Dirigido por Jason Reitman, “Amor sem Escalas” é um filme com gênero dramático e cômico, no qual mostra a vida de um executivo, Ryan Bingham (George Clooney), o qual é emprestado para as outras empresas para fazer demissões de funcionários de empresas por todos os Estados Unidos.
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Ryan dedica sua vida inteiramente ao trabalho, isenta-se de compromissos até mesmo com a sua família e ama a rotina de viajante. Mas, inesperadamente a sua vida de viajante terá de ser interrompida porque uma nova funcionária chega à empresa e tenta modificar o modo de trabalho, reduzindo os gastos com as viagens através de um novo sistema de teleconferência para fazer as demissões.
No decorrer do filme, Ryan viaja com a nova colega Natalie (Anna Kendrick) para mostrar o funcionamento do processo de demissão e se envolve com uma executiva, Alex Goran (Vera Farmiga). Inesperadamente, Ryan se apaixona pela Alex e ao descobrir que ela é casada e que ele foi apenas um passatempo para ela, Ryan se depara com o vazio de sua vida e a futilidade de seus objetivos.
O personagem principal, Ryan Bingham mostra o perfil clássico de executivo contemporâneo que se dedica inteiramente ao trabalho, abdica de qualquer outra relação, almeja a produtividade e os benefícios que o trabalho pode lhe proporcionar. A satisfação de sua vida é o que para muitos homens de família seria um sacrifício: viver viajando.
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Na tentativa de evidenciar que a vida repleta de exigências, o personagem dedicava-se exclusivamente ao seu trabalho, sendo assim, excluído de relacionamentos interpessoais e afastado da família. Como resultado, incorporou o discurso da organização, agindo de forma desumanizada e característica de um normopata.
Com essas exigências, esses profissionais são contaminados por uma lógica perversa de funcionamento organizacional, que pode levar ao desenvolvimento de comportamentos de normopatia. O profissional assume, muitas vezes, práticas cruéis que lhe são exigidas, não percebendo sua própria desumanização e perda de identidade (BORGES, 2012, p.7).
Normopatia nas Organizações
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O conceito de normopatia é oriundo da psicanálise e foi utilizado pela primeira vez por Joyce McDougall. Trata-se de uma “normalidade falsa ou apenas aparente; melhor dizendo, é uma normalidade estereotipada ou uma hipernormalidade reativa, decorrente de um processo de sobreadaptação defensiva.” (FERRAZ, 2002, p.22-23)
Este conceito pode ser observado pelos profissionais do mundo contemporâneo, os quais devem estar prontos para servir às organizações e não permitir as interferências dos seus sentimentos no trabalho.
A vida contemporânea capitalista exige que os profissionais sejam cada vez mais como máquina produtoras à disposição permanentemente das organizações. Na medida em que se tenta driblar a competitividade e servir a uma organização, automaticamente acaba-se renunciando a uma vida tranquila no convívio dos familiares e do lazer. O capitalismo procura trabalhadores que se dediquem inteiramente ao aperfeiçoamento das habilidades para servir a uma organização e/ou profissionais diferenciados por não possuírem vínculos que não sejam o trabalho.
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Um exemplo do perfil de profissionais procurados é implicitamente como o de Ryan Bingham: solteiro, sem vínculos interpessoais, desapegado à família, flexível, sistemático e dinâmico. Não necessariamente necessita gostar do trabalho, desde que seja fiel a ele e o execute com êxito.
É comum que alguns profissionais se sacrifiquem para se manterem num trabalho que lhe satisfaçam menos, mas que lhe proporcionem status, bons salários e demais recompensas como no caso do Ryan Bingham, que valorizava o seu trabalho pelas recompensas e privilégios obtidos das companhias aéreas, muito mais do que o próprio conteúdo do trabalho.
O envolvimento do executivo com a organização faz com que este profissional se identifique com os seus valores e aceite o imaginário organizacional como seu. Voluntariamente, ele incorpora os anseios organizacionais e a insensatez do mundo do trabalho, tendo em troca a satisfação dos seus próprios desejos narcísicos (PABS e SIQUEIRA, 2008 apud BORGES, 2012, p. 27).
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Com o tempo, o excesso de trabalho pode tornar evidente a falta de compaixão e empatia pelos outros. Ryan já estava tão acostumado a fazer demissões que seu trabalho se tornou mecânico. As demissões eram feitas como se todos os funcionários de qualquer empresa fossem iguais e Ryan ouvia as queixas e lamentações deles sem se afetar, acreditando que todos exageravam nas lamentações.
Os normopatas costumam ser notavelmente integrados e adaptados à sociedade, agindo com desembaraço e serenidade, sem serem perturbados pela culpa nem pela compaixão. E agindo dessa maneira, parecem não perceber as reações e o sofrimento dos outros, como se não compreendessem por que os demais não conseguem se adaptar a uma sociedade cujas regras, no entanto, lhes parecem derivas do bom senso, da evidência e da lógica natural (McDougall, 1992 apud BORGES, 2012, p. 29).
Numa das demissões, um funcionário perguntou se “ele dormia bem à noite fazendo aquilo?”, mas Ryan era egoísta e não tinha sequer empatia pelas pessoas. Sua mente não interferia no seu trabalho, até mesmo porque seus pensamentos eram inteiramente voltados à sua rotina de trabalho, sem incômodo e envolvimento com seus familiares.
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Diferentemente de Ryan, Natalie se abalava com as lamúrias e ameaças de suicídio dos funcionários demitidos. Para Ryan, as viagens eram vistas como a oportunidade de alcançar a sua meta: de tornar-se o executivo vitalício com o nome escrito na lateral do avião, e para isto era preciso acumular suas tão almejadas 10 milhões de milhas.
Ryan era um executivo bem sucedido devido ao seu desapego emocional. O tema de suas palestras de “esvaziar suas mochilas” também fazia parte da sua filosofia de vida. Não parecia gostar tanto assim do trabalho em si, mas sim da vida corrida que levava e do deslocamento geográfico que lhe impediam de perceber que sua vida na verdade era vazia e sem sentido.
Embora Ryan não apresentasse nenhum problema de saúde, precisamos reconhecer pela ótica psicossocial que saúde não é estreitamente a ausência de doença. O estilo de vida que ele levava marcado pelo absenteísmo, falta de vínculos emocionais, ausência por compaixão e dedicação exagerada ao trabalho poderiam provocar efeitos nocivos à sua saúde.
A busca pelo equilíbrio psíquico e pela manutenção da normalidade necessária à preservação da relação homem- trabalho tem estimulado os trabalhadores a construírem estratégias defensivas, incluindo o desenvolvimento de comportamentos normopáticos+ (Dejours 1992,1996 e Dejours, Abdoucheli e Jayet 2010 apud BORGES, 2012, p. 27).
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Se Natalie permanecesse nesse trabalho, sendo ela uma pessoa sensível, que desejava um relacionamento amoroso e mantinha contato familiar, certamente estaria exposta ao estresse ocupacional ou desenvolveria comportamentos de normopatia.
Dejours (1999) explica que o desenvolvimento da normopatia decorre da formação de processos defensivos contra o risco de desorganizações psíquicas severas, tais como estresse, solidão e depressão, entre outras patologias decorrentes das exigências do trabalho contemporâneo (BORGES, 2012, p. 30).
O discurso de Ryan é marcado pela falta de sentimentos afetivos, sejam familiares ou amorosos. Numa das cenas ele é chamado de infantil pela colega Natalie, pois ele estava perdendo a chance de ter um relacionamento com Alex. Mas, como sabemos no final, a Alex não passava da cópia feminina de Ryan no que diz respeito ao relacionamento extraconjugal que ela manteve com ele.
Ao defender que seu trabalho deveria continuar através das viagens, Ryan usou um discurso cínico: “o que nós fazemos é brutal e deixa as pessoas devastadas, mas o modo como eu faço é muito digno”.
O profissional normopático passa a pensar, sentir e agir de modo completamente alinhado com o objetivo do seu trabalho, absorvendo, muitas vezes, valores desumanos que são praticados pelas organizações, transformando-se, assim, em sujeitos que reproduzem e produzem o discurso e os desejos organizacionais, não percebendo sua própria desumanização” (BORGES, 2012, p.30).
Assim, movido pelo status profissional e a sua meta de atingir as 10 milhões de milhas, ausente de sua família e de sua casa, mas rodeado de pessoas estranhas, as quais jamais teriam vínculos com ele, Ryan encontrava forças para manter a rotina de seu trabalho sem se esforçar, já que culpa, piedade, interação familiar, monogamia e estabilidade geográfica não “cabiam na sua mochila”.
“Dinâmicos, independentes, solitários, flexíveis e desapegados, os executivos normopáticos se assemelham a robôs, seguindo uma disciplina obsessiva visando apenas produtividade e resultados.” (Ferraz, 2002 apud BORGES, 2012, p. 70).
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Enfim, as exigências do capitalismo impelem-nos a um aperfeiçoamento cada vez maior pela busca de um lugar no mercado de trabalho. Os nossos atos e afetos deixam de fazer sentido na medida em que nos guiamos apenas pelos resultados dos nossos esforços.
Estamos sempre apressados tentando nos tornar os melhores em tudo. Deixamos de lado a família, os amigos e o lazer. A profissão tão sonhada é deixada para trás no momento em que se passa a buscar melhores contextos trabalhistas do que conteúdo. Estamos rodeados de executivos, funcionários, médicos e demais profissionais insatisfeitos com o que fazem, mas mantidos apenas pelos gratificantes salários e status.
O personagem Ryan Bingham não se difere de alguns profissionais que temos na realidade. Nos dias atuais estamos sendo coagidos a investir tempo e dinheiro em aperfeiçoamentos para fazer a diferença num mercado de trabalho que não tem lugar para todos. Quase não existem mais aquelas pessoas que executam suas profissões apenas por puro deleite e quando a fazem é repleta de títulos e especializações para que não sejam rejeitadas pelas exigências capitalistas.
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Na tradicional visão biomédica, quando o sujeito apresenta algum adoecimento psíquico, o foco é eliminar o sintoma para torna-lo disponível novamente ao seu trabalho. Esta medicalização da vida não leva em consideração os desejos do sujeito e o sentido que o seu trabalho representa. Em uma das suas formas manipulativas, a sociedade capitalista tenta ignorar a existência dos sentimentos que causam desconforto por meio de imposições controladoras, utilizando-se de medicações.
Supondo que Natalie não tivesse pedido demissão e que se sentisse culpada a cada demissão que fizesse e procurasse ajuda médica. Na certa ela seria medicalizada no intuito de que voltasse a estar apta para exercer o seu trabalho o mais rápido possível.
Muitas pessoas ainda se comovem com o sofrimento alheio, reveem os seus conceitos e buscam um sentido para sua vida. Diferentemente disso, temos profissionais como Ryan, os quais se escondem atrás do seu trabalho para fugir de si mesmos e se enganam que para subsistir é preciso estar satisfeito apenas com o contexto do emprego.
Referências:
BORGES, C. L. P. Trabalho executivo contemporâneo: uma ótica sobre o filme “Amor sem escalas.” 2002. 86f. Tese (mestrado em administração). Universidade Federal de Lavras, MG. Lavras, MG. 2012
FERRAZ, F.C. Normopatia: Clínica Psicanalítica. Casa do Psicólogo: São Paulo, 2002. 148p.
FICHA TÉCNICA DO FILME
AMOR SEM ESCALAS
Direção: Jason Reitman
Música composta por: Rolfe Kent
Roteiro: Jason Reitman, Sheldon Turner
Prêmios: Prêmio Globo de Ouro: Melhor Roteiro de Cinema
País de Origem:EUA
Ano: 2009