A solidão coletiva em “O Homem das Multidões”

O personagem do conto tem uma força interessante, uma estranheza que me agrada, um tipo de solidão que é justamente o contrário: a necessidade de estar no meio de muita gente. É uma solidão no múltiplo, não apenas no estar só.
Cao Guimarães

O filme O Homem das Multidões, lançado em 2013, possui inspiração no conto homônimo de Edgar Allan Poe. Em linhas gerais há um argumento simples, intrigante e inquietante: a solidão de um homem frente ao seu mundo. No entanto, este estado de ostracismo é mais relativo que absoluto, já que reside no mesmo um grau particular de relacionamento com a sociedade. Há uma admiração, interação, e degustação da multidão, complementando o modo de ser deste indivíduo na coletividade. Poe elenca alguns destes aspectos em seu conto, e muitos destas características são explorados no filme:

Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. “Este velho”, disse comigo, por fim, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘es lässt sich nich lesn’ (POE, 1990, p.189-190).

Percebe-se que o importante é ressaltar o cotidiano, suas sutilezas e trivialidades, a insignificância de grandes acontecimentos contrapondo-se a significância dos pequenos detalhes. Outras obras que trabalham com esta problemática são O Idiota da Família de Jean-Paul Sartre, O Espelho de Machado de Assis, o Homem Duplicado de José Saramago. Este sui generis da rotina, presente em o Homem das Multidões e suas fontes de inspiração, é que recebe o protagonismo, mais que os próprios personagens das estórias:

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias (POE, 1990, p. 164).

Esta imersão solitária na coletividade do urbano, das grandes metrópoles contemporâneas foi trabalhada também no conceito francês de flâneur – o “perambulador” urbano. Este indivíduo é uma variação interpretativa do andarilho de O Homem das Multidões. Charles Baudelaire discutiu profundamente sobre este indivíduo, que degusta, circula, percorre e perscruta a multidão, sem necessariamente interagir completamente com ela:

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flanêur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem que a linguagem não pode definir  senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda a parte o fato de estar incógnito (BAUDELAIRE, 1995, p. 857).

Os próprios diretores de O Homem das Multidões (2013) Cao Guimarães e Marcelo Gomes, se lançaram sobre o tema da solidão coletiva moderna, em dois filmes anteriores: A alma do osso (2004) e Andarilho (2007). Esta sequência de filmes expõe um ciclo de experimentações, ou melhor, a reificação da mesma estória em busca do seu aperfeiçoamento, seja por seu desenvolvimento, personagens ou ambientação.

Outro grande estudioso da vida urbana na Modernidade Georg Simmel, salienta que para este ser em solidão, estar desta maneira é atingir seu estado de liberdade. A metrópole provoca o surgimento destas inflexões individuais, os ostracistas urbanos, que se fecha em seu mundo, como uma autopreservação. O autor ressalta que esta acepção já é conhecida, principalmente pelos habitantes das cidades menores, pela “frieza” e distanciamento dos metropolitanos, e em O Homem das Multidões, esta composição é exalada em cada minuto da projeção.

Na medida em que o individuo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo, sua autopreservação em face da cidade grande exige dele um comportamento de natureza social não menos negativo. Essa atitude mental dos metropolitanos um para com o outro, podemos chamar, a partir de um ponto de vista formal, de reserva. Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece. quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a urn estado psíquico inimaginável (SIMMEL, 1973).

Em parte esse fato psicol6gico, em parte o direito a desconfiar que os homens tern em face dos elementos superficiais da vida metropolitana, tornam necessária nossa reserva. Como resultado dessa reserva, frequentemente nem sequer conhecemos de vista aqueles que foram nossos vizinhos durante anos. E e esta reserva que, aos olhos da gente da cidade pequena, nos faz parecer frios e desalmados (SIMMEL, 1973).

Até o momento o longa-metragem foi galardoado com prêmio de melhor filme do Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse, Melhor Direção Première Brasil do Festival do Rio, Prêmio Especial do Júri e Melhor Fotografia do Festival de Guadalajara, indicações ao Urso de Ouro do Festival de Berlim, dentre outros. Estes prêmios vêm ao encontro de grandes filmes nacionais (ou com atores e atrizes brasileiros) que estão arrebatando destaque internacional nos últimos anos, como Elena (2012), Praia do Futuro (2014) e O Lobo Atrás da Porta (2013).

A multidão em suas individualidades

Em O Homem das Multidões acompanhamos o cotidiano de Juvenal (Paulo André), um maquinista que vive sozinho em seu apartamento e com uma rotina regrada a perambular por entre as pessoas de uma grande cidade. Podemos observar a inexistência de uma parceira, amigos ou familiares, ao mesmo tempo em que este isolamento não representa um estado de tristeza ou depressão, mas um olhar vago, fala calma e pausada e uma postura introspectiva e absorta na maior parte do tempo.

Apesar do título do filme remontar a figura do personagem nos cartazes e demais divulgações, ao longo das cenas percebemos que há uma “dupla” de solitários, formada por Margô (Silvia Lourenço) e o personagem que encabeça a narrativa, Juvenal (Paulo André). Ambos se comportam como eremitas urbanos, cada qual a seu modo de ser e interação com o mundo. Enquanto um age como legítimo tecnofóbico, do outro lado a solidão também se exala, mas pela tecnofilia de Margô.

Este é o paradoxo entre a solidão e ser solitário presente em O Homem das Multidões. Em outros termos, é possível diferenciar estes dois conceitos, e o filme expõe tal distinção por suas imagens e parcos diálogos. Juvenal (e Margô) vive e desfruta de um estado de solidão coletiva, que a onipresença urbana ajuda a fortalecer. Esta é a argumentação utilizada pelo direto Cao Guimarães sobre sua obra:

Na cidade, você precisa construir elementos narrativos que gerem a sensação de solidão, e isso é algo muito perigoso, pois quisemos evitar que o Juvenal parecesse uma pessoa patológica. Queríamos alguém comum, tímido, introspectivo. […] Ela entra com a questão contemporânea do virtual, de uma solidão diferente, numa relação com as pessoas completamente efêmera de quem se envolve com os outros apenas pelo computador (Cao Guimarães).

A ligação dos sozinhos, sua empatia e dialogia também são enriquecidas nos momentos em que Juvenal e Margô contracenam. E sobre esta relação entre estar sozinho, a solidão e ser solitário, o próprio ator de Juvenal (Paulo André), reflete sobre esta postura do personagem que interpreta, ressaltando que por não possuir um rosto conhecido do grande público acabou por encontrar maior facilidade nas tomadas públicas e coletivas ao longo do filme:

É um personagem paradoxal. Um solitário que gosta e sente prazer de estar junto a uma multidão, no meio de pessoas que não conhece, sem ser notado. Um solitário que se exaspera, se angustia quando está só. Uma pessoa que não tem nenhum traquejo social. Ao menor sinal de interação, de interlocução, ele se esquiva. Um tipo estranho e ao mesmo tempo ordinário, comum. Sem “cores fortes” na composição. É capaz de ficar horas no caos de um centro urbano sem ser percebido (Paulo André).

E, nesta angústia e inquietude metropolitana, Juvenal possui três interações claras ao longo filme: consigo próprio, os mais sugestivos e importantes para a estrutura e desenvolvimento da projeção; com a urbanidade, pois somente em contato e interação com ela que o conceito e a vivência da solidão coletiva toma corpo e se configura como tal, inclusive, como alegoria para nossa época e sociedade; e, por fim, com Margô em “diálogos não verbais”, já que nela o personagem encontra seu duplo, alguém que, de alguma maneira, reflita parte de sua personalidade em sua condição social de individualidade solitária.

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A temática da solidão coletiva, principalmente em ambientes urbanos, é tratada em obras de grande e pequeno alcance, em curtas e longas metragens, em diferentes formas de representação artística, e com variados enredos de desenvolvimento reflexivo, estético e artístico, algumas obras que apresentam tais características são: A casa em cubinhos (2008), Le Cyclope de La Mer (1999), O Céu no Andar de Baixo (2011), Preciosa (2009), O Cheiro do Ralo (2007), A Outra Terra (2011), Asas do Desejo (1987), I’m here (2010), Amantes Eternos (2013), The Lunchbox (2013), Era uma vez eu, Verônica (2012), O Homem Duplicado (2013), Edifício Master (2002).

Em todos estes filmes de linguagem cinemática similar ou paralela à O Homem das Multidões. Multidões, cenários marítimos, texturas pasteis ou monocromáticas, bandas sonoras depressivas e minimalistas e personagens com grande grau de inquietude do eu consigo, propondo grandes reflexões da condição humana, não necessariamente em sua solidão, na contemporaneidade.

A ideia central deste projeto é a solidão do homem contemporâneo, cidadão de uma grande metrópole no Brasil: Belo Horizonte. Resolvemos compor nossos personagens relacionando-os de forma obstinada com esta espécie de alteridade compacta presente nas grandes cidades: a multidão. No mundo contemporâneo podemos pensar em duas formas de multidões. A multidão real, verificável na realidade das ruas, nos aglomerados de pessoas na urbe; e a multidão virtual, intermediada por uma tela (de computadores, celulares e outros aparatos eletrônicos) que redefine toda a sensorialidade presente em nosso estar no mundo. A partir de dois personagens (Juvenal e Margô), arquétipos de uma sociedade industrial e moderna, queremos refletir sobre o processo de isolamento do indivíduo e da massificação das estruturas sociais. As relações perdem a naturalidade do olhar, do falar, do ouvir, ou seja, de tudo o que nos faz estabelecer contato com o outro. Nossos personagens são a incorporação radical desta sensação (Cao Guimarães e Marcelo Gomes).

Alguns toques da direção, figurino, cenografia, movimentos de câmera e técnicas de filmagem dão o tom das obras, como, por exemplo: ambos os personagens de foco (o protagonista e sua coadjuvante) possuem fugas sexuais para sua solidão, a trilha sonora residual, a polifonia idiomática presente em alguns momentos (francês, inglês, chinês, etc. o simbolismo da Babel contemporânea), o ruído urbano permanente, as cenas de amostragem do cotidiano de Juvenal e Margô, dentre outras.

A multidão em sua unicidade

As cenas finais de O Homem das Multidões propõe uma trilha, senão em direção contrária à solidão coletiva de Juvenal e Margô, pelo menos como uma possibilidade de habitação para além deste estado no qual os dois estão. Cabe a cada espectador da obra embarcar nas reflexões existentes em seus elementos, seja no urbano, na socialidade (ou não) dos personagens e temática da solidão, os limites para este exercício se expandam a cada novo início de interpretação, assim como o cotidiano, os ruídos e a continuidade da vida de cada pessoa em sua individualidade e coletividade.

Espera-se que esta obra consiga adquirir a visibilidade de público correspondente a sua já aclamação pela crítica, já que o cenário brasileiro de cinema nacional e de dominância estrangeira – a harmonia é desejada, e não a limitação de uma ou outra forma de produção, de pequena ou grande escala, na sétima arte –, acaba por limitar a entrada de filmes como o de Cao Guimarães e Marcelo Gomes num alcance maior de apreciação nos cinemas.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
.”

Copo Vazio, Chico Buarque

REFERÊNCIAS: 

O HOMEM DAS MULTIDÕES. Direção e Roteiro (Cao Guimarães e Marcelo Gomes).  Cinco em Ponto e REC Produtores Associados. 2013. 95 min.

BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida moderna”. In: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. 3. ed. São Paulo: Globo, 1999.]

SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. Trad. Sérgio Marques dos Reis. In: VELHO, Otávio Guilherme. O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O HOMEM DAS MULTIDÕES

Diretores: Cao Guimarães e Marcelo Gomes
Elenco: Sílvia Lourenço, Jean-Claude Bernardet, Paulo André;
País: Brasil
Ano: 2012
Classificação: 14