriso em seu rosto. Finalmente estava livre. Poderia andar pelas ruas, sair com suas amigas, quem sabe até encontrar um verdadeiro amor. Balançou a cabeça e falou em voz alta: “antes de passeios, amigas e amor, tenho um grupo agitado aguardando por mim.”. Lembrou-se do dia em que um grupo de meninas veio em sua casa (quando ainda estava casada) para lhe dar as boas vindas como professora em seu colégio. Uma delas nada falou, ficou em silêncio olhando-a encantada. Por algum motivo, lembrou-se desse episódio, de que algumas daquelas meninas poderiam um dia ser também professora. Mas ainda havia muito tempo para isso. Agora, precisava apressar-se, não poderia atrasar, não para seus alunos.

5h

O dia amanheceu, mas isso não fez muita diferença para ele, afinal não dormiu, não pregou os olhos uma única vez. Estava excitado com a ideia que iria executar em breve. Já sabia o trajeto que ela fazia todas as manhãs, assim quando fechava os olhos poderia até vê-la acordando, colocando a blusa preta (sua preferida), a calça jeans (na qual ficava linda) e realizando os preparativos para o trajeto que mudaria sua vida para sempre. Ele ainda podia sentir o cheiro dela em algumas das coisas daquela casa vazia. Esse cheiro impulsionava-o ainda mais a seguir seu destino. Era um homem com um destino, uma sina, um grande objetivo. Enquanto pensava essas coisas, amolava lentamente uma faca. Em um dado momento, o brilho da faca fez com que erigisse em torno dele e das coisas uma linha tênue que dava a tudo um aspecto distorcido. Perdeu o foco, parou os movimentos. Olhou no relógio. O tempo passou rápido, precisava partir, precisava esperá-la.

6h20

A menina tentava abrir os olhos com dificuldade. Era sempre um suplício acordar cedo, essa era a única coisa ruim em ter ido para a quinta-série. Pela insistência da mãe, levantou-se. Depois de tomar café (e sempre tomava muito café, apesar de seus 10 anos) começou a encontrar algum sentido em estar de pé naquele horário, então lembrou-se do óbvio: amava ir para aula e hoje sua professora preferida estaria com eles durante toda a manhã. Era tanta coisa para aprender. Sonhava em fazer contas com letras, em ler todos os livros da biblioteca, em vencer a timidez na hora de recitar a tabuada ou uma poesia. Queria ser professora, como aquela que estaria ensinando-lhe esta manhã, mas, para isso, precisava conseguir falar em público, respirar normalmente em meio às pessoas, suportar o olhar dos outros. A voz da sua mãe trouxe-lhe de volta. Vestiu a saia com pregas profundas na altura do joelho, a blusa com o nome de santo, calçou a franciscana e caminhou em direção ao colégio, que ficava quase em frente a sua casa.

6h30

Já estava ficando com câimbra por permanecer na mesma posição, escondido no pilar da parede da escola. Tentou manter a respiração tranquila, pensou no que estava prestes a fazer. Sentiu-se imenso, quase um deus.

6h50

O sorriso ainda permanecia em sua face enquanto caminhava em direção ao colégio. Cada passo a aproximava das crianças, de seu ofício, da sua nova vida. Errou ao se casar tão jovem e com um homem que, de fato, não conhecia bem. Mas agora isso era passado. O tempo é outro. A vida é outra. Nesse momento, passava diante da escola que ficava na esquina que antecedia seu colégio. Já podia ouvir a algazarra das crianças preparando-se para a oração que era feita todas as manhãs ali.

6h55

Ela sentiu uma pontada forte nas costas. Não entendeu de onde veio, nem o que foi aquilo. A pontada foi tão aguda que a fez cair de joelhos no chão. Foi então que ela o viu e quando uma nova pontada fez-se presente em seu corpo teve noção do que acontecia, havia sangue. Muito sangue. E era seu sangue. Com as mãos tentou deter as diversas investidas daquela coisa pontiaguda em seu corpo. Mas nada impedia os cortes em suas mãos, em seus braços, em seu rosto, em seu peito. Caiu.

6h55

Ali, escondido na pilastra, parecia mais uma sombra. Sentiu o cheiro dela. Ergueu a faca. A primeira atingiu-lhe as costas, ela caiu. Não o viu. Mas quando ela estava se levantando, ele atingiu-lhe novamente, e mais uma vez, várias vezes, perdeu até a conta. Só tinha a necessidade de romper cada parte do seu corpo. Ela ainda tentou se proteger com as mãos, mas de nada adiantou. Atingiu-a nas mãos, no rosto, viu o sangue manchar sua pele perfeita. Ela caiu. Pouco se via de sua face, do seu corpo, era o resto do que fora alguém em uma poça de sangue. Ele correu.

6h55

A menina, já no colégio, observou um dos colegas sair da sala. Pensou em sua coragem em fazer isso sendo que a professora já devia estar se aproximando da porta. O menino sumiu, possivelmente tenha ido subir no muro, lá dava para ver uma escola menor do outro lado da rua. Ela ficou lá, sentada, quieta, mesmo com toda a algazarra das demais crianças à sua volta.

7h05

Enquanto corria, ele viu um menino o observar de cima de um muro do colégio. Criança estúpida. Mas, não pôde parar para pensar, precisava correr. E correu. Sentia-se imenso. Sentia-se quase um deus.

7h10

Alvoroço no colégio. Gritos. Algumas professoras choravam em desespero. Ela permaneceu quieta, sentada em sua carteira, à espera da sua professora. Mas, ela não veio naquela manhã. Nem na outra. Ela nunca mais voltou à sala de aula. A professora morreu.

 

Na outra manhã, não teve aula. Os alunos foram levados em fila para a Igreja que ficava próxima ao colégio. A menina ainda tentava entender o que representava tudo aquilo. Enquanto caminhava com as outras crianças em direção à igreja, lembrou-se que passou próximo ao local do crime e viu a terra molhada de sangue. Sangue não seca como água. Sangue fica.

Ao entrar na igreja, ouviu sons diversos: choro, gritos, música, sussurros. Teve medo. Todas as crianças da turma da professora assassinada iam prestar sua última homenagem, ao menos foi isso que lhes comunicaram na sala de aula. Cada criança aproximou-se do caixão. Ela foi a última, era uma criança muito alta, daí sempre ficava por último nas filas. Antes de alcançar o caixão, ouviu alguém dizer: “tão linda, parece que está dormindo”. Então, ela finalmente se aproximou. Mesmo com medo, ergueu os olhos devagar. Observou, primeiro, as mãos – tão brancas e com tantos cortes. Depois viu o rosto repleto de pequenas manchas. Ela pensou: “não parece que está dormindo, não há minha professora nesse corpo cheio de cortes e sem cor”.  Lembrou-se do dia da visita em sua casa, ela lhe ofereceu bolo e um copo de suco; da alegria nas aulas, quando não havia poça de sangue e às 7h ouvia-se o farfalhar dos cadernos. Sentou-se na primeira fileira da igreja. De lá, via o caixão. “Minha professora morreu”, pensou. E esse pensamento permaneceu em sua mente por muito tempo.

 

Minha professora, cujo nome iniciava-se com LUZ, foi assassinada de forma brutal. Lutou pela vida até o limite de suas forças. Talvez tenha sonhado, como muitos de nós, em ter um bom trabalho, filhos, uma casa, um amor. Talvez tenha sido feliz, como alguns de nós, em certos períodos da vida. Mas há uma certeza: não lhe foi permitido acompanhar os alunos da quinta série na aprendizagem das continhas com letras, nem constatar, depois de um dado tempo, que alguns deles tenham se tornado professores, como ela.

O homem que a matou, morreu há alguns dias.  Seu corpo foi velado perto de casa. Teve uma morte sem aviso prévio, mas sem brutalidade. Um ataque de coração fulminante o apagou.  Se ele sentiu remorso, dor, medo, sofrimento em todos esses anos que viveu em um mundo sem ela, não sei.

Ele não é um personagem de Dostoiévski. Talvez para a maioria dos crimes não haja redenção, pois se para cada crime deve haver um castigo, para o processo de redenção presume-se a existência do remorso.

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A Imortal

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“é como se fosse imortal porque esta morte que o olha não sabe como o há-de matar” (Saramago, As Intermitências da Morte, p. 154)

Rua Tocantins, Paraíso do Tocantins, estado do Tocantins – local onde por muito tempo viveu uma imortal. Alguém que conheci na infância, no tempo em que acreditava que as pessoas eram como peças de barro, logo poderia moldá-las e recriá-las à minha imagem e semelhança. Sim, tinha crenças grandiosas na infância e uma esperança digna dos loucos. Essa senhora, que já era velha quando a conheci, parecia viver com uma quantidade reduzida de variáveis, não parecia refletir sobre o sol, as estrelas, o movimento do mundo, o ser e o nada, apenas andava sobre o chão, batia em seu neto (se achasse necessário), comia sua farofa, alimentava suas galinhas, mostrava-nos sua palmatória.

Na infância tinha um clube, que obviamente foi criado embasado em um objetivo grandioso: transformar a rua, a redondeza, o Paraíso em um local de paz, justiça e alegria. Mal sabia eu, naquela época, que um local assim seria o inferno para minha constante agitação mental. Um dos ideais heróicos do clube, que se intitulava “Laços da Amizade”, era criar mecanismos para sensibilizar o coração de pedra da minha vizinha, a imortal.

Hoje, ao abrir o caderno de anotação do grupo, vejo que esse ideal permanece lá, ingênuo e presunçoso como a maioria dos ideais e, consequentemente, não finalizado.  A minha vizinha imortal continuou sua rotina de olhar para o mundo a partir do seu conjunto de variáveis (que na minha presunção inicial descrevi como reduzido). O neto cresceu e se foi. Apenas a filha continuou por perto.

Os anos deslizaram-se através do tempo e a velhice da vizinha, que antes era observável de forma natural, passou a ter um reflexo assustador. Víamos um corpo na cama, no sofá, na cadeira. Um corpo opaco, quase um mero esqueleto. Minha fraqueza e, talvez, meu egoísmo não me permitiram visitá-la, tinha as palavras de Saramago em minha mente: “não há nada no mundo mais nu do que um esqueleto”. E acho que temia ver minha vizinha desnudada, nítida, sem as capas que fizeram dela o “coração de pedra” que me provocava calafrios na infância.

O livro “As Intermitências da Morte”, de Saramago, começa com a absurda constatação de que em um determinado dia “ninguém morreu”. Quando o li pela primeira vez lembrei-me da minha vizinha, de quantas vezes meu pai e vários outros da rua foram chamados para seu suposto “último momento”. Quantos foram aqueles da Rua Tocantins, do Paraíso do Tocantins, que participaram ativamente dos “últimos momentos” da minha vizinha e depois partiram antes dela. Viraram pó e, acredita-se, descansam em paz. A paz que eu estranhamente almejei na infância, mesmo que sentisse medo do céu por achá-lo diferente do meu Paraíso.

Penso na Morte com seu velho caderno de anotações, amarelado pelo tempo, com os nomes de todos nós. Talvez minha vizinha fosse especial e tenha tido seu nome destacado em amarelo. Então, o nome se confundiu com a folha envelhecida do caderno da Morte e, assim, ela foi esquecida e seu corpo foi se desfazendo sobre o chão enquanto que, pareceria mais natural, se isso ocorresse embaixo da terra.

Hoje a Morte, numa dessas coincidências da vida, deve ter deixado seu caderno cair e, se pudesse ousar mais em minha dedução, diria que a página que ficou aberta sobre o chão era a tal página na qual foram escritas as letras destacadas em amarelo. Mesmo que sua anotação estivesse quase imperceptível, o recado em uma última tentativa de ser notado sussurrou para a Morte o nome da minha vizinha.

Neste domingo quente de um Paraíso que parece só existir em minha mente, minha vizinha morreu. E assim mais uma verdade da minha infância foi refutada: morreu uma Imortal.

Que ela descanse em Paz… (ainda que hoje eu não tenha a mínima ideia do sentido dessa palavra)

Foto: Irenides Teixeira

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A loucura tende acabar?

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Entrevista¹ da psicóloga, escritora e professora Elisabeth Roudinesco ao programa Roda Viva da TV Cultura em 31 de maio de 1999.


Na entrevista cedida ao programa Roda Viva pela psicóloga, escritora e professora da École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, Elisabeth Roudinesco, foram apontados diversos temas sobre a Psicanálise, a Psicologia e alguns dos seus maiores expoentes (Lacan e Freud). Como a entrevista foi realizada em 1999, as perguntas tiveram como foco o final do século. No inicio da entrevista, Roudinesco já diz que o final do século XX está marcado pela depressão, assim como o final do século XIX foi marcado pela histeria. Segundo suas palavras, a “normalização” é o cerne desse final de século, especialmente a tendência a uma homogeneização perigosa. Isso é visível depois do fim do comunismo e a massificação política e econômica estimulada por uma globalização em seu estágio mais latente e pelo poderio econômico dos EUA. Quando questionada sobre o quão revolucionário foi o pensamento de Freud, ela disse que “ele não queria mudar o homem, mas compreendê-lo”. Isso não era revolucionário, mas novo. Um novo que permeava muitas áreas e estava presente em diversas demonstrações artísticas, como na poesia de Rimbaud e na sua constatação de que o “eu é um outro”.

Um dos entrevistadores perguntou o “quão subversivo é o pensamento de Lacan?”, já que no livro biográfico sobre ele (escrito por ela) essa questão era pungente. Roudinesco diz que Lacan, em sua vida pessoal, foi um conservador, vivia em uma desilusão permanente, mas foi responsável por uma releitura filosófica da obra de Freud. Para Lacan, não podia existir Psicanálise em países sob o regime do totalitarismo, porque “não se pode associar livremente quando não se tem liberdade de expressão”. O interessante é que há duas vertentes para os caminhos do entendimento (ao menos, filosófico) do homem, uma com uma linha mais sistemática, como apregoava os estruturalistas (Focault é um exemplo disso) e outra mais livre (tendo em Sartre um expoente). Para Lacan, a Psicanálise é uma filosofia da liberdade e ele diz isso em pleno advento dos estudos biológicos do homem.

A era da psicofarmacologia, de certa forma, provocou um descrédito em muitos aspectos da Psicanálise, mas em contrapartida, não conseguiu refutá-la. Isso porque mais do que uma máquina organicamente estruturada, o homem é uma polifonia de vozes pouco compreendida. O interessante é que a Psicanálise pode ser considerada também uma filosofia do consciente, já que é este que valida (ou ao menos suscita) a existência do inconsciente. Se no consciente estivessem todas as respostas, não haveria necessidade da definição do inconsciente.

Uma questão levantada por alguns dos entrevistadores foi o embate entre a Psicanálise e as Neurociências. Sobre isso, foi citado pela entrevistada que há um reducionismo na compreensão do ser humano, assim o estudo é muitas vezes conduzido pelo viés exclusivo do comportamento, deixando questões importantes como o “sentido” e a subjetividade. Acrescenta-se a isso, a existência de inúmeras formas de classificação dos transtornos mentais que, no entanto, em sua maioria, explica organicamente os sintomas, mas retiram do ser humano suas singularidades. As descobertas neurocientíficas ajudaram na compreensão do homem, mas ainda não são suficientes para defini-lo, assim como também tal compreensão não é possível somente com a Psicanálise. Roudinesco criticou o fato das questões do “sentido” serem abandonadas na busca por um cientificismo puro, como também a ideia do sofrimento psíquico ser compreendido, muitas vezes, como um sofrimento apenas físico, rejeitando a observância da “subjetividade”. Escutar a depressão e aprender alguma coisa com ela, como Freud fez com a histeria no final do século XIX, talvez seja um ponto importante para trazer a Psicanálise ao cerne das discussões sobre o ser humano. Nesse ínterim, a generalização é um problema, pois hoje quase tudo é diagnosticado como depressão.  Estamos na era do Prozac, assim, para qualquer sintoma, dá-se a mesma droga. A questão imposta é resolver os problemas de forma rápida, esconder a dor, vender felicidade em frascos, tratar conjuntos de sintomas de uma mesma forma, ou seja, homogeneização e superficialidade. E, claro, por detrás de todo esse embate há uma questão econômica profunda, há os interesses das empresas farmacêuticas e de alguns Governos.

Para terminar, o jornalista responsável pela moderação fez a seguinte pergunta: “a loucura tende a acabar?”. Abaixo a transcrição da resposta da entrevistada:

“Não. A condição humana não termina nunca. Isso é um sonho. A loucura existe desde o início dos tempos, como a sexualidade, como o suicídio, como a morte. O que muda é a representação que fazemos dela. Na idade média, o louco não tinha o mesmo lugar que tem hoje. O grande movimento se deu quando se considerou, a partir do século XVIII, que a loucura era uma doença mental. Essa foi a mudança. Antes, falava-se em possessão de demônio, que era a expressão entre os antigos de uma fúria interna ligada ao organismo etc. Hoje, tudo é considerado do ponto de vista da doença. É nossa época. Mas, pensava-se que seria vencida, pois poderíamos curá-la, como se cura uma doença. Mas, não. E a prova é que se pensava isso também do suicídio. Que os remédios venceriam o suicídio. Mas, não se pode vencer os grandes tabus da condição humana. Ela continuará sendo a mesma. A humanidade não pode curar-se do que ela é. Já imaginaram uma sociedade que eliminasse a morte, o suicídio, a loucura, o que mais? Curaríamos a neurose. Mas, seríamos o que, então? O que seria do homem livre de suas paixões? Seria um cemitério! ”.

Essa finalização filosófica sobre a condição humana mostra-nos o paradoxo que reside em nossa natureza, ou seja, queremos respostas, mas precisamos das dúvidas. Lutamos contra as neuroses, obsessões e a própria loucura, mas sem elas perdemos grande parte dos nossos ícones, dos homens e mulheres que fizeram desse mundo um local mais interessante. Buscamos a felicidade, como a um Santo Graal, mas internamente sabemos que esta “felicidade” é momentânea, ou seja, existe até novas angústias se abaterem sobre nós e novas buscas elidirem em nossas mentes. Umberto Eco, em Baudolino, mostra claramente que não se pode vender felicidade em frasco, pode-se atenuar a dor, mas não se pode extingui-la, pode-se querer encontrar o Santo Graal até compreender que existem vários espalhados em nossos caminhos e que a busca nunca acaba. Enfim, a extinção da dor, da angustia e do medo nos robotiza e nos superficializa, ou seja, tira-nos a condição humana.

¹http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/403/entrevistados/elizabeth_roudinesco_1999.htm


Nota: Trabalho desenvolvido como atividade da disciplina Psicologia Clinica I do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA

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fósforo

Fósforo – Breve ensaio sobre a contenção física e a liberdade humana

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A partir da leitura rápida de alguns artigos que tratam da “contenção física” em hospitais psiquiátricos, em pronto-socorro, nas salas de espera de hospitais públicos, em clínicas particulares, observei que há várias estatísticas nebulosas (porque geralmente os registros de tais ações são realizados de forma superficial e/ou são incompletos) e muitas dúvidas. Considerando o fato de que não tenho experiência no assunto e não há tempo para mais leituras, resolvi subverter a questão e tentar discutir o tema de uma maneira mais livre. Essa decisão, considerando as reflexões que estão por vir, pode se tornar um paradoxo.

Vários são os questionamentos que se formam a partir do momento que tiramos o direito de uma pessoa de mover-se, de ir e vir. Mas talvez essas indagações sejam demasiado exageradas, dado o fato de que a contenção física em situações de surtos psicóticos, de descontrole emocional, dentre outras, tenha como objetivo a manutenção da saúde da pessoa e de quem a cerca. Logo, a contenção, nesse caso, deve ser assimilada como um ato inevitável e extremamente salutar para a saúde do paciente. Mas não podemos esquecer que a “coisa contida” é um ser humano, cujas crenças e emoções estão tão conturbadas que o fazem enxergar um cenário errôneo do seu próprio contexto, levando-o a ações que não condizem com sua personalidade ou com padrões sociais e éticos pré-estabelecidos (e, em muitos aspectos, necessários à vida em sociedade).

No entanto, foi observado em uma pesquisa¹  sobre “contenção física” em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, que muitos dos casos que exigiram tal ação foram registrados depois das 17 horas, “quando os médicos da rotina já não estavam mais presentes no hospital”. Isso é um dado pouco consistente, devido à pequena quantidade de registros avaliada no artigo, mas ainda assim é uma informação que pode ser usada nas reflexões sobre esta situação.

Assim como há situações de descontrole absoluto, em que não parece existir outra possibilidade a não ser a contenção física, há também um despreparo por parte de algumas equipes que atendem tais casos de forma a evitar (a partir de medicação e diálogo, esse último obviamente mais utópico) que essa ação se torne a única possibilidade. As pessoas que são contidas ou levadas a locais de isolamento terão que conviver com essa nova realidade, ou seja, a de sua doença provocar, além do seu próprio mal, o mal daqueles que lhes cercam, de ele se tornar um perigo para si e para os outros.

Se isso se tornar um hábito, então, a questão se torna ainda mais complexa, pois depois que um nível de constrangimento é ultrapassado, algumas variáveis de impedimento são refutadas e talvez a própria consciência do constrangimento se torne uma sombra longínqua, até que desapareça totalmente.

Em Moby Dick, o livro de um homem e sua obsessão por uma baleia branca, um dos personagens tem uma epifania sobre a nossa real natureza (Melville, 1851):

Qual de nós não é escravo? Dizei-me. Pois bem; por mais que o velho comandante me ordene que vá de um lado para outro, por mais que me empurrem e me batam, tenho a satisfação de achar que está muito direito, que todas as pessoas, de uma maneira ou de outra, são obrigadas a servir, quer do ponto de vista físico quer metafísico; e assim vai passando a pancadaria universal e todos devem esmurrar-se uns aos outros e ficar contentes.

O interessante dessa constatação é a ideia de que podemos nos acostumar, de fato, com aquilo que nos parecia absurdo em certo estágio da vida. É essa acomodação com a “pancadaria universal” que temo ao fazer leituras sobre contenção física, internação em ambientes isolados etc., pois não tenho conhecimento suficiente da área para inferir se essas ações estão sendo realizadas por ser a única possibilidade dada às circunstâncias, ou por ter se tornado uma prática, ou por ambos os aspectos.

Essa inquietação vem ao encontro de um outro trecho do mesmo livro, uma constatação que sai da mente de Ahab (Melville, 1851):

Sou um fósforo. É injusto que para incendiar os outros seja preciso gastar primeiro a si próprio.  Que ousei, o que desejei, realizei! Pensam que sou louco. Starbuck acredita. Mas sou demoníaco, sou a loucura enlouquecida. Essa loucura selvagem que se acalma somente para se compreender a si mesma.

A visão da mente de Ahab é poética, mas também é especialmente triste, principalmente se refletirmos que a única alternativa que nos resta ao nos depararmos com alguém enfermo e em crise seja impedir que o “fósforo”, que já se incendeia, incendeie também os outros. Como aluna de Psicologia ainda tento compreender se há meios para fazer com que a pessoa não venha a se tornar um “fósforo”, ao mesmo tempo em que procuro digerir as palavras assombradas do grande Inquisidor de Dostoievski (1879):

Queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade!

[…]

Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados.

O grande inquisidor faz aquilo que o define, ou seja, provoca e, consequentemente, perturba. Ele provoca um Deus que não sabe o que fazer com um conceito que, segundo o inquisidor e seus inúmeros fatos, não pode ser vivenciado por nós (as criaturas) justamente porque precisamos nos sentir cativos, contidos, guiados. Então, se nós (no sentido da humanidade) não suportamos a liberdade, por que aqueles dentre nós que são considerados loucos, desajustados, doentes mentais, provocariam nossa reflexão sobre temas como a contenção e o isolamento?

Bom, criei uma falácia facilmente refutada, ousei até equiparar termos aparentemente não passíveis de equiparação (como cativo e guiado), expandi a temática inicial, perdi o foco (contenção física) e divaguei aleatoriamente (e ingenuamente) sobre a liberdade humana e sua relevância.

Um texto sem lógica à espera do fósforo que lhe “libertará” do papel (suponha que ainda há um papel).

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