Relatos Selvagens: a vingança no micro-ondas

Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Filme Estrangeiro

 

Pela falta de opção da grande tela, Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, Argentina/Espanha, 2014) foi assistido em casa mesmo. Filme iniciado na TV do quarto, na primeira das seis partes no qual está dividido, mudo para a sala, aparelho de televisão maior, corpo espalhado entre sofá-pernas escorregadas-pés plantados na mesa de centro.

Relatos Selvagens é mais uma grata surpresa do cinema argentino. Observa-se com gosto, nos últimos anos, as pérolas que o cinema argentino vem produzindo. Quem possa considerar plenamente que as narrativas de Plata quemada (2000), El secreto de tus ojos (2009),Cuento chino (2011) são por demais regionalizadas, está com algum parafuso solto no tic-tac-teco-tico “ do cérebro. Relatos Selvagens como os três mencionados faz parte dessa vivencia de um contexto específico mas trazem situações e sentimentos nossos enquanto seres humanos latinos.

 

Conselhos para assistir a Relatos Selvagens:

1- Assista ao filme com o grupo de melhores amigos e amigas. Se for no cinema (espera-se que venha para estas paragens ou se já veio que retorne!) ou na sala de casa, depois do filme é preciso sentar para comer (de pizza requentada do fundo da geladeira até os pseudo-culinária chique cara dos restaurantes locais) e beber algo (se de teor alcóolico, jamais coloque as mãos no volante para dirigir de retorno a sua casa, se a sessão ocorreu em casa alheia distante do home sweet home).

2- O filme é convidativo ao riso entre os amigos. Portanto, ria bastante ao recordar dos seis episódios, em especial, aquele que melhor ficou sob sua pele. Embora o pôster oficial tenha um joguete de palavras pedindo a moderação, sacadas inteligentes do que ainda resta de genialidade na publicidade.

 

 

3 – Depois do riso, o papo mais “cabeça” começará, com certeza. O filme é inteligente com diretor – que foi roteirista de Almodóvar, Damián Szifron – trazendo para a tela influências das melhores fases de Pedro. Uma hipótese: embora o Oscar não seja a referência de cinema CINEMA, “Relatos Selvagens” traz seu lado blockbuster bem ao gosto do mainstream, mas não impressionou as cabezotas duras dos gringos… o filme é inteligente, faz pensar, não é melodrama ou docudrama ufanista de fácil “deglutição” para um publico fast food difícil de contemplar pérolas.

4 – Do “papo cabeça”, opiniões do senso comum vão surgir, recordações de situações doloridas, de vergonha alheira, de gritos parados na garganta, de não ditos ou até ditos demais que se pensava estarem resolvidos aparecem como cristais encrustados em nosso subconsciente. Na escolha de seu episódio ou do filme como um todo, muito do que se traz por dentro vem à tona.

5- Szifron convida a visitarmos os nossos desejos mais profundos de vingança melodramática, da necessidade de explosão das raivas, do descontrole e saída dos limites quando o desejo é extrapolado. Preste atenção no prazer ocasionado pelas explosões em todos os seus significados. Qual é a sua mais latente?

O filme vai apresentando narrativas que nos mostram aquela raiva – porque tudo que poderia se resolver se apresenta como utópico – com a burocracia e a corrupção dos órgãos públicos; evidencia o estado de medo, impotência e até mesmo de punição para quem não deseja se encaixar na relação aquele que corrompe-o ato de corrupção- aquele que se deixa corromper.

Quantas vezes, a vontade de lavar a roupa suja em público, mas quantas vezes mesmo, os desejos de “fazer barraco”, “descer do salto”, “rodar a saia da Pomba-Gira” não vêm em todo nosso ser quando se sabe das traições, infidelidade, do descaramento do funcionário público que pode lhe agredir, menosprezar, in-visibilizar ao cidadão que demanda informações… quem não tem raiva do indefectível artigo 331 do Código Penal (o desacato ao funcionário público etc., etc., etc. e + etc.) enquanto a igualdade de deveres e direitos na Constituição Federal se esvai ralo abaixo?

 

 

“Relatos Selvagens” traz situações que escapam do contexto argentino e se tornam questões compartilhadas na América Latina, não dá para dizer que também na África – porque pouco se conhece das várias Áfricas embutidas naquele continente –. Num restaurante de beira de estrada, em um dos episódios, está embutida uma questão dos Montecchios e Capuletos, sem é claro, do romanesco de Julieta e Romeu. O inimigo de meu inimigo é meu amigo, diz a máxima proverbial, mas será que o filho de meu inimigo é meu inimigo? O fruto não pode cair um pouco mais distante das árvores?

 

A vingança antes de “Relatos Selvagens” era um prato de comida que se comia frio, dando tempo ao tempo para se dar o bote no momento certo; agora, é um prato de comida que se coloca no micro-ondas, na mais alta potência e, se deixar rodar até tudo queimar.

O primeiro episódio traz pelo absurdo do humor negro (ainda é permitido utilizar a última palavra nesse sentido… no mundo de pelejas entre “cis” e “trans” – enquanto cabeças são literalmente cortadas por extremistas?) é o avião como um grande micro-ondas… Quem nunca teve vontade de juntar os desafetos ao longo de sua história de vida (infelizmente, das professoras de matemática aos ex-amores que teimam em arrastar suas correntes fantasmagóricas em nossa memória), sinto muito, é quase um spoiler, mas me contenho, de… não vou dizer o que ocorre.

 

O filme explora a fragilidade humana e os labirintos que nós mesmos criamos e nos impomos. De maneira alguma é apologia à vingança, basta de revanchismos, vinganças de sangue-crenças religiosas- ideologias-etnias-política-minoria-maioria!

“Relatos Selvagens” possibilita o momento do riso e da reflexão, abre essa porta para discutirmos, sem pudor ou culpabilidade não resolvida em algum divã, sobre as relações que o mundo nos impõe e nós impomos. E o principal, ganhos e prejuízos caminham juntos. Sem falso moralismo, cuidado com os efeitos reversos… Com a voracidade de tudo colocar no micro-ondas na potência máxima podemos nos colocar no meio…

Trailer:

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


 

FICHA TÉCNICA DO FILME

RELATOS SELVAGENS

Direção: Damián Szifron
Produção: Pedro Almodóvar e Axel Kuschevatzky
Roteiro: Damián Szifron
Música: Gustavo Santaolalla
Ano: 2015