A Língua das Coisas: um tributo a Manoel de Barros

Escuto a cor dos peixes.
Essa vegetação de ventos me inclementa.
(Propendo para estúrdio?)
O escuro enfraquece meu olho.
Ó solidão, opulência da alma!
No ermo o silêncio encorpa-se.
A noite me diminui.
Agora biguás prediletam bagres.
Confesso meus bestamentos.
Tenho vanglória de niquices.
(Dou necedade às palavras?)
O livro das ignorãças

Manoel Wenceslau Leite de Barros foi um poeta mato-grossense (1916-2014), premiado nacional e internacionalmente por sua vasta e profunda obra. Suas criações perpassam por paragens como o niilismo, o parnasianismo, o modernismo e concretismo, além de tangenciar temas como a antropofagia, o regionalismo (o Pantanal e a vida interiorana brasileira) e a diversas reflexões existencialistas.

O curta metragem A língua das coisas de Alan Minas e produzido pela Caraminhola Filmes é uma homenagem a Manoel de Barros. Em seus 14 minutos, assistimos a uma interpretação livre e criativa de alguns dos escritos do autor, tendo como foco a sua inventividade e liberdade na construção dos seus versos.

A iniciativa de resgatar o ambiente bucólico, imaginativo e criativo devem ser colocados em relevo na obra, dos diálogos à trilha sonora, podemos observar uma representação cinematográfica que precisa ser melhor explorada e levada aos jovens e às escolas do ciclo básico – principalmente o Ensino Fundamental –, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, cada vez mais carente destes elementos.

A qualidade técnica da película impressiona, principalmente na direção de arte, fotografia, roteiro e direção, o que justifica sua participação ou escolha no Programa Curta Criança – Ministério da Cultura e TV Brasil, e galardões como o Prêmio de Menção Honrosa FAM no Festival Audiovisual do Mercosul 2010 Prêmio de Melhor Roteiro CineFantasy SP 2010, Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro\2010, além de apresentação em diferentes mostras de animação dentro e fora do Brasil.

 Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

Os deslimites da palavra,  O livro das ignorãças

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A língua das coisas, 2010.

O enredo gira em torno da história entre Lucas (Lucas Santana) e seu avô (Fernando Boher), que moram num sítio, distante dos grandes centros urbanos. E, dentre caminhadas e tardes de pescaria muitas estórias são contadas por aquele eremita pós-moderno, nas palavras do velho homem, dando voz à “língua da natureza”, expressa pelos peixes, árvores e rios.

O lirismo empregado pela produção contribui para enriquecer este nascedouro do verbo, de modo a dar tons ontológicos à obra que, mais uma vez, dialoga diretamente com os escritos de Manoel de Barros, aqui projetado (até mesmo emulado) na intepretação de Boher magistralmente.

“Olha essa palavra aqui
Outra lá do outro lado batendo na pedra. Tem palavra bonita, de amor de riso
Tem palavras que não vão a lugar nenhum, ficam encalhadas no caminho
E algumas não vão dar ideias boas. Essas eu deixo passar
Tem palavras que a gente carrega para a vida toda”
Avô

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A língua das coisas, 2010.

Em certo ponto Lucas se enfada da vida simples e deseja aprender a “língua de gente”, vontade esta que é concretizada quando sua mãe (Julia Bonzi) vai buscá-lo da casa do avô. Em sua nova vida na cidade o garoto não consegue se adaptar, seja na escola, onde não entendem a língua ensinada pelo seu avô, e no dia-a-dia entre carros, prédios e todo concreto ofegantes da urbanidade.

Após um telegrama sua mãe o informa sobre o falecimento do avô, e na volta para o sítio, tentando encontra-lo de todas as formas, seja no rio ou nas árvores, Lucas percebe que as palavras da natureza permanecem vivas, em belas cenas com os verbetes pendurados como frutos, ou sendo arrastados pela correnteza onde costumavam pescar, um simbolismo e apuro estético pouco visto, até mesmo filmes de grande orçamento.

Por fim, o lirismo interpretativo do roteiro e direção faz a diferença, deixando clara a mensagem da vida das palavras para as coisas que representam, são imaginadas e proferidas. Tanto as palavras como seu avô permaneciam vivas e pulsantes de significados.

“Não é por me gavar
Mas eu não tenho esplendor
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor
Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre diabo eu sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.”
Manoel de Barros, Livro sobre Nada

 

 REFERÊNCIAS:

A LÍNGUA DAS COISAS. Roteiro e Direção, Alan Minas. Caraminhola Filmes. Brasil, 2010. 14 min.

BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. São Paulo, Record, 1996.

BARROS, Manoel. O livro das ignorãças. Projeto Biblioteca nas Nuvens – UFBB. Disponível em: < > Acesso. 05.01.2016.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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A LÍNGUA DAS COISAS

Diretor: Alan Minas
Elenco: Amir Ghazi, Fernando Bohrer, Julia Bonzi, Lucas Santana;
Ano: 2010
País: Brasil
Classificação: Livre