Por Rafaela Mazzola (Bacharela em Comunicação Social – Jornalismo e acadêmica de Psicologia)
No filme Avatar: O Caminho da Água (2022), o clã Omatikaya é novamente atacado pelos seres humanos, o Povo do Céu, que já havia invadido Pandora em Avatar (2009). Agora, outra vez em perigo, Jake Sully e Neytiri decidem ir embora com sua família buscando proteção em outro clã, o Metkayina.
A situação vivenciada pela família é de destruição do seu lar, perseguição pelo Povo do Céu e constante tensão, inclusive com ameaça direta à vida dos filhos (Neteyam, Lo’ak, Tuktirey e Kiri). Diante disso, Jake propõe que a família parta, gerando conflito com a esposa Neytiri, contudo, temendo a violência, pais e filhos reúnem o que é possível carregar e deixam a floresta rumo ao clã da água.
A motivação da partida lembra o conceito de migração forçada, sendo “o movimento migratório em que existe um elemento de coação, nomeadamente ameaças à vida ou à sobrevivência, quer tenham origem em causas naturais, quer em causas provocadas pelo homem […]” (OIM, 2009).
O filme memora a realidade de mais de 89 milhões de pessoas deslocadas à força por diversos motivos, como perseguição, conflito e violação dos direitos humanos no país de origem (UNHCR, 2021). O temor diante disso leva muitas pessoas a saírem de seus países por não contarem com sua proteção, transformando assim sua condição reconhecida como refugiada, conforme caracteriza o Estatuto dos Refugiados (1951).
Em Avatar (2022), os dois clãs são constituídos por Na’vi, povo habitante de Pandora, cada um com características próprias, como local de moradia (Omatikaya, na floresta; Metkayina, na água), constituição corporal (as caudas e os traços da pele são diferentes), hierarquia (o líder em Metkayina é Tonowari; enquanto Sully era em Omatikaya), espiritualidade, linguagem, cultura, flora e fauna.
Quando os Sullys, denominação que a família atribui a si mesma, chegam em Metkayina são observados pelo povo local com aparente curiosidade e desconfiança. Um círculo se forma em volta deles até que o líder do clã, Tonowari, decida sobre a permanência ou não da família. Enquanto a decisão é tomada, outros Na’vi se aproximam, riem de sua constituição corporal e tecem comentários sobre eles, como a aparência dos recém-chegados, característica de discriminação. Nesse mesmo instante, outro fato da história familiar é evidenciado, os Sullys são considerados mestiços, pois são fruto da união do avatar Jake com Neytiri, Na’vi.
Após autorização de Tonowari, é atribuído a seus filhos (Tsireya, Ao’nung e Rotxo) que apresentem o modo de vida dos Metkayina aos filhos de Sully e Neytiri, igualmente os adultos fazem o mesmo. Com um local para ficar, a família e o povo do lugar possuem o desafio comum de se adaptarem a nova configuração social.
O processo de mudança cultural no qual os indivíduos são ressocializados é chamado de aculturação psicológica, termo de autoria do pesquisador Graves e mencionado por Sylvia Dantas (2017). O contato com o novo e o que deriva dele causam o estresse de aculturação, conforme relata Sylvia com base nos estudos de psicologia intercultural, e entre seus efeitos estão o sentimento de marginalização e a confusão identitária.
No filme, é possível notar dois exemplos dos efeitos citados acima. Apesar de ambos já apresentarem sinais antes da migração, são acentuados por ela: o filho mais novo Lo’ak, ao se identificar com a história de exclusão de Payakan pelos tulkun; e a filha adotiva Kiri, quando pergunta o porquê de ser daquela forma depois de não compreender o que está acontecendo com si mesma e também por outros adolescentes a acharem esquisita.
Além da adaptação aos novos costumes, os adultos passam pelo desafio da mobilidade de hierarquia (antes líder do seu povo, agora Sully é refugiado) e educação dos filhos (repreendidos também pelo chefe do clã, e não somente pelos pais).
Os adolescentes sofrem bullying, são chamados de esquisitos, são motivos de riso e, pela necessidade de se sentirem aceitos, topam desafios inseguros. Os adultos precisam intervir em alguns momentos, mas conforme as relações vão se desenvolvendo, os conflitos diminuem e começa uma aproximação quando eles mesmos percebem similaridades, por exemplo: ambos precisam lidar com a responsabilidade e as expectativas de serem filhos de lideranças; e a maioria deles, exceto Tuk, está na adolescência, construindo sua própria identidade e em conflito com algumas funções atribuídas aos papéis desempenhados na família.
Diante disso, Dantas (2017) diz que existem condições mediadoras entre a aculturação e o estresse. No filme, mesmo enfrentando momentos causadores de estresse, a família tem acesso à moradia, são apresentados aos costumes, tem acesso à saúde (Kiri passa por uma convulsão e é assistida por Ronal) e meios de locomoção (os ilus) são disponibilizados para todos. Nesse sentido, é o que também estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos no artigo 25º: “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários […]”.
Durante todo o filme, acompanhamos a adaptação dos Sully a nova cultura, devido a migração forçada e a condição de refugiados, somada ao desafio de enfrentarem as complexidades do desenvolvimento de cada membro da família, além dela mesma enquanto um grupo com história.
Ficha técnica:
Avatar: O Caminho da Água
Título original: Avatar: The Way of Water
Diretor: James Cameron
Produtores: James Cameron, Jon Landau
Elenco: Sam Worthington (Jake Sully), Zoe Saldaña (Neytiri), Stephen Lang (Coronel Miles Quaritch), Sigourney Weaver (Kiri), Kate Winslet (Ronal), Cliff Curtis (Tonowari), Jamie Flatters (Neteyam), Britain Dalton (Lo’ak), Trinity Jo-Li Bliss (Tuk), Bailey Bass (Tsireya), Filip Geljo (Aonung), Duane Evans Jr. (Rotxo), CCH Pounder (Mo’at), Jack Champion (Spider).
País: Estados Unidos
Ano: 2022
Gênero: Aventura
Referências:
AVATAR: The Way of Water. Direção: James Cameron. Produção de 20th Century Studios. Distribuição: Walt Disney Studios Motion Pictures. 2022.
DANTAS, S. Saúde mental, interculturalidade e imigração. Revista USP, [S. l.], n. 114, p. 55-70, 2017. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i114p55-70. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/142368. Acesso em: 6 fev. 2023.
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf Acesso em: 11 fev. 2023.
Estatuto dos Refugiados. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf Acesso em: 9 fev. 2023.
OIM. Organização Internacional para as Migrações. Glossário sobre migração, 2009. Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/iml22.pdf. Acesso em: 6 fev. 2023.
UNHCR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Dados sobre refúgio, 2021. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/
Acesso em: 9 fev. 2023.