HER: a incompletude palatável

She’s not just a computer

Antes de tudo é preciso uma afirmação, Her é uma obra sensível, que trata de sentimentos, algo já abordado em outros filmes, livros, músicas e pinturas, mas, que no caso específico desta película, possui um direcionamento e foco que o tornam singular, como será exposto ao longo desta análise. O filme é de 2013, com um orçamento modesto para os padrões atuais, produzido pela Annapurna Pictures, dirigido e roteirizado por Spike Jonze, estrelado por Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Rooney Mara e Olivia Wilde.

Este texto tem por objetivo analisar algumas das características simbólicas, narrativas, semióticas e existenciais presentes no filme Her, que pode ser considerado, devido à sua inventividade, como sendo uma pequena obra-prima da atualidade, galardoada com várias indicações e prêmios tanto da grande indústria cinematográfica como premiações de produções independentes. E trazendo consigo uma grande esteira de filmes que tratam da temática da inteligência artificial em nosso tempo em seus diferentes aspectos que formam a estruturação de sua história, Her certamente será objeto de apreço, debates e análises por suas imensuráveis qualidades que extrapolam o âmbito de sua linguagem cinematográfica.

A solidão íntima e coletiva

Figura 2: Theodore em plano aberto e sozinho no seu apartamento. Fonte: Her (2013)

Em 2025 Theodore Twombly nos é apresentado como um homem próximo à meia-idade, que vive solitário em seu amplo apartamento de uma atemporal Los Angeles , trabalhando como escritor numa empresa de envio de mensagens comoventes e emotivas para outras pessoas, numa rotina que combina melancolia, resignação e breves momentos de vislumbre para efemeridades cotidianas. O passado do protagonista nos é apresentado em flashbacks, evidenciando um acumulado de mágoas, ressentimentos e arrependimentos ligados, principalmente, a um malfadado relacionamento ainda a ser superado.

Spike Jonze faz um grande trabalho com seu roteiro, direção de arte e fotografia para que tenhamos uma verdadeira imersão nas fronteiras da inquieta existência de Theodore. A utilização dos contrários nestes quesitos contribui para este exercício de representação e interpretação ao qual o diretor nos faz mergulhar, como, por exemplo, nos ambientes em que o protagonista divide seu espaço com outras pessoas, seja no trabalho, metrô, ruas o seu isolamento é ressaltado com sutis close-ups em seu rosto e ações de desconforto ou desinteresse com a situação, e, do mesmo modo, nos planos abertos, como em seu apartamento, na sacada do prédio ou beira do penhasco a mesma noção e reação de isolamento também é apresentada na composição dos elementos imagéticos imbricados para formar tais cenas introspectivas.

Esta rotina de Theodore é alterada a partir do momento que o mesmo resolve adotar um novo modelo de sistema operacional pessoal super-inteligente (IOS), para que sua solidão seja de alguma maneira preenchida, mesmo que por uma presença virtual. Após uma breve coleta de dados pessoais os parâmetros virtuais do IOS estabelecem as preferências do cliente e, então, a interação entre as duas partes é iniciada, e os rumos de tal relacionamento é que dão o tom de maiores reflexões e antinomias do longa-metragem. E, a partir deste momento é somos apresentados à Samantha, a denominação dada por Theodore à sua IOS, interpretada por Scarlett Johansson, com base nestas informações preliminares.

Figura 3: Theodore aguardando o “nascimento” de Samantha. Fonte: Her (2013)

Mas, há de se fazer uma ressalva sobre Theodore, e este talvez seja o ponto no qual Samantha se encaixa em sua vida. Em nenhum momento da estória contada em Her é mostrado um misantropismo do melancólico escritor de cartas emotivas, pelo contrário, o mesmo possui, mesmo que restrito, um círculo de amigos que, aparentemente, se preocupam com seu bem estar. Neste sentido, Amy Adams, que interpreta a homônima melhor amiga de Theodore, nos convence em seus diálogos, ajudando a compreender o aspecto solitário do cotidiano de ambos e o porquê do impacto da inserção de Samantha em suas vidas. Por isto, não é de se surpreender que Jonze antes das filmagens do longa, fez com que os dois atores ficassem isolados durante horas em uma sala, para que as emoções e interações de ambos se tornassem o mais críveis possível para os apreciadores de sua obra, e o resultado é no mínimo admirável. A simplicidade com que a amizade é retratada reforça a sua importância, inclusive em momentos inesperados, como é caso do anúncio do relacionamento não convencional entre um humano e um sistema operacional, que não causa surpresa na amiga de Theodore, pelo contrário, por esta é reforçada sua atitude de iniciar estre incomum relacionamento, para que se recupere de suas mágoas e angústias recentes após um conturbado relacionamento ainda em cicatrização.

Há simbolismos de Her que merecem destaque no instante em que aparecem na tela. Desta forma, a primeira imagem que teremos “dela” (Samantha) é o momento do icônico carregamento, assemelhando-se a dupla hélice de um DNA, e o seu formato definitivo é uma clara referência à principal referência de inteligência artificial da sétima arte, o sistema operacional HALL-9000, da obra-prima de Stanley Kubrick. No entanto, a surpresa após o programa ser carregado já começa pela sua voz, com uma entonação, interação e afetividade singulares, características completamente diversas de um robô ou inteligência artificial convencional, pois soa próxima, afetuosa e espontânea, que irão marcar todo o desenvolvimento do filme.

E para finalizar esta etapa da análise é importante ressaltar o poderio robótico e virtual da máquina que da o título à obram que, apesar da leveza e doçura dos modos e voz de Samantha, tal poder de seu sistema positrônico nos é entregue em pequenas passagens, como na contagem de árvores, seleção dos e-mails, as correções das cartas, buscas e demais detalhes que chegam a passar despercebidos ao longo da projeção. E, o mais importante destas demonstrações da diferença intelectiva entre o IOS e Theodore é que em momento algum esta condição de raciocínio privilegiado é utilizada por Samantha em relação ao protagonista, sendo que, muitas vezes, é ela quem toma a iniciativa por aprender e apreender não novos conhecimentos ou atalhos matemáticos, mas sim as complexas vias para interpretação e também demonstração dos sentimentos humanos, caminhada esta que se inicia do momento em que a mesma é nomeada quando colocada em funcionamento até o seu adeus, quando quase não apresenta mais características de um ente cujas ações e reações são pré-programadas em seus circuitos e conexões.

Humano apesar de tudo?

Figura 4: Dispositivo móvel para o Sistema Operacional Samantha. Fonte: Her (2013)

O título deste tópico analítico sobre o filme Her faz menção à uma instigante reflexão dos franceses Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter, que formam o Daft Punk. E o porquê de tal máxima? Talvez pelo fato desta ser uma das principais problemáticas e também paradoxos trazidos pelo filme em suas mensagens, diálogos e sentimentos, ou seja, qual é a linha que separa uma máquina, a criatura, do ser humano, seu criador, e mais importante ainda, haveria a possiblidade de habilitar a autonomia virtual de um ente mecatrônico ao ponto desta condição se refletir em uma auto-inquirição a respeito de sua própria existência, criação e fim? E ao que se vê e sente em Her esta fronteira não merece questionamento se o sentimento envolvendo a equidade entre os dois entes – criatura e criador – for maior que sua constituição física, seja ela robótica ou biológica.

Em outras obras fílmicas, de longa ou curta duração, a discussão a respeito da transferência, imanência ou transcendência de humanidade para os autômatos criados por nós vem à tona – dotando-os de inteligência e sensibilidade imensuráveis –, muitas vezes superando nossas próprias condições de seres questionadores de nossos próprios propósitos neste mundo. Dentre estas obras podemos citar brevemente: Hal-9000, em 2001: uma Odisseia no Espaço (1968), Motoko Kusanagi em Ghost in the Shell (1995), Maria de Metropolis (1927), o Agente Smith da trilogia Matrix (1999-2003), David Swinton em I.A – Inteligência Artificial (2001),Sheldon e Francesca de I’m here (2010), o Robô de Gigante de Ferro (1999), o ciborgue T-800 em O Exterminador do Futuro II, Wall-E e Eva em Wall-E (2008), Cha Young-goon em Eu sou um cyborg mas tudo bem! (2006), GERTY em Lunar (2009), Roy Batty em Blade Runner (1982) e o curioso e vindouro Ex Machina (2015) estrelado por Alicia Vikander, dentre tantos outros exemplos que poderiam ser elencados aqui. E, de uma forma mais próxima ou distante estes contos fílmicos, por vezes inspirados em uma ou outra obra literária de maior ou menor expressão, podem ser remetidos à algumas grandes referências da transposição da consciência do ser humano para sua criação, como, por exemplo: Pinocchio (1883) de Carlo Collodi,Frankstein ou o Moderno Prometeu (1818) de Mary Shelley e a coletânea Eu Robô (1950) de Isaac Asimov.

O acréscimo dramático de Her, em comparação com estas outras referências fílmicas com temas similares ao seu, se dará por um salto representativo sobre estas questões envolvendo a consci ência existencial de uma máquina, conforme citado anteriormente. No entanto, mais do que uma liberdade para pensar (como é o caso do bicentenário Andrew Martin de Asimov), no caso de Samantha é nos apresentado um questionamento sobre a iniciativa em querer sentir, ou, em nenhum momento isto fica claro na projeção, ao menos emular com a máxima veracidade e profundidade virtual tais sentimentos para com outro ente, neste caso Theodore. E é interessante notar que, fazendo uma contraposição semiótica a A criação de Adão de Michelangelo Buonarotti em 1511 no caso da estória que nos é contada em Her os lados são invertidosjá que de onde deveria advir o racional, neste o IOS de Samantha é que emana o sentimento de cuidar, aproximação e amor e, no que se refere a Theodore, sua racionalidade, receio, insegurança e amarguras passadas fazem com que se torne reticente em muitos momentos do relacionamento que brota entre ele e seu emotivo sistema operacional.

Por fim, façamos novamente uso de outra máxima, também do retro-futurista duo-francês para melhor dialogar com Spike Jonze em sua trama.  Trata-se de um trecho da canção Touchpresente em seu último álbum Random Access Memories (RAM), que expressa a fala dos robôs: “Touch sweet touch; You give me too much to feel; You’ve almost convinced me I’m real, I need something more”. Ou seja, a partir do momento em que foi creditado à máquina o sentimento real entre esta e seu criador, ambos, e não só o IOS necessitam de mais, algo que vá além da própria condição imanente e transcendente de cada um, o que mais para o final da obra se tornará o auge de seu enredo.

A transcendência dual

Figura: Theodore e Samantha
Fonte: Her (2013).

E eis que as cores, ambientação, diálogos e estado de espírito dos personagens ganham outra dinâmica de expressão cenográfica. Os grandes planos abertos aos quais Theodore era enquadrado agora são substituídos pelos closes dos momentos entre ele e Samantha, seja na rua, nos passeios, nos momentos íntimos de seu apartamento (como na canção The Moon Songtocada por ele e cantada por ela), o compartilhamento do seu relacionamento com seus amigos de trabalho, e sua melhor amiga Amy, etc. O figurino de Theodore, que normalmente varia entre as cores rosa, salmão e amarelo agora transferem a acepção de sua mágoa por decepções anteriores para um novo olhar de otimismo perante a descoberta de alguém que o entende como jamais imaginara antes.

O fato de Samantha ser um sistema operacional desprovido de uma corporeidade, incrementa de forma considerável o impacto que sua presença causa em Theodore. E, neste ponto, cabe ressaltar o trabalho de voz realizado por Scarlett Johansson, que, com seu tom rouco e afável aumenta a sensação de humanidade na presença, postura e manifestações sentimentais do IOS. A ausência do contato físico entre os protagonistas da estória só faz com que a incompletude de ambos seja reforçada a medida que esta condição se transforma no propulsor da descoberta de cada um em relação aos sentimentos do outro, amadurecendo de forma gradativa o companheirismo, dialogia, entendimento e beleza do amor que os une, para além do imanente, numa verdadeira transcendência dualística inefável.

E ao menos duas metáforas sobre o corpo são trabalhadas no filme, em ambas o ato sexual ocupa o centro do debate. A primeira delas ocorre nos momentos de imersão da rotina solitária de Theodore, quando este se vê diante de um canal de diálogo anônimo, que, rapidamente, se torna um ato sexual telefônico distante de suas expectativas emocionais. O segundo momento se dá já com a presença de Samantha em sua vida, numa tentativa dela de emular um encontro “físico” entre eles, por meio de uma modelo corporal de aluguel, mas que, novamente, acaba por se mostrar uma frustração por parte do protagonista, devido à diferenciação deste momento com a sua ideação de relacionamento que possui com seu IOS.

E é aqui que podemos observar uma riqueza narrativa sem igual, que enaltece ainda mais a força dos argumentos apresentados em Her, já que é evidenciado de forma crua a abstenção pelo puro prazer corporal do sexo, tantas vezes difundido nos dias atuais como alternativa para uma sociedade dita pós-sentimental. O que Theodore busca, mesmo que de forma platônica, é algo que esteja além, e por ironia de sua história de vida que nos é contada no filme, o mesmo só encontrará tal reconforto dual com um ser acorpóreo, que, gradativamente irá mostra-lo o caminho para a redescoberta de si próprio e da abertura para uma nova trilha compartilhada de seu ser e estar (ou bem estar), mesmo que com um sistema operacional.

Se se é possível estabelecer um ponto crítico sobre a obra de Jonze, este pode ser alocado na temática do próprio amor e do amar, condição esta que é mostrada de forma amistosa nas remanescentes lembranças do protagonista e em sua empolgação progressiva a medida que melhor conhece e se envolve com Samantha. Esta reflexão é necessária pelo fato de não nos ser apresentada, como no caso do fim do relacionamento de Theodore com sua antiga esposa Catherine, os motivos do final da união, e, levando em consideração a alta carga sentimentalista nas expectativas do mesmo sobre relacionar-se, podemos supor a sua relativa prisão platônica, não exatamente na busca de um verdadeiro amor, mas sim, na ideia de amar como ponto de refúgio para suas próprias inquietações existenciais – esta mesma ideia foi trabalhada em outras obras como 500 dias com ela (2009) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) –, que são oferecidas a conta-gotas das primeiras às últimas cenas de Her, para que melhor entendamos suas posturas e pensamentos.

A história contada por Spike Jonze, após estes elementos apresentados, acaba por tomar contornos narrativos inesperados, contribuindo inclusive para a impossibilidade de classificação do gênero aos quais os personagens estão inseridos, ou seja, há momentos em que a ficção científica toma forma, passando pelo drama, comédia romântica, elementos fantásticos, lisérgicos, etc. Mas, apesar disso tudo, é na relação entre um ser humano e uma máquina que as reflexões se voltam, e na maneira como esta ligação pode ultrapassar parâmetros, expectativas e prerrogativas.

A compreensão catártica

Figura: cenas finais de Her. Fonte: Her (2013).

O diretor nos dá algumas pistas dos caminhos que levarão ao final de sua obra, em especial no momento em que Samantha revela para Theodore a intercomunicabilidade entre os IOSs, na formação de uma verdadeira rede de trocas de informações e dados, inclusive, como ela mesma demonstra, na criação de grupos de discussão e associação entre estes entes virtuais. Esta abertura do roteiro é um dos pontos de viragem do terceiro ato do filme, o ponto de causalidade que arrasta a obra para seu derradeiro fechamento. E este fim, que se pauta em uma poética e teleológica viagem a um limbo positrônico, ao qual Samantha é enviada, juntamente com seus iguais do mundo virtual, realça de uma forma intensa, o despreparo de nossa sociedade perante a equalização ôntica e ontológica de nossas criações eletrônicas a nós mesmos.

Deste modo ao longo de Her podemos perceber os indícios do caminho trilhado pelos personagens, Theodore, Samantha e de forma menos enfática Amy, em direção a uma catarse, tendo em vista que suas existências nos são apresentadas, desconstruídas para ao final do filme ser novamente construídas em novos patamares de compreensão íntima de cada um, com o amor e seus desmembramentos como núcleo irradiador de cada epopeia de sensações, emoções, decepções e realizações.

Como diria Victor Hugo “Vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele.” já que Samantha e Theodore em seu amor um pelo outro perecem em seu arrebol, mas, ao mesmo tempo, renascem cada qual em uma nova condição de compreensão de si para consigo, e de si para com o mundo ao qual fazem parte, jamais sendo os mesmos após terem repartido suas existências um com o outro de forma tão plena, mesmo que efêmera.

Por fim, é difícil o encargo de uma elaboração fraseada ao final de Her, pois, para aqueles que realmente mergulharem na viagem cativa e reflexiva proposta pelo diretor terão em suas mentes o abalo de uma miríade de representações, simbolismos, metáforas e mensagens que são expostas ao longo de suas quase duas horas de duração.

FICHA TÉCNICA DO FILME

ELA

Título Original: Her.
Direção: Spike Jonze.
Roteiro: Spike Jonze.
Elenco Principal: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Rooney Mara.
Ano: 2013.