Dr. Rodolfo Petrelli visita curso de Psicologia da Ulbra Palmas

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Docente é recebido pela profa. Dra. Ana Beatriz Dupré

Nesta quinta-feira, 05, o prof. Dr. Rodolfo Petrelli visitou o curso de Psicologia da Ulbra Palmas para apresentar a sua mais recente publicação, o livro “Rorschach em perspectiva fenomêmico existencial: Seguro Cajado nas Caminhadas em Psicologia Diagnóstica”, pela Editora Appris. O pesquisador estava acompanhado de sua esposa, Margarida Petrelli, e ambos foram recebidos na instituição pela profa. Dra. Ana Beatriz Dupré, e por alunos da Psicologia.

De acordo com a Editora Appris, o pesquisador fenomenólogo Rodolfo Petrelli se estrutura em vasta fundamentação teórico-referencial, a partir de sua biografia da arte acadêmica, com graduação em História da Filosofia (1963), Teologia (1967), Psicologia (1971), mestrado em Psicologia (1973) e doutorado em Psicologia (1989). Neste entalhe científico, a história da evolução analítica do Psicodiagnóstico Rorschach, de Hermann Rorschach, promove-se sob a análise quali-quantitativa, que advém de pesquisas de base junto à população dos índios brasileiros Uru-Eu-Wau-Wau, da Serra dos Pacaás Novos e da Serra dos Uopianes, do estado de Rondônia, nos idos de 1985. A trajetória científica do autor se expande desde o estudo da população indígena à vanguarda mundial de seu trabalho forense, na década de 80, por meio do Rorschach, apresentado como laudo psicológico ao judiciário brasileiro.

O campo da prospecção forense, do Psicodiagnóstico Rorschach, foi implantado por Petrelli à ciência da Psicologia Psicodiagnóstica mundial, a partir de sua experiência no Centro de Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil da PUC-GO, fundada pelo autor em 1982, e se reverbera na Psicologia Jurídica a partir dos inúmeros trabalhos e supervisões acadêmicas do professor.

No texto de apresentação do livro, evidencia-se que a principal contribuição do manuscrito está na complexidade quali-quantitativa da leitura da vastidão humana, realizada pela profundidade de união dos paradoxos, em que a beleza pode ser reconhecida, em face da capacidade de conectar-se à severidade quantitativa e à idiografia qualitativa do ser que se expressa em sua totalidade. (Com informações da Editora Appris e do Painel de Livros UOL)

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“Professores estão sendo levados a exaustão na pandemia”, diz especialista

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As mudanças impostas pela pandemia na rotina dos professores podem afetar a saúde mental desses profissionais. É o que alerta a psicóloga e consultora educacional Carla Jarlicht. Na entrevista abaixo, ela analisa a necessidade de os gestores das escolas estarem atentos aos efeitos desse período junto ao corpo docente, os impactos do ensino remoto no dia a dia das aulas e a nova dinâmica pedagógica que o formato híbrido exigirá. 

(En)Cena – Num contexto de normalidade, quais são os problemas que costumam afetar a saúde mental dos professores?

Carla Jarlicht – A rotina diária de um professor é bastante desafiadora, e por vezes, exaustiva. A categoria enfrenta baixos salários, carga horária extensa, falta de estrutura e segurança nas escolas, falta de suporte e tantos outros problemas. Quem pensa que o trabalho do professor se encerra quando ele termina o seu turno de trabalho está bastante equivocado. Há ainda as tarefas de planejamento, verificação de materiais dos alunos e pesquisa que , invariavelmente, são realizados em casa (e sem remuneração), depois do seu horário de trabalho. Para além disso, há o vínculo afetivo construído por quem trabalha diretamente com pessoas diariamente, portanto os professores envolvem-se com seus alunos, preocupando-se com eles dentro e fora da sala de aula. Apesar desse vínculo ser desejável e, muitas vezes, condição para o desenvolvimento do trabalho, ele pode ser também mais um ingrediente de pressão quando o professor não encontra parceria seja com o aluno como com a própria família e com a escola. Esse conjunto de fatores pode, sim, afetar a saúde mental dos professores que se sentem (e são) extremamente exigidos pela sociedade, pela escola, pelas famílias de seus alunos, pelos próprios alunos e por eles mesmos, que querem realizar um trabalho de qualidade. Caso esses excessos não venham acompanhados de um suporte consistente da escola (gestores e coordenadores) podem tornar-se extremamente pesados, acarretando problemas de saúde como estresse e depressão, para citar apenas dois.

Fonte: encurtador.com.br/GMSY6

(En)Cena – Com a mudança repentina para as aulas remotas e a necessidade de lidar com um cenário totalmente novo e com novas tecnologias, muitos professores sentiram piora na saúde mental. Por que isso acontece? Que fatores dessa nova realidade afetam o emocional e psicológico desses profissionais?

Carla Jarlicht – Tudo que é novo desacomoda e inquieta até se tornar conhecido. E devido à pandemia tudo teve que acontecer sem muito planejamento, o que gera ainda mais desconforto. Somada à todas as questões desafiadoras já sabidas, os professores tiveram que dar conta também de uma mudança drástica na sua prática de sala de aula. A maioria sequer havia recebido formação para trabalhar remotamente, muitos nem acesso à internet de qualidade tinham e outros nem as ferramentas necessárias. Tudo isso contribuiu para o aumento do estresse. E para além de todas as mudanças ocorridas havia ainda todos os temores pessoais, novas precauções e lutos trazidos pela pandemia. A sala de aula passou a acontecer na casa de cada um, com muitas diferenças quanto à recepção e à percepção de cada aluno (e suas famílias) quanto ao novo modo de trabalho. Foram (e são ainda) muitos os questionamentos que vão da estrutura do trabalho remoto em si à dúvida sobre a eficácia da aprendizagem do aluno passando pela necessidade da parceria das famílias e do apoio da escola e pela qualidade do próprio trabalho que está sendo realizado. Imagine que o professor é aquele acrobata que roda vários pratinhos ao mesmo tempo. Todos estão ao seu alcance e nenhum deles pode cair. Todos os seus pratinhos são bem diferentes uns dos outros. Se essa situação já provoca uma certa ansiedade, imagine se, de repente, surge um obstáculo entre ele e os pratinhos. Os graus de ansiedade e de tensão aumentam. Tudo isso pode gerar mais ansiedade, angústia, fadiga mental, principalmente, quando o professor não encontra o apoio necessário. Afinal, os pratinhos do professor são inteiramente diferentes daqueles do acrobata e não têm reposição.

Fonte: encurtador.com.br/ekmps

(En)Cena – Em muitos locais, o ensino remoto migrou para o ensino híbrido, no qual os professores precisam dar aulas presenciais e continuar dando aula remota. Como essa nova mudança pode afetar os professores? Muitos têm comentado sobre o medo de pegar o vírus e contaminar seus familiares e sobre a carga maior ainda de trabalho.

Carla Jarlicht – Todas essas mudanças são ainda muito recentes, mas parece que o conceito de ensino híbrido vem sendo mal compreendido. Ensino híbrido é uma combinação entre atividades no presencial, em sala de aula, como vem sendo realizado há tempos, com o modo online, o qual as tecnologias digitais são ferramentas empregadas para enriquecer o ensino (e não necessariamente o aluno está fora da escola). Uma vez que nem todos os alunos estarão presentes na escola, é possível que o professor precise elaborar um planejamento diferenciado para o grupo que estiver em casa, a menos que esse grupo usufrua das aulas presenciais sincronicamente. De uma maneira ou de outra, existe aí uma mudança radical em relação à proposta de ensino tradicional e tudo caminha cada vez mais para que o ensino seja personalizado. Como toda e qualquer mudança é preciso tempo, paciência e investimento na formação do professor para que ele possa abraçar esse novo lugar com propriedade e confiança. E esse processo é sempre trabalhoso, podendo ser também estressante caso o professor não tenha apoio necessário.

Considerando ainda que estamos imersos no frágil e incerto contexto da pandemia, é possível que os professores estejam se sentindo inseguros, principalmente, em relação à sua saúde e a de seus familiares e pessoas próximas. Isso precisa ser legitimado pela escola, que por sua vez, necessitará investir no diálogo com seu corpo docente para que juntos possam alinhar expectativas e pensar em outras estratégias para essa nova etapa escolar contemplando o bem-estar de todos, especialmente dos professores, pois são eles que estão na linha de frente com seus alunos.

Fonte: encurtador.com.br/isuTZ

(En)Cena – Quais são as dicas para os professores melhorarem sua saúde mental e lidar melhor com esse período?

Carla Jarlicht – A pandemia abalou três necessidades básicas do ser humano: a pertença (relacionado aos vínculos afetivos, à importância de se sentir compreendido), a competência (relacionada à capacidade de estar no controle) e a autonomia (relacionado a nossa capacidade de tomar decisões tendo em vista as consequências). Portanto, é preciso estar atento a esses aspectos em especial porque eles vão reverberar nas nossas formas de pensar, sentir e agir. Precisamos observar os sinais de cansaço, irritação, ansiedade e tristeza. Sempre que algum sentimento impede aquilo que precisamos realizar, é preciso ligar o sinal de alerta. Respirar, falar sobre o assunto que aperta o peito e buscar ajuda especializada podem ser alguns caminhos.

Os professores ocupam um lugar de extremo valor dentro da sociedade que, apesar de pouco reconhecido e valorizado atualmente, é de bastante responsabilidade e extremamente exigido. E, vivemos um momento em que todos os olhares se voltam para eles, como se estivesse apenas nas suas mãos a solução para os problemas gerados pela pandemia. Para não cair na cilada do herói, é importante que os professores entendam que são primeiramente humanos e que por isso, podem direcionar para si mesmos o olhar generoso que direcionam para os seus alunos, respeitando assim, os seus próprios limites.

(En)Cena – Para evitar o aumento de estresse, pensar no planejamento da semana, equilibrando suas responsabilidades pessoais e de trabalho pode ser um excelente investimento de tempo. É fundamental reservar em alguns pontos da semana ou do dia para relaxamento. Às vezes, parar dez minutos para tomar um café longe da tela pode ser tudo que se precisa para recarregar, para arejar a cabeça. Se puder se exercitar ou apenas esticar o corpo, melhor ainda! Outra coisa importante é se perguntar quanto às prioridades. Quais são as prioridades? O que é urgente de verdade? Será que é possível distribuí-las, endereçá-las melhor ou até partilhá-las com alguém?

Carla Jarlicht – Outro aspecto a ser considerado é relativo à quantidade de horas trabalhando. Se a hora para começar é importante de ser cumprida, a hora de encerrar é igualmente importante. Determine (e respeite) o seu tempo. Lembrem das crianças que, mesmo quando estão no meio da brincadeira, pedem “altos” para descansar, tomar fôlego e seguir brincando. Nosso corpo precisa de pausas para pensar melhor e para a gente ser mais feliz com o que faz.

Da mesma maneira que o professor procura a todo custo e , principalmente no atual contexto, evitar exigências desnecessárias com os alunos, esse mesmo cuidado precisa ser direcionado a ele próprio. Fortalecer o que já faz bem pode ser um caminho mais tranquilo e promissor no cuidado com a saúde mental.

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Luís Paulo Lopes: “É preciso passar pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis”

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“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano

Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.

Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.

(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?

Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.

Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.

Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.

Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.

Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?

Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.

Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.

O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.

Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.

Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.

Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.

Fonte: encurtador.com.br/adlG6

(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?

Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.

(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?

Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.

A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.

(En)Cena –  Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?

Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.

É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.

Fonte: encurtador.com.br/xCIN3

(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?

Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.

(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?

Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.

O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.

(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?

Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.

É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.

(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud  – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?

Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.

Fonte: encurtador.com.br/frvAI

(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?

Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e  assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.

(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…

Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.

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“Avaliação Psicológica” é tema do Caos 2020

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O Congresso Acadêmico de Saberes em Psicologia – Caos 2020, ocorre entre os próximos dias 03 a 07 de novembro e, nesta edição, tem como tema “Psicologia e Profissão: a avaliação psicológica em destaque”. Pela primeira vez o evento será totalmente realizado em ambiente virtual, com acesso gratuito, e transmissões a partir do YouTube do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra e do Google Meet.

O evento é gratuito e aberto ao público em geral. No entanto, para obter a certificação de participação, é necessário se inscrever no site http://ulbra-to.br/caos/edicoes/2020 . Para a abertura do Caos, que ocorre às 9h do dia 03/11, o psicólogo Dr. Fernando Pessotto irá conduzir uma palestra com o tema “o que Sherlock Holmes tem a ver com a avaliação psicológica?”. A palestra contará com mediação da psicóloga Lais Karolinny A. Amaral.

Ainda na noite da próxima terça, a partir das 19h, haverá uma mesa-redonda sob o tema Contextos da Avaliação Psicológica, com a mediação da professora Me. E psicóloga Ruth Cabral, e participação das psicólogas Amanda Carolina Oliveira de Santana, Larissa Machado Bufáiçal e do psicólogo Dr. Lucas Dannilo Aragão Guimarães. Durante a semana, ocorrerá uma série de minicursos, mesas-redondas, sessões técnicas, palestras e, ao final, a Assembleia Geral de Estudantes de Psicologia do Tocantins.

De acordo com a coordenadora do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, psicóloga e profa. Dra. Irenides Teixeira, “atualmente a Psicologia se consolida como uma das profissões mais promissoras, pela sua capacidade de catalisar e atravessar as questões humanas em suas mais variadas facetas. Neste sentido, não é possível falar em Psicologia como ciência e profissão sem levar em conta a Avaliação Psicológica”.

Dra. Irenides diz que, do ponto de vista ético e científico, esta temática é emergente e, em última análise, define o grau de comprometimento do Ceulp/Ulbra com a qualidade dos profissionais de Psicologia que serão entregues ao mercado de trabalho. “Predominantemente atrelados à uma dimensão experimental, os processos de avaliação psicológica se apresentam como um desafio perene para as psicólogas e psicólogos da atualidade, uma vez que envolvem variantes com elevada condição de mutabilidade. Além disso, esta área requer uma constante atualização no que diz respeito aos aspectos éticos”, alerta Irenides.

Esta já é a quinta edição do Caos, que nos últimos anos abordou temas como “violência”, “diversidade profissional”, “tecnologia” e “sexualidade”. A programação completa da edição 2020 pode ser acessada no endereço http://ulbra-to.br/caos/edicoes/2020#programacao . Neste ano o evento conta com o apoio da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – Núcleo do Tocantins (ABEP) e do Conselho Regional de Psicologia do Tocantins (CRP 23).

Serviço:

O quê – Caos 2020 (Psicologia e Profissão: a avaliação psicológica em destaque)
Data: 3 a 7 de novembro de 2020
Site do evento:  http://ulbra-to.br/caos/edicoes/2020
Inscrições: https://ulbra-to.br:8051/sig/extensao/acoes/410/detalhes/
Programação: http://ulbra-to.br/caos/edicoes/2020#programacao
Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCuf3VKQ9cmjDiCwW5YXTB8g

Evento totalmente gratuito e com certificação

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Racismo Estrutural no Brasil: (En)Cena entrevista o ativista Mauro Baracho

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O (En)Cena reproduziu a entrevista com o ativista e mestrando em Antropologia pela UFMG, Mauro Baracho, para o curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, sobre o tema Racismo Estrutural no Brasil, que dentre outros aspectos abordou sobre as consequências do racismo e machismo na sociedade, suicídio entre grupos negros e seus estudos com homens negros.

(En)Cena – Poderia falar sobre a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil, da ideia que foi vendida, que foi feita dentro da estrutura estatal a partir de livros didáticos no passado, através de grandes esquemas ideológicos que tentam vender essa imagem  de que as coisas são iguais para todos, de que não há preconceitos, não há racismo, não há discriminação.

Mauro Baracho – Por conta das manifestações nos Estados Unidos, as pessoas se questionam por que os negros brasileiros não se revoltam como os negros americanos. Nessa questão, entra uma série de apagamentos de revoltas negras ao longo da história, mas também entra o processo histórico de pós abolição do Brasil e dos Estados Unidos. E no Brasil, optou-se em maquiar as diferenças sobre ideia de democracia racial.

Vem dessa ideia do exterior que o Brasil é essa mistura de povos, e de fato é, que o Brasil é uma mistura de africanos, de europeus, de indígenas. Mas que na prática, no dia a dia isso não significa muita coisa, porque a discriminação está na aparência, na cor de pele. E ninguém leva isso em conta na hora de contratar na vaga de emprego.

O Brasil optou em criar uma ideia de que é um país mestiço, como de fato era, ela vai ser reforçada principalmente por obras. Para que isso funcione precisa de intelectuais pensando, produzindo obras para criar esse aspecto positivo, principalmente na obra de Gilberto Freire em “Casa-grande e senzala”, que eram muito fortes as ideias do racismo científico onde os mestiços eram considerados como raça degenerada, era a pior raça. Os brancos, os amarelos, os negros e depois os mestiços. Então, essa obra vem para dar um aspecto positivo na identidade mestiça do Brasil. Vem consolidar essa ideia de democracia racial no país, dizer que a escravidão não foi tão cruel, que era branda porque os senhores de engenho e as escravas se relacionam e em que circunstâncias aconteciam essas relações. Na abertura do livro, descreve que nasce uma nova nação, que é a mistura do branco, negro e indígena. Que o racismo não é institucionalizado, no sentido de não ter lei de segregação, mas sabemos que a segregação se deu por costume; nos Estados Unidos se deu por lei e aqui no Brasil se deu por costume. Isso foi um artifício para não se discutir racismo no Brasil, para dizer tem gente misturada, existe branco,  negro e não precisa se falar em racismo.

A ditadura militar perseguiu vários blacks no Rio de Janeiro, por medo do pessoal se inspirar nos movimentos norte americanos, porque não queriam transparecer que existiam diferenças raciais no Brasil. O filme do Simonal mostra isso, quando ele é chamado pelos militares, e interpelam ele por uma letra, afirmando que não existe racismo no Brasil e pregar a ideia de que somos todos uma mistura.

(En)Cena – O antropólogo Munanga, fala em uma das suas obras que o racismo no Brasil, muito mais que qualquer parte no mundo, se dá numa lógica de crime perfeito. Porque dificilmente a gente conhece por vias institucionais, pela grande imprensa, quem são as vítimas, o rosto, a história de fato, e muito menos quem são os algozes. Porque isso cria a falsa sensação de que os crimes de racismo não ocorrem, porque eles também não são noticiados na mesma proporção.

Mauro Baracho – Eles até são noticiados, a gente vê muitos crimes de injúria. Mas é tudo pensado para não punir os agressores, principalmente na separação do que é injúria racial e racismo. Porque racismo é quando ofende um povo, e a injúria é uma questão individual […]. Ao pensarmos como povo, e se uma pessoa me ofende  me faz uma injúria racial, o que impede dela cometer o mesmo crime com outra pessoa negra? Não é comigo, porque eu não tenho uma característica da cor da pele que ela vai fazer isso, ela pode fazer isso com qualquer outra pessoa. É um crime perfeito porque nesse sentido de quem comete, além de sair impune, quem denuncia sai como chato, o extremista. E ao longo da história, percebemos que a galera vai criando mecanismos para abafar essas injúrias raciais. Eu lembro da minha mãe, que é preta, ao chegar e contar para ela sobre episódios de racismo, ela dizer que isso tudo era cisma.

O jornalista Carlos Medeiros fala dessa questão da cisma, que as pessoas falam que racismo é cisma, ele fala que é ‘complexo de cor’ que é a ideia de que os pretos já são cismados, veem racismo em tudo. Então, essa questão de crime perfeito, a pessoa que sofre o racismo é vista como chata, extremista e ‘mimizenta’, e a pessoa branca, como liberdade de expressão, ou são brincadeiras.

(En)Cena – Vejo muito nas universidade um movimento crescente de descolonização das subjetividades, como eles chamam, principalmente os filósofos, sociólogos, e alguns psicólogos  no sentido de fazer com que a gente repense a nossa linguagem. Que a nossa linguagem foi construída também em cima de uma lógica bastante excludente, de uma lógica de separação, de uma dualidade. Um exemplo, a casa onde mora o presidente dos Estados Unidos é a casa branca, nos contos de fadas vemos a Branca de Neve. Então, tudo que está relacionado a brancura, a branquitude coloca-se como aspectos positivos e tudo que está relacionado a negritude, normalmente eram associados a aspectos negativos.

Percebo que muitas pessoas se incomodam quando essas questões são levantadas, e o cuidado que deveríamos ter, eu imagino, é justamente nessa dimensão mais elementar que é na linguagem. Por isso, que talvez as piadas racistas, de fato, elas têm que ser confrontadas, mas tem um grupo crescente  de pessoas que atacam o politicamente correto, elas querem ter o direito de rirem das outras pelas suas particularidades, inclusive são pessoas que consideram que o mundo está mais chato porque elas não conseguem, por exemplo fazer uma piada com um negro, um homossexual, um judeu. Como você vê isso? Pois, o tempo inteiro eu como professor escuto isso, de vez em quando, “eu não posso mais me expressar agora”. É como se a liberdade de pensamento e de fala estivesse acima de qualquer coisa, inclusive da integridade do outro, parece que há uma distorção.

Mauro Baracho – Sim. Tem até um documentário chamado ‘O riso do outro’, que fala exatamente disso. As pessoas falam que não podem se expressar, e quando você aponta algumas piadas racistas, elas se sentem cerceadas, então ela quer ter o direito de ser racista, direito de ser homofóbica, direito de ser machista.

Os Trapalhões, cresci nos anos 90 vendo o Didi fazer piadas racistas com o Mussum, e eu ia para a escola e os meninos reproduziam as piadas em mim e em outros meninos negros, e era brincadeira, era piada. E eu não gostava daquilo, e  duvido que uma pessoa preta vai curtir esse tipo de piada. E se a gente reclamasse, seria o cara excluído, o cara chato; então, isso tem uma questão de socialização.

Quando a gente começa a falar que as coisas não são legais, as piadas racistas, homofóbicas, a galera começa a se sentir ofendida por não poder fazer mais.

Ouvi um comentário que estão acabando com a alegria do brasileiro, aí a gente vê que a alegria do brasileiro é diminuir mesmo, diminuir gente preta, diminuir pessoas gays, mulheres. Porque para eles, o humor é isso, é fazer piada com pessoas que já passam por um processo muito difícil por serem gays, por serem negras, por serem mulheres.

Tiveram pessoas defendendo as manifestações ‘charlotte’s view’ nos Estados Unidos em 2015, que defendia o ato como liberdade de expressão. Eles partem da ideia de que liberdade de expressão é falar o que quiser doa a quem doer, e o humor tem essa ideia deliberal também, que não pode ter tabu ou barreiras. E os meios que defendem isso são sempre os mesmos, Danilo Gentili, essa galera que nunca teve a menor graça mas só chegou onde chegou porque o Brasil é um país muito racista, muito homofóbico, muito machista e sádico. Que sente prazer em ver pessoas como Danilo Gentili, Léo Lins, Sílvio Santos humilhando pessoas. Sílvio Santos levava travestis no seu programa para fazer piadas da cara delas, em pleno domingo a noite no horário nobre. E essas pessoas só são permitidas a espaço na mídia se forem caricaturas, como Vera Verão, o Jorge Lafond. Porém, só era aceitável quando era pra fazer rir. Relação de poder é isso, você se afirma, diminuindo o outro.

(En)Cena – Sobre a questão da apropriação cultural. Acaba surgindo na imprensa alguns grupos que aderem a artigos que são da cultura negra, começam a ser colocados como moda, ou um estilo, tirando inclusive, as características iniciais que tem até uma conotação política … Fazem uma mistura geral para relativizar a ação. Achei interessante o seu post sobre o alisamento de cabelos.

Mauro Baracho – As pessoas usam isso quando a gente fala de apropriação cultural, primeiro que começam a achar que apropriação cultural é quem pode ou não pode usar turbante, quem pode ou não pude usar tranças. Porém, estamos discutindo processos históricos, de culturas que foram marginalizadas, dita como atrasadas, que tiveram seus processos culturais marginalizados no ocidente e hoje elas são legais desde que sejam em corpos brancos. Quando apareceram três atrizes brancas, Mariana Ximenes, na capa de uma revista usando turbantes. Então quando uma pessoa negra usa um turbante na rua é apedrejada, chamada de macumbeira, mas quando uma pessoa branca usa um turbante é a coisa mais descolada do mundo. As pessoas vem fazer essa falsa simetria de que se for por esse lado, pessoas pretas se apropriam da cultura branca quando alisam o cabelo, já partem para uma premissa totalmente errada, o cabelo é um traço genético.

E a questão das tranças é um elemento cultural no sentido que ela já foi usada para transmitir significados além do tempo, dizem que na época de escravidão as tranças eram usadas para desenhar rotas de fugas, e estamos falando de penteados e não de textura de cabelo. E as pessoas pretas não alisam os cabelos para apropriação da cultura branca, mas para serem aceitas, pois crescem tendo vários padrões de nariz fino, cabelo liso. Ninguém que alisa o cabelo toma o lugar de uma pessoa branca.

(En)Cena – Você que está dentro da universidade, eu percebo que dentro do cientificismo, que é aquela ciência mais dura, dentro daquelas ideias de pessoas que acreditam que a ciência é a única forma de explicar os fenômenos, há uma ciência patriarcal, de origem branca, muito influenciada pela língua inglesa, bastante liberal do ponto de vista econômico. Essa ciência tem uma tendência a se colocar como uma espécie de universalizante, no sentido de desconsiderar os outros saberes. A gente vê isso muito claramente no Brasil quando os saberes populares relacionados a medicina e a linguística, a dinâmica dos cuidados dos povos indígenas e povos negros foram totalmente excluídas dos debates públicos e também não foram considerados como ciência no sentido mais amplo. E isso eu ainda percebo no meio acadêmico, não sei se você também percebe isso no meio acadêmico, uma supervalorização do que seria o científico, mas sem entender de forma mais profunda de onde vem esse científico; se esse científico inclui esses saberes tradicionais ou se ele exclui os saberes tradicionais. Os estudos do francês Edgar Morin, apontam que não é mais possível explicar o ser humano a partir de um pressuposto, de um paradigma, por exemplo, o paradigma científico positivista; ou a gente se abre para outras formas de interpretar esse sujeito e entender esse sujeito ou a gente está fadado ao fracasso.

Mauro Baracho – Se tem uma falsa ideia de que a ciência é neutra, e a academia também não é. Ainda se tem essa resistência, principalmente pessoas pretas e indígenas quererem produzir outras narrativas. Eles gostam de pesquisar o negro, os indígenas, mas quando entra uma pesquisa de branquitude, as pessoas ficam receosas. A minha pesquisa é sobre masculinidade negra, pesquiso o primeiro grupo de masculinidade negra de Belo Horizonte, onde homens pretos se reúnem para discutir masculinidade negra, as questões que atravessam os homens pretos, porque até então a gente só via discussão de meninas pretas. E em Belo horizonte, já deve ter em torno de um ano e meio que eu pesquiso sobre o assunto, e fui muito guiado a pesquisar sobre isso por conta das minhas leituras de autoras negras. Quando eu entrei no mestrado, o grupo estava surgindo com dois homens pretos que foram em um encontro de masculinidade que só tinham homens brancos […]. O interessante foi que depois de um tempo, começaram a levar os pais, os filhos para debaterem.

(En)Cena – Você chama atenção para a construção de quilombos por parte da população negra. Quilombos que podem voltar a replicar estruturas hierárquicas. Do que você estava falando exatamente?

Mauro Baracho – Está na moda falar em construção de espaços, mas não se pode construir um espaço exclusivo para gente preta sem considerar uma série de coisas. Enquanto estiver replicando lá dentro estruturas hierárquicas, no sentido de por ter um título acadêmico, uma visibilidade maior, você tem mais prestígio que outras pessoas pretas. E isso é um cuidado que a gente deve ter nessas estruturas e várias áreas da nossa vida.

A gente tem que considerar uma série de coisas, por exemplo questões de autoestima, saúde mental. Eu criar um quilombo, um grupo de pessoas pretas para reunirem, ou criar uma roda de conversa para reproduzir hierarquias no sentido de que eu posso falar porque tenho um título acadêmico, como se eu tivesse mais prestígio, sem fazer violência psicológica, afinal a maior parte dos suicídios é em população negra.

(En)Cena –  Você falou de uma questão que ocorre no Brasil que é a quantidade de ideação suicida seguida de suicídio da população negra, principalmente os jovens, algumas pesquisas mostram que são de 2 a 3 vezes maior a ocorrência nessa população. Me fez lembrar também de alguns dados que são levantados, de vez em quando, sobre a solidão entre as mulheres negras, principalmente entre as mulheres a partir da meia idade. Esse é um fenômeno que aliado ao próprio fenômeno do racismo estrutural, acaba ceifando vidas, pelo menos do ponto de vista psicológico, afetando muito a saúde mental dessas mulheres. Você conhece algum projeto em Belo Horizonte, ou no Brasil, ou algum autor que trabalha essa questão da solidão entre a população negra em especial as mulheres ou a população em geral?

Mauro Baracho – Sim. Essa questão da solidão é pautada pelas mulheres pretas na década de 80, Laura Moutinho, Sueli Carneiro, Claudete Alves, Ana Cláudia Pacheco; são todas autoras que produziram sobre a solidão da mulher negra. Que não se dá somente na área afetiva ou sexual, a solidão no sentido também mais geral. A medida que tem aquela pirâmide que coloca a mulher preta como a base da pirâmide, e outra, não acredito que em quilombos não se discuta a solidão da mulher preta. De fato, existiu a solidão da população negra no ocidente como eles gostam de colocar, e a solidão da mulher preta implica em todo o estado da pirâmide. E é um assunto que todos nós deveríamos refletir, e não deve ficar só restrito nas meninas pretas debatendo as mulheres pretas. Então, quando eu comecei a falar sobre isso, a galera curtiu porque tinham poucos homens falando sobre isso, tocando nesse assunto. De fato, isso não é um assunto fácil de ser falado, é um constrangimento, isso toca em algumas coisas, vai nas feridas. No livro da Claudete Alves, vai discutir essa questão de os homens negros que ascendem porque casaram com mulheres brancas. Ela quem traz essa implicância com os homens negros. Então, a solidão da mulher negra é um mix de machismo e racismo.

(En)Cena –  Você fez um post que me chamou atenção falando sobre as pessoas que são vítimas de racismo, como elas paralisam diante do racismo. Como isso ocorre? Já que você relatou que já foi vítima de racismo.

Mauro Baracho – Eu fiz aquela reflexão baseada em um livro. A gente estuda o racismo mas não espera por ele. Essa paralisia se dá por conta do encontro que temos entre a ideia de nós mesmos com a percepção das pessoas em relação a nós, você se vê objetificado e isso nos paralisa.

(En)Cena – Qual sua opinião pessoal sobre o futuro do nosso país em relação a um debate como esse, quais são suas perspectivas? Você acha que a gente está trilhando um caminho onde a gente vai amplificar essas vozes, muitas pessoas ficaram decepcionadas com os rumos políticos que tomamos nos últimos quatro ou cinco anos com uma virada para a extrema direita. Onde conquistas sociais que foram alcançadas nos últimos 20 anos foram postas em xeque, foram desafiadas, e a gente vê muitas pessoas desanimadas, são militantes e outros que veem esse cenário todo como um combustível para continuarem mais militantes ainda.

Mauro Baracho – Eu também estou um pouco pessimista, mas também não é algo que me faz desistir. Porque essa ascensão da extrema direita é uma tendência mundial, também não tenho perspectivas boas no Brasil, de que as coisas vão melhorar. Acho que tendem a se manterem. Independente de quem seja, vai continuar difícil. Talvez a gente ache que um governo mais progressista  ajuda para que caminhem melhor. O genocídio da população negra se intensificou nos 13 anos de PT, enquanto não se colocar o debate racial como centro do racismo e da escravidão as coisas vão continuar, não vão mudar muito. Então, para gente vai continuar difícil.

(En)Cena –  Agradecemos por sua participação.

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O educador do presente e do futuro: (En)Cena entrevista Adriana Ziemmer Gallert

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Durante recente participação em live com os alunos do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, a professora Dra Adriana Ziemmer Gallert, falou acerca da educação como algo que nos faz pensar muito sobre o futuro e com ele as mudanças necessárias para se adaptar às rápidas transformações. Adriana pontuou sobre a necessidade de o profissional adaptar-se ao contínuo aprimoramento como pessoa e, também, como educador. “Acredito que um professor que tenha consciência dessas questões é um grande fator positivo na vida do acadêmico”, comentou Adriana.

Dentre outros tópicos destacados na entrevista, a educadora também enfatizou que a pandemia tem gerado um enorme impacto na educação e na vida dos alunos e professores, pois mesmo aqueles que antes tinham, ou mesmo ainda têm, resistência em relação ao uso de plataformas digitais se vêm forçados à adaptação, ao aprimoramento.

Adriana trabalhou por muito tempo no Ceulp/Ulbra, voltou para o Rio Grande do Sul há cerca de 3 anos e meio, tem Mestrado e Doutorado em educação pela UNB, é professora na Ulbra do Rio Grande do Sul e coordenadora acadêmica da unidade Guaíba e, também, no Rio Grande do Sul, sendo que em Palmas atuou na direção acadêmica. Confira este e outros tópicos na entrevista que segue:

(En)Cena – Como que fica o professor nesse contexto de mudança?

Adriana Ziemmer Gallert – Falar sobre o professor para mim é sempre uma paixão, eu gosto muito de falar e fazer reflexões sobre a nossa profissão. É uma profissão que eu escolhi para mim e que me alegra muito frente a tantos desafios que nós temos, primeiro a gente precisa pensar sempre, eu penso que a nossa profissão é uma profissão de intensas mudanças, o tempo todo nós somos desafiados a repensar as nossas práticas, porque o tempo todo nós estamos inseridos no contexto social, é uma profissão diretamente relacionada com pessoas e, sendo relacionada com pessoas, nós estamos inseridos em contextos sociais, culturais, políticos, econômicos, enfim, estamos em meio a esse todo no qual nos traz muitos desafios para que nós estejamos a todo momento sendo impulsionados para mudar, só que ao mesmo tempo a nossa profissão se constitui com uma tensão constante porquê nós somos profissionais que sabem que precisamos mudar e estudar as mudanças mas realmente alguns de nós têm dificuldades e é resistente à mudanças, nós temos culturalmente, dentro da profissão, um grupo grande de profissionais que sabe das dificuldades mas que realmente não encara, não enfrenta essas mudanças. É especial falar sobre isso nesse contexto porque nós estamos agora vivendo um momento onde nós somos muito tensionados pela mudança dado o contexto que estamos de pandemia, isolamento social e a reconstrução do fazer docente.

(En)Cena – Você acredita que não vai ser possível mais, mesmo que nós queiramos, voltar a ser o que era porque, por exemplo, os alunos já estão entrando na onda de interações que não são mais aquelas interações “clássicas”, “tradicionais” e que já são mediadas por dispositivos eletrônicos para tirar dúvidas. Enfim, então a gente vai ser forçado a se reinventar, na sua opinião?

Adriana Ziemmer Gallert – De uma hora para outra nós de turmas presenciais fomos desafiados realmente a nos reinventar, a nos recriar dentro de um cenário muito novo, novo como nós conversamos na outra live que não é tão novo assim, mas novo no sentido de ser professor com ferramentas novas, com ferramentas diferentes que antes nós conhecíamos mas ainda não usávamos ou não conhecíamos realmente e precisamos aprender muito rapidamente a usar e com certeza isso traz um impacto muito grande, muito significativo nesse sentido. No momento em que nós escolhemos a nossa profissão, essa profissão tem relação com algo pessoal da nossa vida que nos leva à fazer a escolha por estarmos nessa profissão e esses motivos que nos levaram a fazer essas escolhas estão relacionados com situações da nossa história e, quando nós nos deparamos com a profissão nós vamos adentrando no universo que demanda formação e desenvolvimento de competências tanto pessoais quanto profissionais necessárias no cotidiano.

 Você mencionou os mecanismos de defesa frente às mudanças quando aquele contexto de trabalho se torna uma espécie de rotina e não provoca a transformação da mudança, não traz a necessidade de mudança e é meio natural que haja uma espécie de comodismo em relação a fazer as mesmas práticas e nesse contexto fomos desafiados a mudar nosso perfil, o nosso jeito de sermos e isso apresenta para nós uma mudança em relação à concepção do que é efetivamente exercer essa profissão, o que significa realmente sermos professores neste contexto, entender que a profissão passa por um contexto diferente de desafios e esses desafios com certeza vêm para ficar, acredito muito que a docência não será mais a mesma quando nós voltarmos ao ensino presencial.

(En)Cena – Um aspecto que você relatou na última questão que me chamou a atenção também e que de vez em quando eu até penso sobre isso, sobre a ideia de nós profissionais da educação de fato assumirmos essa área, assumirmos que essa é a nossa bandeira no caso e não reforçar alguns discursos (claro que a gente tem que lutar pela melhoria da categoria e, também, para que as coisas melhorem para que nós tenhamos cada vez mais condições de exercer a profissão).

Adriana Ziemmer Gallert – Sim, como a nossa profissão se configura dentro do contexto das escolhas que nós fazemos e no espaço que nós ocupamos, nesse momento nós temos também o cenário do valor da educação e do valor da ciência frente ao cenário da pandemia.

Fonte: Acervo pessoal da entrevistada

A necessidade que eu vejo, nós enquanto universidade, é de repensarmos muito o nosso trabalho e o nosso papel também no contexto de profissionais, professores no ensino superior que estão preparando profissionais para exercerem as suas profissões, as suas escolhas profissionais, isso tem sido um desafio muito grande nesse momento, e que tem nos levado internamente na universidade a reflexões muito ricas e muito valiosas, porque nós pensamos assim, nós estamos atuando como professores num contexto que nós não fomos preparados, ninguém foi preparado para viver a vida numa situação de pandemia, nós não fomos preparados para isso e aí nós estamos dentro da universidade nesse momento tendo o desafio e, digamos assim, um privilégio também de preparar profissionais para esse contexto, por que que eu falo do privilégio também? Os profissionais que nós na universidade preparamos, que terminaram o seu curso de graduação por exemplo no ano passado, os nosso egressos concluíram sua formação, são formados pela nossa universidade, eles estão atuando nesse contexto e no ano passado nós não preparamos eles para atuar e serem profissionais no cenário da pandemia.

Os estudantes que estão conosco hoje, estão nas nossas aulas tendo a oportunidade de refletir conosco sobre como ser um profissional nesse contexto ou então como ser um psicólogo no contexto da pandemia, como ser um engenheiro no contexto da pandemia, como ser um farmacêutico no contexto da pandemia, como ser um professor de educação básica no contexto da pandemia.

(En)Cena – E a gente não fica só na perspectiva de um cenário futuro, pois já estamos inseridos nisso, nessa problemática.

Adriana Ziemmer Gallert – Exatamente, isso passa a fazer parte do contexto da formação, inclusive hoje de manhã eu estava assistindo a webinar do representante do Conselho Nacional de Educação onde ele trazia exatamente esse desafio para nós no ensino superior, nós precisamos repensar a formação porque nós precisamos inserir dentro do nosso contexto de formação discussões e o desenvolvimento de competências profissionais necessárias para atuar em situações muito difíceis porque nós não sabemos quando de repente novas situações como essa vão acontecer, infelizmente.

A humanidade precisa se preparar para viver situações assim novamente… se uma vez aconteceu, outras vezes podem acontecer e nós precisamos ter uma estrutura organizacional para isso, e o papel da universidade é esse de preparar realmente esses profissionais para contextos diferentes, contextos desafiadores… então essa tem sido uma tônica muito forte de discussões dentro da universidade quando a gente pensa o papel do professor e a importância do professor está muito aberto a aprender, a trabalhar novas competências, tanto dele como professor nos processos de ensinar, de aprender, de avaliar quanto preparando os profissionais para atuar nas suas áreas dentro de contextos como esses que são muito difíceis.

(En)Cena – E esse professor de hoje, o professor do presente e o professor do futuro, como construir esse professor? Nós não vamos poder usar as mesmas metodologias… O que é metodologia ativa? E o que é aprendizagem ativa?

Adriana Ziemmer Gallert – Falar sobre metodologias ativas é um movimento e assunto bastante atual dentro do contexto do nosso trabalho que vem como um processo, digamos assim, tem um processo pedagógico, que enquanto princípio ele já vem há muito tempo sendo discutido, ele não é algo totalmente novo, mas enquanto conceito sim, é um movimento grande, que tenta incentivar os professores que utilizam metodologias ativas nas suas práticas e mais uma vez nós precisamos ter dentro da educação e da pedagogia um entendimento da questão dos modismos pedagógicos.

Então, às vezes o professor hoje compreende – muitas vezes sem um estudo mais aprofundado em relação ao que são as metodologias ativas – que, por exemplo, utilizar recursos digitais nas suas aulas já significa estar trabalhando com metodologias ativas e na verdade não é isso, na verdade é uma simplificação do conceito de metodologias ativas, que por sua vez tem outros princípios e outros conceitos que precisamos entender e um deles é realmente compreender que dentro desse processo, professor e alunos são ativos no ensino-aprendizagem, se o processo for presencial, se ele for a distância, se ele utilizar recursos digitais… isso passa pelo planejamento do professor. Então está muito mais relacionado a uma concepção do que é a aprendizagem efetivamente para que as metodologias sejam pensadas, para que a aprendizagem seja realmente eficaz.

Fala-se que a metodologia ativa tem como princípio uma aprendizagem ativa e quando a gente fala em aprendizagem ativa isso também traz para mim uma reflexão em relação ao aprender e o que é aprender efetivamente, quando nós nos mobilizamos para buscar algo novo para aprender e entendemos que sempre o processo de aprendizagem perpassa por algo que acontece no sujeito que está aprendendo e esse sujeito que aprende, quando ele aprende efetivamente, quando ele se apropria de algo, alguma coisa modifica nele, seja nos processos cognitivos, seja nos processos subjetivos de aprender… ou seja, há uma transformação, há uma mobilização diferente dentro desse sujeito, a aprendizagem aconteceu e ela foi ativa porquê houve uma transformação, houve uma mobilização desses processos dentro do sujeito e aí eu até questionaria dizer e associar a palavra ativo com aprendizagem, ela é sempre ativa quando ela realmente acontece independente até do método porque o processo é dentro de nós, é dentro desse sujeito que está aprendendo.

(En)Cena – É, me parece que no método tradicional isso também ocorre quando há obviamente essa volição, essa vontade por parte do acadêmico, do educando. O que diferenciaria então, nesse caso? Por que a gente teria que falar de metodologia ativa?

Adriana Ziemmer Gallert – Então, parece que a aprendizagem independe do método. Digamos assim, que no entendimento desse conceito que eu coloquei que a aprendizagem está relacionada a essa transformação de processos sim. Se nós formos pensar, o método que você aprendeu e o método que eu aprendi quando estávamos na escola, que era um método tradicional, também foi uma boa aprendizagem. Nós também aprendemos quando éramos crianças, adolescentes…

A necessidade da mudança nos métodos de ensinar é porque compreendendo a aprendizagem dentro do contexto em que nós estamos, a sociedade hoje é outra, nós estamos inseridos em um contexto cultural, no contexto social onde a interação entre as pessoas é muito intensa, em que as pessoas são protagonistas do processo de sua vida, elas querem participar, elas tem vontade de falar, de interagir, de se posicionar e tudo isso traz então para dentro do processo de trabalho do professor a necessidade realmente de um replanejamento e pensar quais então são as estratégias metodológicas mais adequadas, não para que a aprendizagem seja ativa mas para que o sujeito se sinta inteiro no processo de aprendizagem, para que ele se sinta motivado e queira participar das atividades que são propostas e aí há então a necessidade de pensar metodologias ativas.

(En)Cena – Não é possível inferir que só pelo fato de estarmos conduzindo as aulas de forma remota isso, por si só, seja de fato uma metodologia ativa, sim?

Adriana Ziemmer Gallert – Exatamente, se o entendimento do conceito de metodologias ativas fossem simples assim, ou seja, só focar em recursos digitais e utilizar e dizer que estou fazendo metodologias ativas na minha aula então automaticamente esse contexto em que nós estamos colocaria para nós que estamos todos vivendo no contexto de metodologias ativas e não é isso. Muitos professores neste cenário de pandemia não conseguiram fazer exatamente esse entendimento e esse trabalho pedagógico de retornar as suas aulas com metodologias virtuais, com tecnologias virtuais para colocar as pessoas num processo ativo… aquilo que o professor muitas vezes fazia na  aula presencial é que ele ficava um tempão falando como se a aprendizagem acontecesse somente dessa forma, só pelo ouvir e a gente sabe que não é somente assim pois é muito fazer, vivenciar, o conviver para que aquela aprendizagem se torne realmente efetiva, então muitos professores não conseguiram se adaptar…

Os professores marcam uma aula online com os alunos e eles ficam falando muito tempo e aí nós precisamos pensar nesse tipo de aula que, quando nós falamos o aluno está em casa participando da nossa aula, ele tem muitas variáveis em volta que tiram a atenção dele porque ele está dentro do contexto da casa dele, está junto com a família, está junto com o filho, com variáveis concorrentes e muitos deles não têm espaço adequado e ideal dentro da sua casa para poder participar das aulas online e aí se o professor ficar falando, falando… perdeu esse aluno, perdeu mais do que na aula presencial porque ele se distrai por conta da situação que acontece, então até na nossa aula de metodologias remotas nós precisamos pensar no planejamento do tempo dessa aula, quanto tempo é possível ficar falando e que estratégias eu tenho que usar dentro de uma aula virtual para que meu aluno saia da imagem da foto dele (Câmera Desligada) e ele se apresente, ele participe efetivamente daquele encontro e isso também é muito necessário.

E tudo isso passa então pelo planejamento, pela concepção que o professor tem do que é aprender dentro desse contexto, dentro dessa necessidade que as pessoas têm de falar, de interagir, de se posicionar, de serem questionados, de serem instigados para que os seus motivos pessoais sejam aguçados, isso é um grande desafio para os professores.

(En)Cena – Este processo de aprendizagem ativa, às vezes, parece ser algo difícil também para o aluno… qual sua dica para que haja a adesão deles?

Adriana Ziemmer Gallert – Nós precisamos mostrar para nossos estudantes, sempre, como a aprendizagem acontece de forma mais efetiva e o aluno, estudante, ele precisa entender que uma aprendizagem só de ouvir já passou… não é mais assim. Porque as informações mudam muito rápido, elas estão em muitos lugares, as informações podem ser acessadas a hora que nós precisarmos, elas estão mudando e nós temos que atualizar o tempo todo e transformar essa informação em conhecimento, aí sim a aprendizagem acontece e esse é o grande diferencial, e como que nós aprendemos a transformar informações em conhecimento sendo que nós estamos falando do ensino superior?

Trabalhar nesse sentido, de que aquele nosso estudante que ainda nos vê como uma fonte única de acesso ao conhecimento precisa compreender que não é mais assim, nós somos um dos recursos da aprendizagem em termos de conhecimento e, aí sim, nós somos um grande potencial e podemos contribuir com a vida deles em relação ao desenvolvimento das competências, que serão necessárias para a vida toda porque os conhecimentos vão mudar, outras competências profissionais também serão exigidas.

(En)Cena – O educador, neste caso, tem que ter a capacidade de atenção redobrada, já que obviamente tem muitos pontos a serem conectados, tem muitos setores ali dentro da dinâmica da sala de aula onde ele vai ter que ativar esses setores para não haver um processo de descompensação das partes, tipo uma pessoa que polarize muito o discurso… é um reinventar-se no final das contas. Enfim, mudando de assunto, especificamente em relação avaliação, teve ganhos? Teve prejuízos? Não mudou nada? Como você vê isso?

Adriana Ziemmer  Gallert – Bom, eu vejo que estamos todos aprendendo muito, primeiramente em relação a essas questões e quando a gente fala no processo das aulas, o jeito de ensinar, o jeito de trabalhar as abordagens, desenvolver as competências, propor atividades até que foi um processo menos doloroso, não tranquilo mas menos doloroso, mas quando chegou no momento das avaliações nesse período de isolamento social começamos a perceber que falar de avaliação nesse contexto é um grande desafio para nós pois eu penso que passa bastante pelo que você falou das nossas concepções, aquilo que nós acreditamos que é realmente educação.

Fonte: Acervo pessoal da entrevistada

Aquele professor que ainda está arraigado naquela concepção de que o processo é de transmissão do conhecimento, que ainda infelizmente não entendeu que esse não é mais o principal do nosso trabalho – ele continua sendo importante sim, pois o conhecimento continua sendo a base de nosso trabalho mas não é só isso, é o conhecimento a serviço de algo, do desenvolvimento de algo maior que são as competências -, esse professor que ainda está centrado só no conhecimento, para ele está sendo um sofrimento pensar nessa avaliação ou ele não está acreditando realmente.

Muitas vezes alguns deles estão vivendo no processo difícil de entender que realmente é possível utilizar as ferramentas diferentes para avaliar o desenvolvimento dos nossos estudantes, porque se eu estou centrado somente no conhecimento e para mim ainda a prova conceitual, aquela prova “o que é isso, que é aquilo?” é o que eu fazia no presencial, o processo avaliativo realmente não faz sentido dentro de um contexto onde nós estamos vivendo agora, porque o aluno tem acesso à internet, ele tem acesso aos materiais, ou seja, ele vai fazer avaliação com consulta sim e além disso eles têm grupos de WhatsApp no qual tiram dúvidas, onde o professor não participa… então quando eles têm dificuldades em alguma questão eles vão colocar lá, eles vão debater e eles vão aprender juntos.

Então para esse professor mais tradicional realmente é difícil. Eu fico imaginando, não consigo pensar exatamente qual é a solução que ele acha pra isso pois acho que não tem muita solução, mas o professor que já entendeu que o processo mudou, que o nosso trabalho é realmente potencializar o desenvolvimento de competências e para isso então nós vamos buscar os conhecimentos, nós vamos buscar as ferramentas que precisamos para desenvolver competências, para esse professor a avaliação tem outras possibilidades. Nós podemos utilizar o instrumento de prova? Podemos! Mas uma prova com questões que avaliam o desenvolvimento de competências e não uma questão onde eu encontro a resposta pesquisando no Google.

Além disso nós temos várias outras ferramentas também dentro desse universo de trabalho das plataformas, os ambientes virtuais aos quais possibilitam vários tipos de instrumentos de avaliação diferentes onde nós podemos sim criar atividades avaliativas que elas, inclusive, são mais trabalhosas, exigem mais do nosso estudante no sentido de que realmente as competências serão desafiadas no seu desenvolvimento. Então a avaliação nesse momento coloca em xeque as concepções que o professor tem, do que é aprender, do que é ensinar, do que é avaliar, o professor que já conseguiu dar um salto no seu desenvolvimento profissional, ele já consegue vislumbrar outras possibilidades, ele consegue construir outros caminhos que são sim coerentes com as estratégias que ele utilizou na própria ferramenta.

(En)Cena – O professor, hoje, não é um mero detentor de conhecimento. Ele é um mediador, um curador… mas o formato de centralização do processo educativo ainda é muito forte, sim?

Adriana Ziemmer Gallert – Eu  vejo que muitas vezes o professor está realmente centrado ainda no papel do professor como figura que detém o conhecimento, o papel daquele profissional que não pode errar, que tem que saber tudo sempre, que não consegue quando o aluno, por exemplo, faz uma pergunta em sala dizer assim: “nossa eu não sei, vou pesquisar, vamos pesquisar juntos, eu também preciso aprender, isso é novo para mim também”.

Esse professor que não consegue ter essa postura realmente tem dificuldades em aceitar que ele precisa aprender, e aceitar que ele pode sim dizer “eu não sei, eu preciso aprender”. E o professor que realmente se compreende como profissional em constante transformação é um profissional que sempre tem algo a aprender, que gosta de aprender, a gente precisa gostar de aprender, a gente precisa gostar de ver o quanto nós vamos nos tornando pessoas melhores à medida em que nós vamos aprendendo mais, conhecendo mais, nos desafiando, nos permitindo, também nos transformar e aprender algo novo, acho que isso é tanto do professor quanto do aluno, permitir-se viver situações diferentes, isso também impulsiona em nós processos de aprendizagem, e para esse professor é mais fácil, digamos assim, ver que, por exemplo, “ainda tenho mais a aprender, eu não sei tudo e nunca vou saber de tudo”…

(En)Cena – Gostaria de te agradecer pelo tempo que você dedicou para esta conversa…

Adriana Ziemmer Gallert – Eu agradeço muito o convite mais uma vez e gostaria de deixar um abraço a todos, pois é sempre muito especial estar com todos vocês.

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Distanciamento social e sensação de desamparo: (En)Cena entrevista a psicóloga Hareli Cecchin

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Durante uma das “lives” transmitidas pelo perfil da Psicologia no Instagram (@psicologiaceulp), no período de realização das atividades acadêmicas de forma remota, uma das entrevistadas do projeto PsicoLive foi a egressa do Ceulp/Ulbra, psicóloga Hareli Cecchin, que conversou com o prof. Sonielson Sousa sobre as suas impressões acerca da sensação de desamparo acentuada pelo distanciamento social.

O bate-papo/entrevista contou com a participação de vários acadêmicos de Psicologia e da comunidade como um todo, e durou cerca de 1h. Dentre os principais temas discutidos por Hareli, que é da Gestalt-terapia e da Fenomenologia Existencial, além de servidora da UFT e doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, eclodiram assuntos como ideação suicida, singularidades subjetivas, vida acadêmica, dentre outros. Confira este e outros aspectos no bate-papo/entrevista abaixo.

(En)Cena – Sobre o seu percurso acadêmico, que caminhos você seguiu?

Hareli Cecchin – Eu fiz Psicologia no Ceulp/ULBRA e lá tive a oportunidade de trabalhar como monitora do Laboratório de Medidas Psicológicas (LAMAP), e de trabalhar com o Projeta de Iniciação Científica, na época a Profa Irenides (coordenadora do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra) foi minha orientadora, e uma vez orientadora, sempre orientadora, não existe ex-orientadora. Já nessa época me interessei bastante pela pesquisa, e que possivelmente eu gostaria de continuar nesse caminho da pesquisa e talvez pensar num mestrado, doutorado, e assim que eu me formei tive a felicidade de conseguir um trabalho, comecei trabalhando no CRAS de um município do interior do Tocantins, lá trabalhei bastante com as mulheres beneficiárias do programa Bolsa-Família, e foi daí que surgiu a minha ideia de fazer um mestrado, trabalhei a questão de gênero, questão de empoderamento, fui pesquisar as mulheres do Programa Bolsa família para entender os efeitos do programa e se de fato conseguia empoderar as mulheres.

(En)Cena –  Então no mestrado já conseguiu fazer a interface com a Psicologia?

Hareli Cecchin – Sim, a interface com psicologia com a proposta do programa, que é o desenvolvimento regional, porque não temos mestrado de psicologia aqui no Tocantins, eu também não tinha condições de sair do estado, e a interface também com o que eu estava trabalhando, que era meu cotidiano de trabalho, a minha experiência profissional porque acho que devemos estar alinhados com nossa experiência enquanto profissional. Depois passei num concurso da UFT no campo de Miracema em 2014, comecei a trabalhar lá como psicóloga, lá eu comecei a atuar diretamente com os acadêmicos, dando suporte aos estudantes, e lá eu comecei a me deparar com as angústias dos estudantes, nós tivemos alguns casos na UFT de suicídios, o que nos deixou muito abalados, aí eu pensei que fosse o momento de ir pro doutorado com a proposta de construir um programa de prevenção ao suicídio para os estudantes, como uma maneira de dar minha contribuição.

(En)Cena –  Eu queria que você me explicasse um pouco a questão da ideação suicida. Como que a gente pode abordar esse tema tão delicado, sem que a gente ative alguns disparadores?

Hareli Cecchin – A questão da ideação suicida é tema muito delicado, às vezes até a mídia tem um certo cuidado em abordar. Eu tive uma amiga que ficou em depressão durante muito tempo, e ela disse que durante a campanha do setembro amarelo que falava do “Não ao suicídio”, ela só conseguia enxergar a palavra suicídio, não conseguia enxergar a palavra não; A grande proposta é a gente trabalhar a ideia de valorização da vida, como uma ideia do comportamento suicida como um todo, a ideação, a tentativa. Tem uma psicóloga que gosto muito especialista na área, Karina Fukumitsu, ela comparava as pessoas às plantas, como se cada pessoa fosse uma planta, e uma planta quando começa a morrer a gente percebe, porque as folhas vão ficando amarelas, a planta vai ficando diferente, então quem convive com a planta diariamente percebe. Nesse processo de morrência a planta não morre de um dia para o outro, leva um tempo, um processo é reversível. Então a grande questão é valorizar a vida, talvez perceber esse processo de morrência das pessoas, e atuar nele antes que a pessoa entre em crise, digamos assim.

(En)Cena – Você me fala isso e me lembra uma área da psicologia, a psicossomática, que, de certa forma, aborda esses sinais que vamos dando a partir do corpo. Você falou das plantas, das cores, das variações, eu imagino que quem convive com alguém numa situação que exija mais cuidado pode colaborar observando esses movimentos feitos pelas pessoas, ás vezes são até movimentos mais explícitos da forma como a pessoa se comporta, o aparecimento de algumas patologias recorrentes, por exemplo dores crônicas. Nesse contexto a gente sabe que tem uma pandemia em curso, antes mesmo da atual pandemia, essa do momento ela é biológica muito embora reverbera na condição psicológica também, mas já vinha uma pandemia, apesar de algumas pessoas não quererem admitir isso, relacionada a questões psicológicas. De que forma uma coisa pode agravar a outra nesse momento?

Hareli Cecchin – A grande questão da pandemia é que se alastrou, porque o mundo hoje é globalizado, as pessoas viajam e tudo mais, então a gente percebe que cada vez mais as coisas estão conectadas, uma coisa que começou lá na China chegou aqui no Tocantins. Mas ela afetou as pessoas de maneiras diferentes, então é importante levar isso em conta, aí muitas vezes, esse isolamento social pode ter agravado algumas situações que já vivíamos anteriormente, aí o distanciamento social só aprofundou, então a gente tem que observar que o isolamento ou distanciamento social para algumas pessoas é possível o home office, algumas pessoas não, algumas pessoas moram sozinhas outras tem filhos em casa. A atual situação afeta as pessoas de maneira diferente e talvez tenha aprofundado situações específicas. Eu tenho, por exemplo, um amigo que mora sozinho e sempre se dedicou muito ao trabalho, muitas horas, aí agora com essa questão do isolamento social e não poder ir ao trabalho, ele começou a ver e perceber o quanto o trabalho ocupava um tempo muito grande da vida dele.

(En)Cena – E até negligenciava outras áreas, provavelmente.

Hareli Cecchin – Isso, e as vezes até usava o trabalho como uma zona de conforto, e as vezes como forma de ter um tipo de recompensa, e com o isolamento social, ele começou a ficar muito incomodado de ter muito tempo em casa sozinho e a solução que ele encontrou foi pegar a chave da sala dela e ir para o ambiente de trabalho dele, a instituição permitiu pelo menos algumas horas por dia, porque ele disse que precisava se manter ocupado, e também nesse momento a gente não tem como fazer visita, ter um contato social, estar com grupos…

(En)Cena – Pelo menos é o que se espera, a gente sabe que algumas pessoas quebram, talvez seja justamente uma inabilidade de lidar consigo próprio.

Hareli Cecchin – Exatamente, essa situação dele de dar muita atenção para o trabalho isso já existia, mas a quarentena talvez aprofundou a situação e ajudou ele a perceber, de alguma forma.

(En)Cena – Eu não te perguntei qual a abordagem da psicologia você se identifica mais, ou abordagens, no plural. Tem como você falar um pouco sobre isso? A gente sabe que são muitas vertentes da psicologia, algumas podem passar por um processo de “hibridização”.

Hareli Cecchin – Eu sempre gostei bastante da Gestalt e da Fenomenologia Existencial, mas agora estudando os programas da prevenção ao suicídio eles comportam multi-teorias, a gente pode usar mais de uma desde que elas nos ajudem a dar soluções para o problema. A gente tem uma área aí que seria do Viktor Frankl, que estuda o sentido da vida, e ele é bastante estudado para fundamentar alguns programas de prevenção ao suicídio. Então eu tenho uma certa abertura teórica para aprender novas coisas.

(En)Cena – Isso é interessante. Inclusive, eu estava conversando com o Ulisses, que antes de tudo, nós somos preparados para sermos psicólogos, e o psicólogo ele, pelo menos essa é a minha concepção tem que estar aberto e essa abertura tem que ser com o olhar no cliente/paciente, tentando evitar essa rigidez, esse dogmatismo, eu acho isso bastante interessante. Claro que temos que nos preocupar em seguir uma linha mestra, um fio condutor, mas na medida do possível dialogar com outras áreas, não é nenhum problema. Então pegando o gancho, o Viktor Frankl fala muito que a maioria dos nossos desesperos contemporâneos estão relacionados com a ausência de sentido, e ele observa isso nos campos de concentração, ele já trabalhava com a Logoterapia antes, mas ele testifica suas teses quando ele mesmo é submetido ao confinamento nos campos de concentração. Eu percebo que a Logoterapia, que tem aspectos da psicanálise, mas tem muito da fenomenologia, ela é muito negligenciada, principalmente nos meios acadêmicos, eu percebo que tanto a Logoterapia quanto a Psicologia Analítica do Jung, que eu sou adepto. Você acha que se a gente desse mais um enfoque na questão da busca do sentido poderia amenizar muito os problemas que a gente vem passando hoje?

Hareli Cecchin – Sim, com certeza. Pois um dos grandes problemas do isolamento social é algumas pessoas não conseguem entender a importância do isolamento, e algumas pessoas também observa a questão de não ter um prazo para terminar essa quarentena, então construir um sentido mais amplo em relação a esse isolamento tem levado as pessoas a uma certa dificuldade. Eu estava assistindo uma outra live aí uma pessoa comentou que em geral, as nossas demandas elas são sempre externas, é demanda do trabalho, é a demanda da escola, a demanda da faculdade, é a demanda dos amigos, aí agora a gente se deparou com um momento que a demanda é interna: o que eu vou fazer com o meu tempo, o que vou fazer com tanto tempo livre, que sentido eu vou dar para esse momento, para esse tempo. E aí é uma coisa que as pessoas precisam se reorganizar e isso leva um tempo, até para se redescobrir: qual é o meu hobbie, quais são as coisas que eu gosto, coisas que eu gostaria de aprender que agora eu tenho oportunidade de aprender, de fazer um curso, de desenvolver um hobbie, então é um momento das pessoas olharem para dentro. Eu tenho inclusive alguns amigos que começaram a fazer meditação, psicoterapia, que é um momento de olhar para si próprio.

(En)Cena – Do ponto de vista da psicodinâmica, esse momento força, digamos assim, a fazer uma regressão da libido, no sentido de investir em nós mesmos, mesmo que isso represente um período depressivo, onde não tenho tanto contato com o mundo, Imagina se de fato a gente conseguir ver um sentido nisso, um sentido existencial, há muitos ganhos, ganhos primários, ganhos secundários. Com a sua experiência que você tem na UFT, em atendimento a acadêmicos, sua experiência na área de pesquisa, quais estratégias, você acabou colocando algumas aí como meditação, terapia, mas para as pessoas que não tem o perfil da meditação ou não tem como se submeter a um processo terapêutico, você teria algumas outras dicas para que essas pessoas enfrentem o isolamento/distanciamento que tem influência no desamparo?

Hareli Cecchin – A primeira seria a pessoa construir uma rotina e tentar seguir essa rotina todos os dias, isso nos ajuda muito a nos organizarmos, evitar passar o dia inteiro de pijama em casa, para algumas pessoas ajuda bastante quando a pessoa vai desenvolver alguma atividade de trabalho colocar uma roupa que seja mais parecido com aquele que usava no trabalho ou na faculdade, fazer algum exercício físico, intercalar atividades que a pessoa está mais sentada, está mais inativa com outras mais ativas, procurar também manter o contato com familiares, com os amigos, porque muitas vezes a distância geográfica não significa uma distância emocional, graças à Deus a gente tem a tecnologia, a gente pode se comunicar com as pessoas.

(En)Cena – Hoje o ambiente propicia muito esses encontros, são outras formas de encontro. Eu estava até vendo uma live da Teresa Amorim, da Gestalt Terapia do Rio de Janeiro, ela falando dessas novas formas de contato, que também é contato, pegando essa linguagem da Gestalt.

Hareli Cecchin – É o contato possível no momento. A gente precisa também investir sempre nas redes comunitárias de cuidado, então a UFT, por exemplo, desenvolveu o programa Escuta solidária, 10 pessoas se cadastram e estão fazendo ligações para pessoas idosas, para conversar com eles porque em geral eles tem dificuldades de fazer uso da tecnologia, são grupo de risco, as pessoas mais aconselhadas a ficar em casa, alguns moram sozinhos ou com o companheiro, então para que a gente possa oferecer esse cuidado, oferecer esse carinho para os nossos familiares, e para as demais pessoas, que a gente possa dar esse amparo para as pessoas.

(En)Cena – Esse serviço é voluntário, eu imagino.

Hareli Cecchin – É, ele está sendo feito com os estudantes da UFT e com idosos que foram cadastrados pela Secretária de Saúde.

(En)Cena – Mas ele não envolve um estágio, né?

Hareli Cecchin – Não, ele foi criado para tentar fazer frente na questão da quarentena.

Fonte: Arquivo pessoal.

Sonielson Sousa – Entendi, e acaba mobilizando os dois lados, os acadêmicos que entram na dinâmica de um trabalho com forte apelo social e os idosos, obviamente, que são os grupos que precisam de nossa atenção nesse momento. A Muriel (professora do curso de psicologia do Ceup/Ulbra) escreveu aqui: “Soni, só complementando o que você disse sobre a Logoterapia, o quanto as pessoas confundem quando Viktor Frankl disse sobre a espiritualidade com a religiosidade”. Isso Muriel, tanto Viktor Frankl quanto Jung na Psicologia Analítica, ou mesmo Groff na Psicologia transpessoal, eles trabalham a espiritualidade do ponto de vista da ciência da religião, não a religião como confissão de fé, não tem proselitismo nesse sentido. Então são áreas que a psicologia como ciência pode e deve se aproximar, respeitando os limites éticos, com abertura para a pesquisa, para o contraditório, sem negar, obviamente, a dimensão espiritual do sujeito, porque é como se a gente fosse lidar com o sujeito que está amputado… se a gente observar somente os aspectos psicológicos, culturais e biológicos. Então tem uma dimensão aí, a partir dos anos 80 a ciência clama também por essa outra dimensão da existência humana, que é a dimensão espiritual que está muito além, que é também como você falou Muriel, de uma questão meramente religiosa.

Hareli Cecchin – E muitas vezes a questão espiritual ajuda as pessoas a darem um sentido para a vida, para dar um sentido para os acontecimentos, a gente viu aí várias pessoas se reunindo para fazer orações, para pedir a um ser superior por uma certa ajuda, para que possa olhar para a humanidade. Então a questão da espiritualidade e da religiosidade, de certa forma, ajuda as pessoas a darem um sentido, e isso deve ser respeitado e deve ser levado em conta.

Sonielson Sousa: Deve ser acolhido dentro do processo, e valorizar dentro da existência de cada um, afinal de contas é a experiência dele ou dela que está em jogo.

Hareli Cecchin – Sim, e muitas vezes é uma experiência que traz uma sensação de pertencimento, uma coesão para o grupo, então tudo isso tem que ser observado, a gente precisa considerar isso e ter respeito em relação a isso.

Sonielson Sousa: Perfeito. A Irenides está colocando aqui se você puder falar um pouco também, essa pausa faz a gente olhar para si próprio e isso às vezes dá medo. A gente não está muito acostumado a olhar para a gente mesmo, a gente vive numa sociedade que é muito para o externo, se a gente fosse usar um termo analítico seria uma sociedade voltada para a extroversão e não para a introversão.

Hareli Cecchin – Exatamente, a Karina Fukumitsu fala bastante de um termo chamado morada existencial, que da mesma maneira que a gente mora numa casa e que uma casa tem vários cômodos e as vezes na nossa casa a gente tem o quarto da bagunça, que tudo que estraga a gente coloca lá, ou um presente que a gente ganhou e não gostou, ou foi de uma pessoa com quem a gente não se dá bem a gente coloca lá, e as vezes a gente tem o quarto da bagunça que chega um dia e a gente não consegue nem entra no  quarto, porque a bagunça tá muito grande, porque a gente adiou algumas decisões, a gente precisava ter desapegado de algumas coisas. Então da mesma maneira que a gente tem uma morada física a gente tem uma morada existencial, e aí as vezes a gente se envolve muito com trabalho, com várias demandas externas e deixa de olhar algumas questões internas, aí esse momento tá levando as pessoas a fazerem uma faxina na morada existencial, faxina é sempre muito difícil, é demorado, é desgastante, mas chega um dia que a gente precisa fazer. De repente a pessoa pode começar pela morada física mesmo, pelo guarda-roupa, pelos armários, e com isso também já fazer uma faxina emocional.

Sonielson Sousa – Isso mesmo. Eu imagino que tem alguns livros que podem nos auxiliar nesse processo, na fenomenologia existencial tem vários, na Logoterapia, eu me lembro muito do clássico inicial, o livro do Viktor Frankl, Em busca do sentido, que pode servir de um norte para que a gente consiga estabelecer uma conexão mais autêntica com o que estamos passando. No doutorado que você está fazendo, ou mesmo no percurso da sua construção da tua identidade profissional, teve algum livro que te marcou ou te marca até hoje?

Hareli Cecchin – Sim, eu sou muito apaixonada por todos os livros de Carl Rogers, mas pra quem não é da psicologia acho que O jeito de ser é um livro que qualquer pessoa pode ler, foi um livro que me marcou muito, me emocionou demais, acho que é um livro que pode ajudar as pessoas a olhar para si próprio, a pensar a respeito do se conectar com sua potência interior, com ser você mesmo, e a importância de respeitar o outro como ele é, acho que é um livro fantástico e muito fácil de entender. Eu tenho alguns amigos também que tem me ligado e falado assim: “Hareli, hoje eu sonhei com tal coisa”, “Hareli, sonhar com cobra é ruim? ”, porque agora como eles estão dormindo mais, estão sonhando mais. E estão incomodados com o sonho, eu falei olha vai ler o livro do Jung, O homem e seus símbolos, é um livro bastante fácil de ler, de entender. Aí você vai perceber que aqueles manuais de interpretação dos sonhos que a gente acha na internet não tem nada a ver. Que os símbolos vai depender de quem o sonhou, do que cobra significa pra você, do que cobra significa pra mim, e a questão dos sonhos, de se observar, de observar os símbolos ajuda muito também as pessoas se entenderem, é um livro que eu considero fantástico.

Sonielson Sousa – Eu gosto muito também. Hareli, a Lauriane colocou uma questão aqui sobre os grupos vulneráveis socialmente, como é possível evitar a sensação de desamparo, ou como a psicologia pode ajudar nesses aspectos em que há dificuldade de prover o básico para esses grupos.

Hareli Cecchin – Então, a grande questão da quarentena aqui no Brasil é que nós somos um país de uma desigualdade social, algumas camadas da sociedade não conseguem ter uma reserva financeira, então são pessoas que a partir do momento que param de trabalhar e param de receber, elas entram em uma situação de vulnerabilidade social e, às vezes, até de insegurança alimentar, e aí o que que acontece? Os profissionais da saúde, os profissionais que trabalham em hospitais e nas outras instituições de saúde, eles têm sido muito elogiados, mas a gente também tem os profissionais que trabalham na política pública de assistência social, que tem feito um trabalho primoroso para dar um suporte para essas famílias, principalmente para não deixar que essas famílias cheguem a passar fome. Nós temos psicólogos que estão atendendo gratuitamente algumas pessoas, que eu achei uma atitude muito bonita, e talvez também a gente precisaria se ajuntar para dar um apoio pra essas famílias que estão precisando de ajuda, e não só uma ajuda no sentido de consolo emocional, ajuda também no sentido de alimentos. E os profissionais hoje em dia, os psicólogos que trabalham no SUAS tem feito um trabalho maravilhoso, alguns, às vezes, até tentando fazer um acompanhamento familiar à distância já que não é possível estar visitando as famílias e tudo mais.

Sonielson Sousa – Que bom que tem essas práticas, também tenho colegas que trabalham no SUAS, tanto na área da psicologia quanto do serviço social, e eu vejo que o pessoal vem se movimentando bem aqui em Palmas, tentando atender as demandas. O Ulisses falou uma coisa interessante e eu gostaria que você comentasse um pouco, as vezes a questão semântica, como as palavras têm um peso, aí eu não tinha parado para pensar sobre isso, ele disse que tem procurado utilizar o termo recolhimento ao invés de isolamento. Como você pensa?

Hareli Cecchin – Seria uma opção interessante, porque a gente não precisa ficar isolado socialmente, talvez a gente pode até usar o termo recolhimento ou até uma distância social, mas a gente não precisa ficar isolado, porque a gente tem a tecnologia hoje em dia que nos ajuda a conversar com as pessoas, a ter algum tipo de contato, acho que essa talvez seja a grande diferença de outros séculos que a gente também teve grandes epidemias, e a gente lidou com isso de uma forma diferente, digamos assim.

Sonielson Sousa – A Muriel falou aqui novamente, ela coloca como sugestão um livro mais popular, é um livro de filosofia de linguagem bem acessível, do Leandro Karnal, O dilema do porco espinho, como encarar a solidão. É uma sugestão interessante, ele fala dessa dualidade que vem lá desde Schopenhauer, que nós somos seres que nutrem o aspecto interno, mas que ao mesmo tempo se relaciona, socialmente falando. Então por que esse nome o porco? Os porcos espinhos, no inverno, têm que dormir juntos, muito próximos, para poder conseguir manter-se aquecidos, e conseguirem ultrapassar aquelas noites mais difíceis. E sempre que eles se aproximam muito eles começam a se espetar. Então se eles ficarem separados eles vão morrer de frio, e se eles ficarem muito juntos eles também podem ter prejuízos. Me lembra aquelas questões da fronteira de contato. Se você puder falar um pouco.

Hareli Cecchin – Então, estudando um pouco de desenvolvimento pessoal, tem alguns vídeos da Gisela Vallin e do mentor dela, não estou me lembrando o nome, assim que eu lembrar eu falo. Eles falam o seguinte, da questão da distância saudável, dizem que em todos os relacionamentos a gente precisa encontrar qual é o tanto da distância saudável, e que em alguns momentos não é desprezo, é distância saudável pra você conseguir conviver bem com a pessoal, conseguir desejar que a pessoa viva em paz, viva feliz, sem tanto atrito. E aí a gente tem que ter certo cuidado com as distâncias porque quando a gente está longe demais de alguém a gente não consegue percebe-lo. A Karina Fukumitsu fala até assim, que quem está longe julga e quem está perto compreende. Então quando a gente tá muito longe a gente não consegue perceber os motivos da pessoa de ter feito aquilo, mas também quando a gente tá muito perto, as vezes a gente fica um pouco míope, as vezes muito perto a visão também embaça e a gente não consegue perceber o outro, algumas coisas vão passando meio desapercebidas. Então saber calibrar essa distância, saber lidar com isso é essencial. Nem perto demais, nem longe demais. Talvez essa quarentena está fazendo com que as pessoas lidem com isso, porque as pessoas estão convivendo mais proximamente, e estão tendo que resolver seus problemas. Eu tenho uma amiga que é advogada de família, disse que nunca teve que intervir tanto nas situações de tantos casais como agora. Ela falou que tem um casal que os dois são médicos e assim, estão brigando homericamente, ela falou assim: “se eu fosse juiz eu não deixava os filhos com nenhum de vocês dois, porque vocês dois estão doidos”. Mas por quê? Os dois trabalham muito e conviviam pouco, agora estão trabalhando pouco e convivendo muito, aí começa a ter uma percepção mais aguçada e mais aprofundada dos defeitos e das qualidades do outro. Então exercitar essa paciência, e muitas vezes é possível, mesmo que você está no mesmo ambiente da pessoa, exercer uma distância saudável também, isso é necessário dentro de uma família, e talvez também as pessoas terem uma oportunidade de passarem um tempo sozinhos, essa convivência o tempo inteiro não precisa ser algo forçado.

Sonielson Sousa – Algumas pessoas têm mais dificuldade disso, de fazer esse percurso interno, de olhar mais para dentro de si, observar quais aspectos estão incomodando ou que aspectos potencializam. E nesse sentido é como você falou, a quarentena, a gente não tá bem assim numa quarentena, seria mais uma recomendação geral, há um distanciamento social, mas inclusive a imprensa usa esses termos, quarentena, e ela acaba nos colocando diante dessa mudança, que é basicamente aquilo que a Irenides falou, as vezes ela pode gerar medo. Eu tenho um amigo também que ele vem quebrando de certa forma, a recomendação de isolamento social, ele vem se encontrando com outro amigos, ele me falou inclusive recentemente, justamente porque ele não tinha parado pra pensar nesses aspectos que ele pode obter a partir do auto apoio. E aí, agora, ele percebeu que é o momento de ele voltar-se para isso e construir isso, ele teve esse insight.

Hareli Cecchin – Então, por exemplo, os astronautas, alguns deles, quando eles vão em missões espaciais sozinhos, eles recebem um treinamento para não enlouquecer, porque as vezes passar muito tempo sozinho, parece que não, mas pode ser uma experiência enlouquecedora. Então, as pessoas precisam trabalhar nisso, e a medida do possível que a gente puder dar suporte para pessoas que moram sozinhas, amigos e tudo mais. E essas pessoas que moram sozinhas conseguir passar um tempo consigo próprio, olhar para si mesmo e pedir ajuda se for necessário, todos nós precisamos não só cuidar da nossa saúde física, mas também da nossa saúde emocional.

Sonielson Sousa – Verdade. E a gente também foi colocado diante de um cenário onde a gente tem que fazer isso por nós e pelos outros. Eu acho que ficou muito claro essa dimensão social da saúde, da psicologia, da política, que já é um pré-requisito, um pressuposto. Você me falou desse caso dos astronautas e eu também me lembrei de uma pesquisa que saiu no final do ano de 2019 e início do ano de 2020, eles pesquisaram a variação do tamanho do cérebro das pessoas que passam uma temporada mais longa na Antártica, com interações mais restritas e com poucos estímulos já que é um continente branco, não tem a variedade de estímulos visuais que nós temos. E o cérebro diminui um pouco de tamanho, então a gente vê a frequência desse cenário todo na parte psicológica, mas também na parte orgânica. Então vejo pelo o que você falou, o ideal seria que as pessoas busquem ajuda também quando elas estiverem se sentindo um pouco mais sufocadas, não há problema em pedir ajuda, algumas pessoas têm dificuldade em pedir ajuda. Como você vê isso?

Hareli Cecchin – Assim, aqui no Brasil a gente não tem uma cultura da prevenção, então em que momento as pessoas procuram um médico? Geralmente quando elas estão passando mal, não são todos, mas a maioria, não aguenta mais aí procura um médico sendo que poderia ter feito todo um trabalho de prevenção, toda uma correção de comportamentos, de rotina, e se isso acontece para a saúde física imagina para a saúde emocional. Então geralmente as pessoas procuram um psicólogo quando o copo está praticamente derramando, muitas vezes com o transtorno mental já instalado, já com depressão, já com transtorno de ansiedade. Aí nós psicólogos ficamos pensando “nossa seria tão bom se essa pessoa tivesse nos procurado meses antes, antes do transtorno mental se instalar”, então é importante que as pessoas invistam nisso, a gente desmistificar a questão que terapia é para a gente louca, para a gente doida. E a psicoterapia também é uma maneira da pessoa se conhecer, aprofundar o conhecimento, e ter um momento na vida pra ela, dedicado exclusivamente à ela, porque, em geral, as pessoas estão sempre cuidando da família, dos filhos, do trabalho, de várias outras coisas, e as vezes esquece de olhar para si próprio.

Sonielson Sousa – Perfeito. É desenvolver aspectos de autocuidado, afinal de contas eu só posso oferecer algo se eu conseguir fazer algo por mim, é uma via de mão dupla. Hareli, a gente tá chegando próximo do nosso tempo, eu queria saber se você queria enfatizar algo em especial que você acha que ficou pra trás, ou que você pensou que poderia ter falado, enfim, se você considera os principais pontos que a gente acabou reverberando aqui no nosso bate-papo.

Hareli Cecchin – Então, eu só gostaria de agradecer o convite e deixar uma mensagem para as pessoas de que nesse momento é normal se sentir um pouco preocupado, sentir um pouco de medo, a gente precisa acolher esse sentimento, a gente não vai estar feliz o tempo todo. A gente só não pode deixar que esse medo se transforme em pânico. Mas as vezes a gente pode ficar um pouco triste também, a gente precisa acolher esse sentimento e entender  que as vezes ele faz parte da vida.

Sonielson Sousa – Perfeito, nos compõe.

Haréli Cecchin – Não tem como ser feliz o tempo todo.

Sonielson Sousa – Hareli, eu queria te agradecer muito pelo tempo que você dispôs a estar aqui conosco, fazer esse contato, esse contato possível. Foi um prazer te conhecer. Você com certeza é um dos orgulhos que temos na Ulbra como egressa. Que bom que você deixou aqui sua mensagem, contribuiu conosco.

Hareli Cecchin – Eu que agradeço o convite, o Ceulp fez toda diferença na minha formação, encontrei pessoas incríveis lá, não trocaria o ensino presencial pelo à distância porque a gente aprende pelos exemplos. Agradeço o convite , e estou à disposição para o que precisarem.

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É preciso ir além da sala de aula e se engajar em estudos externos, diz estudante de Psicologia

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A acadêmica de Psicologia do Rio de Janeiro, Luana Venâncio, alerta aos colegas para se alinharem a grupos de estudos extraclasse, caso os estudantes de fato queiram se aprofundar mais nas abordagens escolhidas.

Em entrevista para o (En)Cena, a acadêmica do curso de Psicologia Luana Venâncio, de 28 anos, dá dicas preciosas para os estudantes que estão em todas as fases de formação no curso. Talvez a mais sintomática seja não perder tempo e se aprofundar nas abordagens que geram mais curiosidade. Ou seja, isso também envolve participar de grupos de estudos para além das salas de aula da universidade, uma vez que a tendência dos cursos – na maioria das universidades – é ser generalista, o que inviabiliza, no decorrer da formação, um mergulho profundo no campo teórico escolhido.

Luana, que está no quarto período de Psicologia no Centro Universitário Augusto Motta, do Rio de Janeiro, participa de três grupos de estudos em Psicologia Analítica/Junguiana – inclusive um deles de Palmas, vinculado ao Ceulp/Ulbra – e comenta sobre a riqueza de participar de coletivos compostos por estudantes de Psicologia, professores, psicólogos e profissionais de áreas afins.

Fonte: Arquivo Pessoal

Confira este e outros tópicos na entrevista que segue.

(En)Cena: Como está sua vida acadêmica no momento?

Luana Venâncio – Eu estudo na Unisuam (Centro Universitário Augusto Motta) no Rio de Janeiro e, atualmente, estou cursando o 4º período em Psicologia. Em época de pandemia, tive que me adaptar a uma nova rotina de estudos. Ter aulas online é um desafio para mim que sinto muita falta do ambiente acadêmico, mas estou otimista que tudo vai passar!

(En)Cena: Você participa de grupos de estudos para além da universidade… o que te motivou a procurar estes grupos?

Luana Venâncio – Acredito que a minha vontade de me aprofundar na abordagem analítica. Sinto que a Universidade traz muito conhecimento em todas as áreas da Psicologia e traz vivências, experiências, mas a Psicologia Junguiana não tem muito espaço na universidade onde estudo.  Com os grupos de estudo, tenho a oportunidade de desenvolver mais os conhecimentos da prática clínica. O primeiro grupo que entrei é daqui do Rio de Janeiro, chamado Lampeju,  que  é composto por estudantes e profissionais (psicólogos clínicos, pedagogos, professores e entre outros). É comum debatermos sobre textos e, também, discutirmos sobre casos clínicos das obras.

(En)Cena: Você considera que só o estudo acadêmico, dentro dos limites da universidade, é suficiente para a formação?

Luana Venâncio – Não considero. Acredito que a academia prepara o profissional para o mercado, mas a qualidade do profissional Psicólogo exige muito conhecimento que vai muito além da universidade. Filmes, livros, séries, documentários, grupos de estudos, feiras, encontros ajudam muito, mas é fundamental que além disso o graduando possa também estar em sua análise (psicoterapia individual). Muitos alunos ainda não têm o contato com a psicoterapia por falta de condições financeiras, o que traz consequências a sua qualidade como profissional. Isso reforça que ainda infelizmente o curso é elitizado (custo alto) em muitas universidades. Acredito que projetos que venham trazer a psicoterapia de forma mais acessível é sempre uma abertura, não só para este público, mas para todos.

(En)Cena: Qual a dica que você dá aos alunos que ainda ficam em dúvida, mesmo tendo avançado bastante no curso? Esta indecisão pode atrapalhar o mergulho na abordagem?

Luana Venâncio – Acredito que a dúvida faz parte do caminho dos graduandos (Risos). É comum flertarmos com outras abordagens e, também, com outras áreas (clínica, educacional, organizacional, jurídica…). Acredito que não exista um caminho padrão para lidar com essa dúvida, porque cada aluno vai lidar com a sua forma de resolver esta indecisão. Algo que pode ajudar muito é estudar mais sobre a área de atuação , conversar com profissionais e pesquisar materiais destes profissionais afim de ter mais conhecimento. Antes de entrar na universidade eu tinha uma ideia definida de ser somente Psicóloga Clínica, e hoje estou pensando em fazer mais um estágio além da clínica. Estou em dúvida sobre a Psicologia Social ou a Escolar como segundo estágio. Ainda não decidi (Risos).

(En)Cena: Você tem um perfil no Instagram onde narra, de forma bastante interessante, as cartas de Jung… como surgiu a ideia, e qual a reação do público?

Luana Venâncio – Quando li a primeira carta do Jung fiquei impressionada com tanta sensibilidade. A ideia surgiu na minha cabeça como forma de tornar este conhecimento acessível de uma forma diferente. A ideia da página é de levar conhecimento as pessoas, mas também uma forma de aprender com os textos, cartas e pensamentos da Psicologia Junguiana. As pessoas gostam muito e se sentem sensibilizadas com as cartas, principalmente aquelas em que Jung escreveu a pacientes. Pacientes que estavam muitas vezes em grandes conflitos sobre suas escolhas e caminhos.

(En)Cena: Você pensa em transformar estes posts em podcasts?

Luana Venâncio – Penso sim. Na verdade, essa é a proposta dos posts.

(En)Cena: Você pretende atuar na clínica?

Luana Venâncio – Sim. É o meu maior sonho! Ver as mudanças de uma pessoa, acompanhar sua história, suas escolhas, caminhos, para mim é o prazer da clínica.

(En)Cena: Há algo a mais que você gostaria de dizer aos estudantes de Psicologia?

Luana Venâncio – Eu gostaria de deixar uma frase do Jung que resume o meu pensamento. “Quem olha fora sonha, quem olha dentro desperta”. Acredito que toda vez que a dúvida bater à porta ou mesmo diante daqueles dias ruins, seria voltar o olhar para dentro. A resposta que procuramos sempre está dentro de nós. É isso que estou aprendendo. É muito importante trilharmos em caminhos que condizem com caminhos do nosso coração. Tudo que é feito com amor tem um grande diferencial.

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A TCC é aliada em períodos de crise: (En)Cena entrevista o psicólogo Ulisses Cunha

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Durante uma das “lives” transmitidas pelo perfil da Psicologia no Instagram (@psicologiaceulp), no período de realização das atividades acadêmicas de forma remota, um dos entrevistados do projeto PsicoLive, em parceria com o (En)Cena,  foi o egresso do Ceulp/Ulbra, psicólogo Ulisses Franklin Carvalho da Cunha, que conversou com o Prof. Me. Sonielson Sousa sobre o uso da Terapia Cognitivo-Comportamental como aliada em períodos de crise.

O bate-papo/entrevista contou com a participação de vários acadêmicos de Psicologia e da comunidade como um todo, e durou cerca de 1h. Dentre os principais temas discutidos por Ulisses, que além de psicólogo clínico é servidor da Unitins e professor substituto na UFT, comentou que a TCC se insere no contexto mais atual e de inovação das terapias comportamentais, além de destacar a função da cognição, que ao mesmo tempo que é pensamento, é também raciocínio, linguagem, é percepção, processamento visual, processamento mental… “é um conjunto de processos que acontecem internamente e que se projetam nos nossos comportamentos, emoções e sentimentos”, destacou. Confira este e outros aspectos no bate-papo/entrevista abaixo.

(En)Cena – Ulisses, eu vou te apresentar rapidamente e aí a gente começa nosso bate-papo. Primeiro explicar um pouco esse projeto, o PsicoLive é um projeto de extensão que surgiu durante a pandemia, no começo na verdade do processo de isolamento social como uma forma de conscientizar as pessoas para o fato de que a gente teria que diminuir as nossas interações sociais, pelo menos do ponto de vista face a face, para garantir nossa proteção, mas principalmente para a proteção da sociedade. E quando a gente faz isso, mesmo que a gente não esteja no grupo de risco ou que não moremos com ninguém, fazemos isso em nome dos outros. E aí surgiu essa ideia do PsicoLive. Nós começamos, fizemos já várias edições tanto com egresso da Ulbra, você é um deles inclusive, quanto com profissionais que são amigos, parceiros, que sempre publicam conosco também, no EnCena, colegas de outras instituições. Então a gente tem um prazer enorme de conversar contigo. Você é um egresso que nós temos muito orgulho, um profissional bastante dedicado, tanto na área da prática cotidiana da psicologia, mas também na área acadêmica. Você já fez mestrado, já visualiza o doutorado, eu espero pelo menos.

Ulisses Cunha – É o projeto (risos).

(En)Cena – É o projeto (risos). A gente tem que seguir firme na nossa formação acadêmica, que é contínua. Eu sei que você é da TCC, mas a gente nunca esquece o Freud né? O Freud é que diz que o pensamento é o ensaio da ação, então quando a gente já pensa em algo, a gente de certa forma já está se colocando no mundo, se movendo para tentar concretizar aquilo. Na Cognitiva até fala de profecia auto realizável, não é mesmo? Usa muito esse conceito de que eu penso sobre algo e começo a modelar o comportamento até que aquilo que eu pensava e desejava acaba ocorrendo… pois bem, você já tem outra graduação, sim? Qual é a outra graduação?

Ulisses Cunha – Eu fiz licenciatura em geografia.

(En)Cena – Perfeito. Depois fez o bacharelado em psicologia lá conosco e você atua na docência também, se eu não me engano você está como professor substituto lá no Campus de Miracema na UFT… Além disso trabalha na Unitins aqui em Palmas e atende como psicólogo clinico. Ou seja, é um super homem (risos).

Ulisses Cunha – A gente tenta, né?! (risos).

(En)Cena –  Sim (risos). Ulisses, eu queria antes de começar propriamente o assunto contigo, lembrar da perda que nós tivemos hoje, nós estamos rindo aqui, porque de qualquer forma a gente está no ritmo da própria professora Nara Wanda, que até o ultimo momento foi uma pessoa muito feliz, sempre foi uma pessoa que vibrava muito, ela nunca se permitiu colocar-se num lugar onde nós pudéssemos sentir pena dela, sempre foi uma mulher muito forte. Ela sempre encarou, como a gente fala no existencialismo de Sartre, ela sempre encarou com bravura os problemas e as dores até o final. E você foi aluno dela, eu fui aluno dela também, eu acho que a gente não deve deixar de registrar o nosso luto pela partida dela que ocorreu recentemente. Infelizmente nós não pudemos nos despedir pelas condições do momento, foi feito um procedimento já bastante reservado em virtude da pandemia. Nós da Ulbra ficamos bastante tristes, comovidos, todo o colegiado, os alunos como um todo. Porque era uma pessoa que marcou, não é verdade, Ulisses, as nossas vidas… Marcou a própria história da psicologia no Tocantins já que ela foi uma das fundadoras do curso aqui da Ulbra, que é o primeiro curso de psicologia do estado. É uma pessoa que tem uma história particular fantástica, enfim. Você teve muitas disciplinas com ela, Ulisses?

Ulisses Cunha – Então, Sonielson, eu tive as disciplinas de Estágio Básico 2 que era Ludoterapia, que era atendimento a crianças em situação do brincar. E assim, eu de fato pretendia lembrar dela no início da nossa live colocando assim, até para o pessoal que está nos assistindo, tem algumas pessoas que são amigos, que não são da área da psicologia e aí a gente vai falar da perspectiva da psicologia Cognitivo-Comportamental e eu lembrei de um episódio com a vovó Wanda. Eu lembro que no final do oitavo semestre onde nós acadêmicos iríamos adentrar nos estágios específicos e a gente é obrigado a escolher uma abordagem terapêutica para atuar na clínica, e eu lembro assim, muito claro na minha mente que um dia conversando com ela ao final de uma dessas nossas aulas de ludoterapia eu falei pra ela: – ‘professora Wanda, eu tô com uma dúvida cruel, porque eu gosto muito de várias abordagens, eu acho que todas elas têm muito a nos ensinar, tem muito a contribuir para o tratamento dos dilemas dos sofrimentos humanos. Eu sempre fico na dúvida sobre qual abordagem adentrar mais profundamente’. E ela olhou para mim com aquele olhar dela super maquiado, com aquele alto astral que era característico dela, e falou assim: – ‘Você é psicólogo!’. Sabe, eu achei aquilo tão marcante. Eu sempre tenho dito, Sonielson, que independente da abordagem, as vezes até a gente mesmo se apresenta como psicólogo cognitivo ou psicólogo psicanalista, antes da abordagem vem o termo psicólogo que por si só já tem um sentido, um peso. Ser psicólogo por si só já nos traz uma série de responsabilidades com o outro, que eu acho que é muito bacana.

(En)Cena –  Você fala isso e me fez lembrar de uma live, que você até participou dela com o Dr. Alberto Nery; ele basicamente também alertou sobre isso, da necessidade que temos de cooperarmos uns com os outros dentro da própria psicologia, tentando construir pontes. Eu acho que a Wanda era um exemplo muito clássico disso tentando de fato colocar em prática a interdisciplinaridade, compreender o sentido de cada abordagem e a importância de cada escola, e evitar dogmatismos. Ela era uma pessoa que evitava unilateralismos, apesar de a gente saber exatamente quais as preferências que ela tinha, mas ela se apresentava com uma abertura muito grande… Mas é isso! Ulisses, eu gostaria que você explicasse para as pessoas que não sabem, o que é, afinal de contas, a terapia cognitivo-comportamental?

Ulisses Cunha – Bom, vamos lá. A terapia cognitivo-comportamental se insere nas abordagens psicológicas neo-behavioristas que vem aí para quebrar o paradigma das abordagens psicanalíticas e comportamentais, as ortodoxas e as humanistas. TCC se insere no contexto mais atual e de inovação das terapias comportamentais. Eu vou tentar usar de uma linguagem mais clara possível para que fique melhor compreensivo. A premissa básica, Sonielson, da terapia cognitivo-comportamental é de que não são os eventos em si que determinam a forma com que a gente sente e se comporta, mas a percepção que a gente tem dos eventos. Ou seja, cada pessoa elabora, interpreta e visualiza os fenômenos da vida de uma forma muito única, então nos interessa na terapia cognitivo-comportamental compreender a natureza da cognição das pessoas, nos interessa identificar quais pensamentos estão por de trás do sofrimento humano de cada pessoa. E aí, por exemplo, para exemplificar uma situação: como cada pessoa interpreta o isolamento, que eu tenho chamado de recolhimento social, a maneira como cada pessoa interpreta o isolamento é muito única e particular de cada um, ou seja, cada sujeito funciona e opera no mundo de um modo muito particular, então cada pessoa pode enxergar uma mesma situação de uma forma muito única. E para nós da terapia cognitivo-comportamental, a cognição determina ou influencia o modo como nós nos sentimos, nossas emoções e nossos sentimentos, e a forma como nós agimos. Então, por exemplo, se eu interpreto a pandemia como algo catastrófico, como algo que me atinge profundamente eu posso começar a me sentir cada vez mais ansioso, me sentir cada vez mais deprimido, me sentir cada vez mais pessimista e passo a me comportar de uma forma cada vez mais introspectiva. Para a terapia cognitivo-comportamental existe um encadeamento da cognição, dos sentimentos ou emoções e dos comportamentos. Esses três elementos, essa tríade por assim dizer, eles estão encadeados e entrelaçados. E não muito raro cada um de nós vai desenvolvendo ao longo da vida algumas crenças a respeito de nós mesmos e das outras pessoas e a respeito do futuro, que não é necessariamente uma crença racional ou uma crença realista. Então pessoas que passam por determinadas situações, como essa que a gente está vivendo, podem desencadear e reforçar essas crenças irrealistas que a gente vem carregando ao longo da vida.

(En)Cena – O objetivo final da terapia, neste sentido, é o bem estar do cliente, e parece que a terapia cognitivo-comportamental é muito livre, ela deixa o psicólogo bastante a vontade para utilizar várias técnicas que dêem resultado com o cliente. Você poderia falar sobre isso?

Ulisses Cunha – Essa colocação realmente é a forma como eu percebo a finalidade do tratamento dentro de uma perspectiva cognitivo-comportamental. E eu gostaria de trazer rapidamente o meu percurso por essa abordagem que vai de encontro com o que você falou. Eu tive oportunidade de, ao longo da minha graduação, ter contato com praticamente todas as abordagens que a gente estuda nas TTPs (Terapias e Técnicas Psicoterápicas). As TTPs são como lentes onde a gente enxerga o funcionamento do ser humano…

(En)Cena – O nosso curso é generalista, por sorte… tem muitos cursos de psicologia que dão mais ênfase em duas, digamos assim, escolas…

Ulisses Cunha – Sim, nós somos agraciados com essa riqueza que eu acho fantástico. Eu tive oportunidade de estudar a psicanálise, a comportamental, a fenomenologia existencial, e a TCC e, assim, a minha grande dúvida e o meu grande questionamento quando eu fui atender na clínica, no último ano de curso, era porque eu percebia o quanto cada uma delas tinha a contribuir com o objetivo final da psicoterapia e da psicologia, que é ajudar com que as pessoas fiquem bem, equilibradas. Ajudar com que elas adquiram recursos para enfrentar as demandas da vida. Então o meu grande passo foi esse, foi de perceber que cada uma das abordagens tinha muito a contribuir. Tanto é que durante um ano de estágio na ênfase clínica eu atuei dentro da fenomenologia existencial, é a que casava bastante com a abordagem centrada na pessoa e a Gestalt terapia…

(En)Cena – Perfeito. Você encarou isso muito bem…

Ulisses Cunha – Quando me formei, atendi na clínica que pedia um referencial da psicologia existencial, porém essas abordagens humanistas elas trabalham com a não diretividade, a não diretividade é de certa forma estar ao lado do paciente ajudando com que ele faça essa caminhada em busca de si mesmo. Então existe essa questão da não diretividade nas abordagens humanistas. Então eu fui percebendo, Sonielson, que as pessoas quando chegavam até mim, elas estavam muitas vezes angustiadas, infelizmente as pessoas costumam procurar a psicoterapia quando já estão em um estado de sofrimento um pouco mais aprofundado, já tentaram outras abordagens para lidar com essa questão. Então de certa forma as pessoas demoram um pouco para buscar a psicoterapia. Então assim, ela procura sair desde a primeira sessão com uma melhora desse sintoma, já conseguindo enxergar a situação toda por uma outra ótica. Então foi aí que em conversa com uma outra colega que era terapeuta da TCC, a gente conversando sobre essa necessidade que as pessoas tinham de se sentir bem em um tempo mais curto por assim dizer. A minha amiga me propôs a atender os pacientes na TCC. E aí foi um start pra mim, Sonielson. Eu acho que a gente não pode ter rigidez, ter essa inflexibilidade com uma série de coisas na vida, eu acho que a vida a todo momento a gente tem que se permitir colocar em xeque algumas dessas nossas certezas a fim de testá-las, a fim de reconstruí-las, de remoldá-las, porque ser humano é isso. Estamos a um passo de tornar-se, nós não somos, estamos. E foi quando eu comecei a mergulhar profundamente na perspectiva cognitivo-comportamental… Então assim, como eu já tinha percorrido as outras abordagens, eu já estava “contaminado”, vamos pensar assim, pelas técnicas da Gestalt, pelo olhar mais diretivo da comportamental. Então eu comecei a utilizar de técnicas de outras abordagens para verificar como que os meus pacientes iam reagindo a essa forma de acompanhamento e de tratamento. Hoje eu fiz especialização em terapia cognitivo-comportamental, mas eu não me encontro colado exclusivamente na TCC, eu acho que é importante a gente também colocar vez ou outra uma outra lente para enxergar aquele fenômeno a fim de identificar que outras ferramentas podem ser úteis para a gente atingir o objetivo final.

(En)Cena –  Eu acho bastante interessante o que você fala, Ulisses. Vamos pegar o próprio exemplo da Gestalt-terapia, de quantas fontes bebe a Gestalt-terapia? Vamos pegar a psicanálise, quantas fontes (risos) bebe a psicanálise? Claro que existe uma linha mestra, uma espinha dorsal, que dá as diretivas básicas pelas quais a gente tem que seguir, até para a gente não ficar muito solto. Mas a ideia de se fechar dentro de um conjunto epistemológico, sem problematizar esse conjunto epistemológico, fica parecido as vezes com dogmatismo, como se já não fosse mais ciência, no caso. Aquela ideia de o meu modo de pensar é o adequado e nada que seja diferente a esse método é válido, isso é bastante perigoso. 

Ulisses Cunha – Perfeito.

(En)Cena –  Acho que para você não foi nada difícil usar de uma variedade de técnicas dentro da cognitiva  – que foi uma das coisas que me chamou muito atenção quando eu fiz, foi perceber como é possível se apropriar de algumas técnicas de outras abordagens, desde que elas atinjam o objetivo do cliente no caso, ajude no caso o cliente a atingir seu objetivo, atingir a sua meta dentro do processo terapêutico. Enfim, Ulisses, a terapia cognitivo-comportamental surgiu assim, basicamente tentando encontrar uma resposta ao tratamento da depressão, que já era um problema lá atrás entre os anos 50, 60 e 70 em países ricos, como Estados Unidos e os países da Europa. A gente só veio receber mesmo a epidemia de depressão no Brasil nos anos 90 e anos 2000. E esse é o foco principal ainda, ou quais são as frentes principais que os clientes chegam até a terapia cognitivo-comportamental que você tenha observado na sua atuação clínica?

Ulisses Cunha – Eu acho interessante fazer essa contextualização de como surgiu a terapia cognitivo-comportamental. De fato, a TCC surge na década de 60, 70 através de Aaron Beck que era psicanalista e ele atuava principalmente no tratamento com pessoas acometidas por depressão. Então nesse labor dele de ouvir pessoas com depressão, foi percebendo que essas pessoas tinham percepções e ideias, elas tinham uma percepção muito negativa delas mesmas, uma ideia negativa dos outros, do mundo de modo geral, e tinham ideias muito negativas e distorcidas do futuro. Então é aí que começa a surgir as bases teóricas para a terapia cognitivo-comportamental. De imediato, a priori Sonielson, a demanda a qual mais está associado o tratamento, a partir de um referencial cognitivo-comportamental, ainda é a questão da ansiedade e da depressão.

(En)Cena – Correto.

Ulisses Cunha – Os demais transtornos que surgem pra gente na clínica, na realidade não diria que são transtornos, eu diria que são adversidades da vida que as pessoas nos procuram para ajudar a compreender e a se conhecerem melhor… Então eu interpreto que a busca pelas quais as pessoas fazem, pra psicoterapia, ainda tem esse plano de fundo que é se conhecerem um pouquinho melhor. E isso vai de encontro com o referencial da terapia cognitivo-comportamental, porque a gente trabalha exatamente com essa ideia de que pensar que algo é de uma forma não quer dizer que necessariamente aquela ideia seja a mais racional, mais sensata, mais coerente possível. Interpretar uma situação de uma dada forma não quer dizer que a coisa é daquele jeito, por exemplo. Isso vai de encontro com as crenças centrais que é um conceito balizador dentro da terapia cognitivo-comportamental. As crenças centrais então, são essas ideias mais arraigadas que nós temos de nós mesmos, então em momentos de crise, em momentos de sofrimento, em momentos de situações que tem uma carga emocional maior é como se nós ativássemos essas crenças centrais que nós temos a respeito de nós mesmos. E se nós alimentamos crenças a respeito de nós mesmos que são crenças distorcidas ou ideias muito pessimistas, a gente não vai ter o resultado esperado, o sofrimento então ele só se aprofunda. A ideia da terapia cognitivo-comportamental é auxiliar com que as pessoas reconheçam esses pensamentos, essas ideias, questionem a validade delas, a legitimidade delas e a gente reelabore elas de uma forma mais construtiva, racional, de uma forma mais positiva e realista. 

Sonielson Sousa: Isso vai reverberar então nos comportamentos, nos repertórios comportamentais?

Ulisses Cunha – Perfeito, Sonielson. Perguntas chaves dentro da perspectiva cognitivo-comportamental são, por exemplo: – como você se sentiu diante dessa situação?; – O que passava pela sua cabeça ou o que passa pela sua mente naquele momento? – Que sensação, que emoção isso te trouxe à tona? Então, por exemplo, diante dessa pandemia, podemos questionar como eu estou me sentindo diante dessa pandemia… Daí eu posso responder, por exemplo: – Eu estou me sentindo muito inútil porque eu não consigo fazer nada.

(En)Cena –  Compreendo.

Ulisses Cunha: E esse pensamento de se sentir inútil, esse sentimento de inutilidade pode estar desencadeando um comportamento depressivo ou um comportamento de mais introversão, de mais isolamento. Agora se eu penso por outra ótica, se eu penso por exemplo “olha, a pandemia é um momento difícil, é uma situação delicada, porque a gente está tendo que lidar com algo que a gente nunca lidou antes, é um momento difícil, mas eu acredito que sou capaz de passar por ela sem maiores problemas”. Olha como essas duas formas de perceber a mesma situação pode trazer comportamentos, sensações e emoções diferentes, de acordo com a forma que a gente interpreta tudo isso.

(En)Cena – Interessante. Então de certa forma nós somos convidados a criar ‘pensamentos concorrentes’. Porque eu vejo que muitas vezes tem também uma espécie de incompreensão em relação a cognitivo-comportamental, como se ela fosse uma espécie de mentalismo, como se fosse possível deixar de pensar daquela forma que estava pensando antes. Me vem à mente essa ideia de que na verdade não é isso, o que você ta construindo são categorias concorrentes. Então se eu tenho energia para me focar numa determinada construção de pensamentos eu posso também investir essa energia, essa intenção, para criar um pensamento concorrente. E aí vem a questão do que eu tinha falado para você no começo, da profecia auto realizável. É outra coisa que eu pensei aqui também Ulisses, e eu não sei se você concorda comigo, que não é só uma questão de pensar positivo, não é isso (risos).

Ulisses Cunha – Verdade, não é somente pensar positivo, até porque a gente compreende Sonielson, que todo sofrimento ele tem a sua carga que precisa… sabe a coisa da dor que precisa ser vivida? Algumas situações de sofrimento não são resolvidas por só pensar positivo… inclusive uma das coisas que eu acho muito interessante, só abrindo um parêntese, é que uma das técnicas utilizadas em terapia cognitivo-comportamental é exatamente a questão de a gente aceitar o que se passa conosco, compreender a situação.

(En)Cena – Acolher…

Ulisses Cunha – Isso, acolher toda a nossa existência, aquilo que a gente está sentindo. É também ser racional, não puramente com o dogmatismo. É porque a gente tem a ideia de cognição, quando a gente fala psicologia cognitiva, a gente tem ideia de que é só pensamento. E cognição não é só isso. Cognição é pensamento, mas é também raciocínio, é linguagem, é percepção, é processamento visual, é processamento mental, é um conjunto de processos que acontecem internamente e que se projetam nos nossos comportamentos, emoções e sentimentos. Então não é só pensar positivo, é a pessoa pensar de certa forma assertivamente, é pensar com racionalidade, porque olha só eu posso, com relação a pandemia que é o plano de fundo pra nossa discussão aqui, pensar que a pandemia vai passar e tudo… Somente isso vai ser suficiente para que eu adote posturas mais positivas? Não necessariamente. O que é pensar racional diante da pandemia? É pensar por exemplo que todo mundo está vivendo de certa forma os impactos de uma mesma situação. Agora o que é pensar racionalmente? É pensar que a gente precisa seguir as orientações dos órgãos de saúde, de que a gente não está isolado, mas que está protegido, por exemplo. Então isso não é só pensar positivamente, mas é pensar de forma coerente, sensata, racional, de forma criativa. É todo esse conjunto de questões que vão além da só pensar positivamente.

(En)Cena –  Eu até lembro quando você participou de uma dessas lives que nós fizemos, e o título continha a palavra “isolamento”, e aí eu lembro que você falou: “que tal usar recolhimento?”. Então uma mudança semântica, mudança de entonação, a criação de um pensamento concorrente, faz toda a diferença na forma como a gente encara. Porque o que eu tenho percebido, Ulisses, eu não sei se é a percepção sua também e eu não vou falar em termos acadêmicos, é mais uma percepção pessoal, que houve no começo da pandemia uma onda de pensamentos catastróficos, e sem conseguir também criar condições internas para fazer enfrentamentos necessários… e depois da metade desse período ouve o oposto disso, como se a gente estivesse em extremos E começou a ter uma negação total, como se já não houvesse mais nenhum tipo de problema. Como é que você percebe isso? Esses extremos assim, isso também de certa forma denota um pouco de ausência de observar-se mais, com mais clareza. Eu percebo que a cognitiva trabalha muito com mindfulness, atenção plena…

Ulisses Cunha – Exatamente Sonielson, eu também percebo muitas vezes um extremismo na forma como as pessoas interpretam a situação. Não no sentido de que a situação não seja séria, de fato é séria a situação. Demanda que cada um de nós mobilize uma grande quantidade de recursos emocionais, de recursos psicológicos, de recursos relacionais. E assim, uma questão que eu tenho observado Sonielson, que a pandemia ela desencadeou crises em camadas, é um efeito cascata. Se a gente observar a pandemia coloca em xeque a economia global, a saúde pública, os sistemas políticos e coloca em xeque a nós mesmos. Um termo que eu tenho usado é “overdose de nós mesmos”. Nós estamos tendo tempo agora para conviver muito conosco mesmos, então eu percebo que aquelas pessoas que já tinham propensão a desenvolver ansiedade e depressão, no tempo da pandemia isso se potencializa, se aflora, por conta desse contato muito íntimo e por conta de que a pandemia, de certa forma, faz com que venha à tona aquilo que existe de positivo, mas também aquilo que existe de pontos que precisam ser melhorados. E aí voltando rapidamente para a questão de como a gente percebe determinada situação e isso tem relação como nós nos sentimos e como nos comportamos. Eu estava conversando com uma amiga que é da TCC também, e a gente estava observando o quanto os profissionais da saúde que estão lidando ali na linha de frente do combate a pandemia, estão sendo infectados pela doença e estão tendo agravamento dos sintomas. Olha o quanto isso é simbólico se a gente parar para pensar, por exemplo, o quanto o sofrimento deles, o quanto o desespero deles, pode está provocando por exemplo uma redução da imunidade e eles estão sofrendo esses sintomas de uma forma muito mais pesada, de forma muito mais profunda. É preciso então alimentar ideias mais criativas, por assim dizer, mais positivas claro, por que não? E sensatas, porque senão a gente começa a dar espaço para ideias mais negativas e pensamentos menos realistas e isso vai comprometendo o nosso sistema imunológico e os nossos recursos para lidar com essa situação toda. 

(En)Cena –  E hoje nós temos recursos para conseguir fazer isso, Ulisses. Nós temos boas entrevistas que estão disponíveis no YouTube, bons livros dentro da terapia cognitivo-comportamental com uma abordagem ampla, uma forma de escrita que é bastante acessível para qualquer pessoa.

Ulisses Cunha – Sim.

(En)Cena – Tem psicoterapia que continua sendo oferecida pelo sistema online, encontros online, conferências… há muitos recursos. 

Ulisses Cunha – Sim… Também é importante se perguntar quem está cuidando dos cuidadores, não é verdade? 

(En)Cena –  A gente também tem que se sensibilizar, isso foi muito bem pontuado, isso que você falou. Então, recapitulando a sequência do que você tinha falado, seria pensamento, comportamento, sentimentos/emoções. Tem uma sequência esses movimentos? Eles ocorrem de uma forma não linear ou uma coisa encadeia a outra?

Ulisses Cunha – Nos primórdios da terapia cognitivo-comportamental, Beck colocava que o ponto inicial era o pensamento, que o pensamento levava a uma emoção, a um sentimento, que por sua vez desencadeava um comportamento. Porém, a TCC também tem essa outra característica que eu acho fantástica, que é a atualização. Então se a gente pegar, por exemplo, um livro editado recentemente ou lançado, como o da Amy Wenzel, que é uma sucessora e uma estudiosa da cognitivo-comportamental, uma discípula do Beck. Ela lançou recentemente um livro chamado Inovações em Terapia Cognitivo-Comportamental, e aí ela já traz as três categorias – pensamento, emoção, comportamento – com setas bidirecionais. Ou seja, não é necessariamente um pensamento que conduz a uma coisa e a outra coisa. Essas três coisas, elas estão interligadas, interrelacionadas, e uma influencia a outra. Então se eu estou no setting terapêutico e alguém me traz como demanda um comportamento, a gente investiga então qual é o sentimento que aquele comportamento traz, pensamentos que estão por de trás daquele comportamento, por exemplo. A fim de identificar onde é que estão os pontos do pensar, do agir e do sentir, que precisam ser refletidos, que precisam ser melhorados, que precisam ser trabalhados para produzir essa melhora. 

(En)Cena – Compreendo. Então, de certa forma, é um salto Ulisses, nessa compreensão…

Ulisses Cunha – Muito. Fantástico… isso abriu precedente, Sonielson, para que a gente percebesse a situação de uma forma muito mais holística, de uma forma mais global de como as pessoas funcionam. […] A gente só consegue mudar algo quando a gente reconhece aquele algo, quando a gente tem contato com a essência daquele algo que a gente está sentindo. Então assim, eu vejo que tem uma critica a terapia cognitivo-comportamental, muitas vezes nesse sentido de que a TCC é uma abordagem fria, uma abordagem com excesso de tecnicismo, com excesso teórico. Porém, um outro livro que eu acho fantástico, o Manual de Técnicas Cognitivo-Comportamental, no primeiro capítulo, ele traz um conjunto de situações relacionadas a TCC e ele finaliza no último parágrafo do primeiro capítulo que é a introdução de tudo que ele vai colocar, ele diz que nada daquilo vai funcionar se você não tiver antes de tudo vínculo afetivo com esse paciente. Ele inclusive cita a palavra compaixão. E eu achei fantástico que isso também entra dentro dessas inovações em terapia cognitivo-comportamental, que também vai de encontro com a aceitação incondicional do outro, que é um pressuposto da psicologia humanista. Então essas técnicas, que a gente propõe para o nosso paciente, a psicoeducação, o questionamento socrático, e as inúmeras técnicas dentro do arcabouço da TCC, elas não funcionam se não houver um vínculo terapêutico, se não houver uma relação genuína, uma relação de colaboratividade. É junto que o processo se constrói e se desenvolve. 

(En)Cena –  Ulisses, gostaria de te gradecer profundamente por este bate-papo… 

Ulisses Cunha – Eu que agradeço a oportunidade. Eu penso que diante desse momento nada mais interessante, mais importante, mais significativo do que estar juntos com todo mundo mesmo que de modo virtual. Eu queria agradecer também os amigos queridos, os colegas de profissão, para algumas pessoas da família que falaram que iriam assistir. Eu acho muito bacana. E para finalizar assim, quero dizer que a gente dá uma pausa nos abraços, mas não precisamos dar uma pausa nos afetos, no carinho, no amor, de forma alguma (risos). Eu acho até que é junto que a gente vai conseguir passar por tudo isso. No mais a gente precisa acreditar, confiar… Eu penso que é trilhando junto esse caminho que todo mundo vai conseguir chegar no nosso destino, que é ficar bem, alcançar nossas metas e nossos objetivos. Foi um prazer enorme está com você, com todo mundo nessa live. Muito obrigado.

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