Em Defesa da Sociedade – Estudos de Biopolítica

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No curso “Em defesa da sociedade” proferido nos anos 1976, Michel Foucault (2002) aponta métodos de entender a questão do poder e seus efeitos no decorrer da história, iniciando seus estudos em biopolitica[1]. O autor apresenta tendências no que se refere à importância dos enfrentamentos e das lutas; de colocar em análise a história e seus respectivos conteúdos, como o poder, a verdade, o corpo social e o direito.

Para Foucault (2002) o poder precisa ser entendido em relação, não existindo poder fora das relações. Portanto, as relações de poder se estabelecem entre soberano e seus súditos, bem como entre professor e aluno, pai e filho. Portanto um dos conceitos centrais do autor é explicado nesse curso, sendo que “o poder não é uma propriedade, não é uma potência; o poder sempre é apenas uma relação. Portanto não se pode fazer a história dos reis, nem a história dos povos, mas a história daquilo que constitui, um em face ao outro,…” (FOUCAULT, 2002, p. 200). E onde há poder sempre há resistência, por que existe uma corelação de forças (FOUCAULT, 1995, 2007), O que podemos evidenciar nas tensões entre o governo e os movimentos sociais, produzido dentro de relações de poder e resistência.

O poder é um conjunto de ações que podem ser verticais e horizontais; ele opera sobre um campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia facilita, ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos. Para haver relações de poder que são sempre instáveis e voláteis é necessário que exista pelo menos certo grau de liberdade (FOUCAULT, 2002), como a relação estabelecida na articulação do poder do rei e dos soldados nas guerras analisadas por Foucault no curso “Em defesa da Sociedade”, que vão passando o foco de cuidado do Estado[2] da conquista de territórios para o controle com a população.

Ao longo de sua obra Foucault buscou conhecer como se constitui o sujeito. Sujeito, este que é construído no social e num contexto histórico especifico. Medeiros (2008), a partir de análise arqueológica de Foucault, refere que os discursos formam os objetos de que falam, isto é, discursos são práticas, na medida em que constituem sujeitos. Eles falam e nos fazem falar, constituindo determinados modos de compreender, pensar e viver.  Os múltiplos discursos significam distintas formas de subjetivação. Portanto, os discursos não são subjetivos, mas subjetivam, na medida em que o indivíduo toma para si determinados discursos, considerados legítimos e verdadeiros, modificando-se e identificando as prerrogativas desse discurso como seus.

Michel Foucault, nesse curso, dedicou-se as origens de um discurso que entendeu a política como a continuidade da guerra por outros meios. Discursos históricos que entendiam as lutas, os conflitos ou as guerras como analisadores gerais dos discursos. O discurso histórico-político foi desenvolvido predominantemente na França. Dessa forma, o autor organizou as distinções e rupturas discursivas acerca das análises do poder, diferenciando o discurso filosófico-jurídico do discurso histórico-político. É pela ideia de nação que derivam as noções de nacionalidades, raças e classes.

Assim, o reconhecimento histórico ponderado ao longo dos anos pelos historiadores, fortalecem o poder e a dominação, pois através do registro permanente e sistemático, de exemplos narrados e sua efetiva circulação, acabam por perpetuar esse poder. Temos uma história desenvolvida na dimensão e em função da soberania, ou seja, uma história das glórias dos fortes e dos fracassos dos fracos (FOUCAULT, 2002).

Foucault (2002) não quis tanto mostrar como a nobreza havia representado querer suas reivindicações, através do discurso histórico, mas realmente como em torno dos funcionamentos do poder, se produzirá, se formará certos instrumentos de luta – no poder e contra o poder; e esse instrumento é um saber novo, que é essa nova forma de história.

É importante salientar que Foucault (2002) trabalhou nesse curso a questão de como a análise histórica discursiva vem sendo tomada em diferentes épocas e diferentes narrativas, onde mudam os objetos de análise, do foco na guerra, passa ao foco na nação, seguido pelo terceiro foco no Estado. Afinal, o discurso histórico propõe uma forma de saber-poder – tática discursiva para a “produção” – condição de possibilidade de emergência de tal período e objeto de análise, sua inteligibilidade vai sendo dado conforme a época. Então, Foucault (2002) retoma os estudos de Boulainvilliers que foi precursor da história dos súditos (séc. XIX – história dos povos) ao deslocar o eixo da história do poder, analisando o sob das instituições, dos acontecimentos, dos reis e de do poder por eles exercido. A recusa do modelo jurídico de soberania era a única maneira que se tinha para pensar a relação povo e quem governa.

Mas afinal quem foi Boulainvilliers? Conde Henri Boulainvilliers (1658 – 1722) foi economista e historiador. Defensor de uma monarquia tradicionalista e anti-absolutista, sendo um dos primeiros na França a invocar a ciência política.  Considerava o absolutismo de Luís XIV como despótico, brutal, muito longo, porque não obedeceu a regras ou a uma teoria, vivendo ao sabor dos acontecimentos. Assim, Boulainvilliers traz uma nova inteligibilidade na constituição desse campo histórico-político reconstruindo a nobreza como força no interior das forças do campo social. “… para Boulainvilliers, tomar a palavra na área da história, contar uma história, não é simplesmente descrever uma relação uma relação de força, não é simplesmente reutilizar, em proveito da nobreza, por exemplo, um cálculo de inteligibilidade que era, até então, do governo. Trata-se de modificar, com isso mesmo, em seu próprio dispositivo e em seu equilíbrio atual, as relações de força. A história não é simplesmente um analisador ou um decifrador das forças, é um modificador” (FOUCAULT, 2002, p.204).

Foucault (2002) trouxe também a idéia do historicismo como o nó que prende história à guerra, mas que se apresenta como um nó essencial, em que saber e verdade não podem não pertencer à ordem e à paz, sendo esta ideia que torna insuportável o historicismo pela circularidade entre saber histórico e guerras que são narradas e perpassadas por ele. Ideia esta reimplantada pelo Estado Moderno no “disciplinamento” dos saberes do séc. XVIII. Foucault (2002) retoma que precisamos tentar ser historicistas para analisar a relação perpétua entre a guerra narrada pela história e a história perpassada por essa guerra que ela narra.

Precisava-se de uma história maiúscula, disciplinar e das lutas, não ao acaso se tem um Ministério da História. “O que distingue o que se poderia denominar a história das ciências da genealogia dos saberes é que a história das ciências se situa essencialmente num eixo que é, em linhas gerais, o eixo conhecimento-verdade, ou, em todo caso, o eixo que vai da estrutura do conhecimento à exigência da verdade” (FOUCAULT, 2002, p.213).

Dessa forma o saber funcionava como riqueza, e os saberes maiores se apropriam dos menores havendo uma luta econômica política em tordo dos saberes diante da sua multiplicidade e então há a intervenção do Estado nos saberes (FOUCAULT, 2002). O que parece não ser muito diferente da prática de fomentos e verbas de pesquisa concedidos hoje – afinal o que se pesquisa, o que se estuda e para que isto serve? Pra quem serve? Quem financia? Eis a época que Foucault (2002) pontua como a proliferação da formação técnica.

“Este movimento de organização dos saberes tecnológicos correspondeu toda uma série de práticas, de empreendimentos, de instituições.” (FOUCAULT, 2002, p. 216). O Estado intervém a partir de quatro procedimentos: a eliminação e desqualificação (dos saberes inúteis e dispendiosos), a normalização dos saberes dispersos – comunicação entre eles, derrubada de segredos, a classificação hierárquica dos saberes – encaixá-los uns aos outros e delega os saberes mais gerais e formais como diretrizes para saberes materiais, através da centralização do controle dos saberes pela centralização piramidal – de baixo para cima – conteúdo dos saberes e de cima para baixo – as direções. Então, surge a importância da Enciclopédia onde as grandes investigações, catálogos, métodos de artesanato, de mineração estão ai registradas (FOUCAULT, 2002). Hoje contamos com outras Enciclopédias, dispondo de um dispositivo tecnológico para ter um banco de dados no aparato de pesquisa e investigações, contudo será que tudo o que se produz se publica, ou pode ser publicado com legitimidade? O que tem maior aval para publicações? Pode ser que muito do que se descobre (e o que é esse descobrir) não se publica, por falta de financiamento, um grupo de pesquisa, uma instituição de peso dando o respaldo; ao mesmo tempo em que se publica compulsoriamente o que já foi dito, dizendo de outro jeito e com uma base para tornar verdade – a ciência.

Junto com a Enciclopédia há a hierarquização de grandes escolas e uma inspeção disto com a função de centralização (FOUCAULT, 2002). Na seleção, normalização, hierarquização e centralização dos saberes o saber médico tomam para si a população nas campanhas de higiene pública, então neste momento pode-se pensar no que precede os dois próximos cursos de Foucault – Segurança, Território e População (FOUCAULT, 2008a) e O Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2008b) – que trataram junto com este curso da governamentalidade[3], com o deslocamento do foco do governo do território para a população.

 A organização interna de cada saber como disciplina permite descartar o falso saber e o não-saber. No lugar de existir as ciências vai existir ‘a ciência’ (FOUCAULT, 2002). O que é científico? Durante toda nossa escolarização somos interrogados/as por esta questão diante do levantamento de hipóteses ou de probabilidades ou respostas para questões que levantamos. Em especial, neste momento do texto podemos retomar os “As Palavras e as Coisas” e a “Arqueologia do Saber” na (des) (re) construção que o autor faz diante das ciências humanas e dos métodos de investigação cientifica.

Afinal, Foucault (2002) contextualiza que no século XVIII o disciplinamento de saberes polimorfos e heterogêneos surge o aparecimento da Universidade como grande aparelho uniforme dos saberes, então desaparece o cientista amador, afinal a homogeneização dos saberes mantém uma comunidade científica com estatuto e organização do consenso na centralização do Estado e o saber que não nasceu nos organismos oficiais de pesquisa é desclassificado. Dessa forma a ortodoxia eclesiástica é substituída pela disciplina científica, o controle não se dá mais pelo conteúdo, mas pela regularidade das enunciações (quem falou e se era qualificado para falar), ou seja, passou-se da censura dos enunciados para a disciplina de sua enunciação.

Essa forma de disciplinamento provocou desbloqueio epistemológico e nova regularidade na proliferação de saberes estabelecendo um novo modo de relação entre poder e saber, não a regra da verdade, mas a regra da ciência, então aí a história se encaixa como uma disciplina histórica. O saber histórico deixou de ser apenas o discurso do soberano e se transformou num elemento de luta política, em que o poder tenta retomá-lo e discipliná-lo.Da mesma maneira o Estado traça os corpos dos indivíduos, como se fosse a história seguindo numa lógica de ordem cronológica e natural. Afinal, qual o corpo da guerra, de uma nação, de um Estado?

Escolhe-se quem deve ser privilegiado com os benefícios dos serviços de cada Estado: os poderes reguladores de uma estrutura binária (oposição entre o corpo social e quem trabalha pelo Estado) perpassam a sociedade e reinstalam a contra-história que deu origem ao racismo (FOUCAULT, 2002). Os discursos biológicos/racistas propõem a necessidade de se defender a sociedade contra os perigos de uma raça sugerida/proposta como mais fraca, por isso elimina e segrega, como forma de normalizar a sociedade e o indivíduo.

Foucault (2002) encera o curso, problematizando o poder disciplinar situado nas formas como o Estado regula e controla os corpos, o que pode ficar expresso pela forma como cria programas sociais de saúde e de educação para disciplinar os sujeitos. O biopoder, o poder da vida, coloca em questão como operam ou deixam de operar essas estratégias de Estado. Quem são os sujeitos que o Estado deve deixar viver e quais os sujeitos que o Estado deve deixar morrer? (FOUCAULT, 2002).


[1]Biopolitica, pode ser entendido como o poder sobre a vida e sobre os corpos que vai sendo produzido por uma série de tecnologia ligadas às políticas de Estado.

[2] Estado, utilizado em maiúsculo, por que se refere aos estudos foucaultianos de Estado-Nação.

[3]Governamentalidade é um conceito metodológico utilizado para estudar os dispositivos de poder-saber. Trata-se de deslocar o ponto de vista interior por um ponto de vista exterior, ou seja, sair do estudo das instituições e perguntar pelas tecnologias de poder que permitem a constituição dos campos de verdade com seus objetos de saber (FOUCAULT, 2008a).

 

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Princesa Jasmine: entre seguir e transgredir as normas

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A princesa Jasmine é a sexta princesa dos desenhos da Walt Disney, ela surgiu com o filme do Aladdin em 1992, seguida pelos filmes O Retorno de Jafar e Aladdin e os 40 ladrões, onde se expandiu também em uma série animada de televisão e outras mídias como nos jogos de videogames, hoje facilmente acessados por crianças através da internet. Precisamos reconhecer todos esses artefatos das diferentes mídias (filmes, séries, jogos, histórias online, brinquedos) como objetos construtores de subjetividades das crianças, tanto de meninas quanto de meninos, uma vez que as construções sociais se dão em e na relação, como o gênero, por exemplo, que é construído dentro de uma hegemonia heterossexual1. Portanto, não há como aprender a ser menina, se não for delimitado o que é ser menino também, e vice versa. Mesmo que essas delimitações sejam quebradas em parte, em certa medida sempre estamos nos construindo dentro de suas normas. Afinal, a norma existe também para explicar a anormalidade. E o que é normal para uma época não necessariamente será para outra, como os comportamentos esperados para uma princesa.

Através da ascensão de um intercâmbio cultural dos anos 1990 surge a Princesa Jasmine. Essa princesa é a única com aparência árabe entre as treze princesas da Disney, o que traz nela a possibilidade do início de uma aparição dessa cultura pouco explorada até então.  Isso quebra com a hegemonia das princesas brancas, por Jasmine ser uma princesa com cor da pele parda, cabelos pretos, olhos castanhos. Marcas sociais e raciais que também podem colocar Jasmine em um lugar de menor popularidade se comparada às princesas brancas, loiras e de olhos azuis. Princesas essas que influenciaram modelos de beleza, que seguem marcados por uma busca pela branquitude2  e uniformização nas características pessoais que aderem a determinadas cores de cabelo, olhos, maquiagens.

Assim sendo, Jasmine traz consigo uma raça e uma personalidade diferente das princesas até então conhecidas, o que marca um processo de globalização e reconhecimento do Oriente, misturando as características ocidentais e orientais na mesma personagem. De um lado Jasmine usufrui do seu lugar de mulher, de sangue real e rica, podendo ter diversos pretendentes ao seu dispor e se sentindo desejada, e por outro lado ela se sente presa às regras dessa vida social. Por ser filha do sultão, uma princesa de família nobre e ter que ficar pousando para quadros, exercendo seu status, ela briga para poder ter mais independência para utilizar seus conhecimentos e principalmente para que o pai não escolha seus pretendentes.

As transgressões feitas por Jasmine nem sempre são possíveis em todo o mundo oriental. Pois, ainda acompanhamos os noticiários que trazem as violentas proibições de meninas do mundo oriental de frequentarem a escola, e que têm seus casamentos prometidos para uma família desde que nascem. Situações essas pouco conhecidas das crianças ocidentais que assistem os desenhos da Disney, pois já nasceram em uma época com garantias advindas dos movimentos feministas3 para os direitos das mulheres, simplesmente como votar e ir à escola.

Em certa medida, Jasmine quebra as regras se lançando para viver aventuras com Aladdin, pretendente por ela escolhido, onde ela utiliza de suas características de desafiar para aprender rapidamente como se defender dos perigos que passa junto de Aladdin. Jasmine é capaz de saltar e tem habilidades de combate e força física. Habilidades, até então reconhecidas como pertencentes ao gênero masculino para o universo das princesas.

Jasmine tem espírito livre, o que a coloca no lugar de uma princesa rebelde, ou seja, que transgride algumas normas. Ela não quer ficar só sorrindo e posando para as pessoas e quadros, ela conta que quer fazer algo diferente da sua vida. Fala várias línguas, tem conhecimento. Contudo, ainda protagoniza a figura de uma mulher que precisa ser reconhecida dentro da lógica de um ideal romântico, onde espera pela conquista de Aladdin, ao mesmo tempo em que se mostra sedutora e vaidosa. Dessa forma, os personagens de Jasmine e Aladdin reiteram o que normalmente é esperado para os homens e para as mulheres em uma relação heteronormativa. Contudo, sabemos que existem outras formas de se relacionar, que por vezes são vistas como patológicas, como quando um homem se mostra mais sensível do que uma mulher, ou quando esse não consegue “bancar” financeiramente essa mulher. Não por acaso, um dos pedidos de Aladdin para o Gênio da Lâmpada é de ter uma posição para impressionar Jasmine, que no conto real de Alladin tinha um nome menos comercial, de Princesa Badroulbadou.

Conforme Guacira Lopes Louro (2008) os filmes hollywoodianos foram particularmente eficientes na construção de mocinhas ingênuas e mulheres fatais, de heróis corajosos e vilões corruptos e devassos, bem como na complexidade da construção de gênero e sexualidade. As produções cinematográficas infantis de princesas não constroem somente as meninas, mas também os lugares de gênero possíveis para os meninos. As princesas da Disney ainda influenciam as crianças, e são vendidas e protagonizadas por meninas e meninos através das bonecas das princesas e das roupas delas nas brincadeiras e teatrinhos, que são formas de ensaio para a vida adulta.

Principalmente, os meninos, por vezes, ainda são proibidos de representarem uma personagem que ocupa um lugar de gênero que não é aparentemente o seu. Como no filme “Minha Vida em Cor de Rosa” de Alain Berliner (1997), as princesas e bonecas povoam a construção da subjetividade de um menino que pode estar experimentando ou até mesmo transgredindo um lugar de gênero, o que causa várias complicações sociais para ele e sua família.

Essa transgressão de passar a assumir atuações que seriam do lugar masculino como a Princesa Jasmine ocupa já é bem mais tranquilo para a nossa sociedade, por que ela está mantendo características femininas e só está utilizando de estratégias contemporâneas masculinas para dar conta de um mundo que nem sempre é justo. Ou seja, ela pode se utilizar de recursos como a força e a agilidade.

Princesas como Jasmine e príncipes como Aladdin nos auxiliam para entender como o gênero é performado, ou seja, vamos atuando dentro de uma construção de gênero já existente, e daquilo que é esperado para um corpo. Judith Butler (2003, 2005), filósofa que percorreu uma genealogia do gênero, nos convoca a pensar que nem sempre há uma conformidade entre corpo, desejo, gênero e sexualidade. E que nunca escapamos completamente às regras sociais e as imagens construídas pelas normas, uma vez que sempre somos construídos(as) por um gênero, para começar pela nomeação no feminino ou no masculino.

Portanto, essa autora nos auxilia a entender como o gênero vai atuando na definição das atividades humanas e no seu estatuto social e moral, o que figura na construção psicológica de príncipes e princesas. Da mesma forma, o gênero é uma categoria que opera na constituição das relações de poder e das hierarquias sociais, sancionando lugares, posições, privilégios e autoridade. Como o sultão que tem autoridade sobre a Princesa Jasmine, mesmo que ela transgrida algumas ordens do pai, ela ainda vivência modelos de mulher internalizados pela sua cultura, e pelo lugar da autoridade paterna.

Refletir sobre o impacto de princesas como Jasmine e sobre seus efeitos na construção da subjetividade das crianças é instigante. Aqui, traçou-se uma escolha para pensar essa princesa nas posições de sujeito articuladas com a produção das relações de gênero, atravessadas por questões étnicos/raciais. O gênero trata-sede uma categoria central no estabelecimento dos valores simbólicos, criadora de oposições binárias entre espaços, corpos e as diferentes ações humanas, onde personagens podem ser representadas, conforme Louro (2008) como sendo legítimas, modernas, patológicas, normais, desviantes, sadias, impróprias, perigosas, fatais.

Na psicologia social e nos estudos sobre o gênero novas perspectivas como as de Judith Butler (2003, 2005) permitem um posicionamento e o pensar em diferentes possibilidades para a transformação de uma sociedade reguladora e autoritária para constituir uma forma de ação local e contextualizada, nunca androcêntrica e universal, conforme Conceição Nogueira (2008). O que confronta o pensamento grego, que condicionou a cultura ocidental e machista, em que o homem é o criador da ordem e da lei, enquanto a mulher está associada ao desejo e à desordem, um ser inferior pela sua natureza. O que é colocado em jogo nas cenas protagonizadas por Jasmine.

Contudo, Jasmine nos refaz o contato nas intermediações da cultura oriental e ocidental, as duas cheias de regras e modelos para a construção da subjetividade. Não podemos negar a cultura que nos cerca, é possível transgredir somente até certo ponto. Estamos numa posição semelhante à Jasmine, em que precisamos transgredir algumas normas ao mesmo tempo em que reiterar outras, não existindo fora delas, como o que nos mantém em movimento no mundo.

Referências:

BERLINER, Alain. Ma vie em rose. [Minha vida em cor-de-rosa]. Bélgica, França, Inglaterra, 88 min, 1997.

BUTLER, J. Le genre comme performance.In Humain, inhumain: le travail critique des normes.(Entretiens).Paris: Éditions Amsterdam, 2005, p.13-42.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Cinema e Sexualidade. Educação e Realidade, v. 33, p. 81-97, 2008.

NOGUEIRA, Conceição. Análise(s) do discurso: diferentes concepções na prática de pesquisa em psicologia social. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 24, n. 2, June  2008 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722008000200014&lng=en&nrm=iso>. access on  01  Feb.  2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722008000200014.

PISCITELLI, Adriana G. . Gênero: a história de um conceito. In: Heloísa Buarque de Almeida; José Szwako. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis e Vertecchia Editores, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Mortz. Racismo “à brasileira”. In: Heloísa Buarque de Almeida; José Szwako. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis e Vertecchia Editores, 2009.

Notas:

1 Entende-se hegemonia heterossexual pelo fato da sociedade ocidental considerar o modelo de relação heteronormativa, entre homens e mulheres, feminino e masculino como hierárquica diante de outras possibilidades de relações consideradas minorias, não pelo número de pessoas, mas pela organização social, inclusive da linguagem que coloca de um lado o masculino como neutro e universal e o feminino como o outro (BUTLER, 2005).

2 Branquitude é a expressão utilizada para posicionar um lugar de como que se a raça branca fosse neutra e as outras raças de cor. Lugar esse que ocupa privilégios, da mesma forma que o masculino quando ocupa o lugar neutro na linguagem, como se o homem branco, heterossexual e de classe média representasse o todo (SCHWARCZ, 2009).

3 O Movimento Feminista possibilitou no mundo ocidental que as mulheres tivessem pelo menos 10 anos de escolaridade, e vem trabalhando pelo enfrentamento das desigualdades de gênero, mesmo este não sendo um movimento com uma ubiquidade (PISCITELLI, 2009).

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