As Vozes: a importância das redes de apoio na Adesão ao Tratamento

The Voices – “As vozes” – foi lançado em 2015 e aborda uma combinação de violência, terror, romance e comédia permeada pelo humor negro. A direção é da franco-iraniana Marjane Satrapi, e o roteiro ficou com Michael R. Perry. O protagonista da história é um jovem chamado Jerry Hickfang (Ryan Reynolds), uma pessoa otimista e que leva uma vida controlada; no entanto, cada dia, após sua rotina de trabalho, ao chegar em casa, sempre se depara com uma situação inusitada: pessoas conversarem com animais de estimação é algo comum, mas ouvi-los responderem suas indagações foge do conceito de normalidade e é tido como patologia.

Logo no início do filme percebe-se que Jerry vive num mundo à parte. O longa foca no artifício de passar cenas com o personagem principal desempenhando ações corriqueiras no seu trabalho usando headphone para ouvir músicas, corroborando com tal afirmativa; observa-se ainda, que a paleta de cores da obra é colorida, permeando o cenário com um mix de alegria e desconforto, visto que as tonalidades são exageradamente berrantes em certos objetos e pessoas, criando assim um ambiente único e instigante aos olhos do espectador.

 

No decorrer do enredo compreende-se que o protagonista apresenta particularidades de um portador de transtorno mental, tendo dificuldades em aderir ao tratamento medicamentoso. Mion Jr e Gusmão (2006) afirmam que a adesão ao tratamento, sendo ele medicamentoso ou não, decorre de fatores socais, interpessoais, aspectos relacionados ao tratamento ou ainda características ligadas à doença. Portanto, mesmo que Jerry tenha aderido à psicoterapia, fazer uso dos fármacos é relevante no seu prognóstico, uma vez que ele ouve vozes. Parte-se do pressuposto que o mesmo é esquizofrênico.

No CID 10, a esquizofrenia caracteriza-se:

Em geral por distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção, e por afetos inapropriados ou embotados. Usualmente mantém-se clara a consciência e a capacidade intelectual, embora certos déficits cognitivos possam evoluir no curso do tempo. Os fenômenos psicopatológicos mais importantes incluem o eco do pensamento, a imposição ou o roubo do pensamento, a divulgação do pensamento, a percepção delirante, ideias delirantes de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias que comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa, transtornos do pensamento e sintomas negativos (OMS, 1997).

O transtorno mental afeta de forma significativa a vida do sujeito, podendo comprometer a forma de ser e estar deste, ou seja, afeta o ajustamento psicossocial do individuo (MORAIS, 2006).  Os colegas de trabalho de Jerry não sabem sobre o seu passado, no qual, cometeu um ato que o levou a reclusão social. Ao ser reinserido na sociedade este busca agir conforme as normas e regras, pois paira sobre Jerry a possibilidade de voltar ao cárcere.

 

No entanto, o protagonista não dispõe de redes de apoio durante o seu tratamento, isto é, um amigo, um familiar que o ampare durante este processo. Desta forma, mesmo impelido a seguir as “regras” que lhe são impostas, a realidade é assustadora e solitária, portanto, Jerry opta por não se medicar e assim continuar na sua própria “realidade”.

Villas-Boas et al (2012) salienta que o apoio social se caracteriza por um:

Processo complexo e dinâmico que envolve os indivíduos e suas redes sociais, com o intuito de satisfazer as suas necessidades, prover e complementar os recursos que possuem e, dessa forma, enfrentar novas situações, podendo ter como fontes principais os familiares e os profissionais da saúde (p. 3).

A psiquiatra desempenha uma fonte de apoio, mas de forma superficial, preenche apenas o protocolo burocrático, a sua fala é monótona, não demonstrando interesse no cotidiano do seu paciente. Portanto, destaca-se a relevância do trabalho interdisciplinar, o acompanhamento psicoterápico poderia auxiliar manejos das situações e no enfrentamento de crises (MARQUES et al, 2012).

 

Nesse interim percebe-se que nada ao redor do Jerry propicia a uma adesão ao tratamento medicamentoso, as redes de apoio são as vozes que apenas ele escuta, é por meio destas que Jerry sente-se amado, compreendido. Desta forma, a medicação o lança numa realidade amedrontadora e sem vínculos de amizade, sendo uma ferramenta de sofrimento, visto que, sem as vozes a conexão que o protagonista tinha com o gato e o cachorro é desconectada, perdendo assim os únicos vínculos afetivos que ainda disponha (VILLAS-BOAS, 2009).

O filme retrata de forma implícita o papel biopolítico da psiquiatria e a indústria farmacêutica como ferramentas de controle social e geradora de sofrimento ao sujeito devido à medicalização excessiva. Percebe-se o envolvimento cada vez mais perverso destas vertentes. Foucault corrobora ao salientar que:

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica, a medicina é uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 1989, p. 82).

Por fim, os agentes de controle em consonância com seus dispositivos de disciplina imperam na sociedade; esta, por sua vez, sustenta o discurso com ênfase na “medicalização”, onde profissionais compactuam com a indústria farmacêutica lucrando com incentivos financeiros, adotando uma postura indiferente ao sofrimento, às consequências sociais e salubres, compondo assim com a lógica capitalista.

REFERÊNCIAS:

BOAS, L. C. G. Apoio Social, Adesão ao tratamento e controle metabólico de pessoas com diabetes mellitus tipo 2. 2009, Dissertações de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Fundamental da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

BOAS, L. C. G. et al. Relação entre apoio social, adesão aos tratamentos e controle metabólico de pessoas com diabetes mellitus. Rev. Latino-Am. Enfermagem. Artigo Original 20(1):[08 telas] jan.-fev. 2012.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GUSMÃO, J. L; MION, D. J. Adesão ao tratamento – conceitos. Rev Bras Hipertens vol.13(1): 23-25, 2006.

MARQUES, C. R. et al. Intervenção em situação de crise no âmbito hospitalar. Disponível em:
http://guaiba.ulbra.br/seminario/eventos/2012/artigos/psicologia/salao/919.pdf. Acesso em: 28 de novembro de 2015.

Organização Mundial da Saúde. CID-10 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10a rev. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1997. vol.1.

FICHA TÉCNICA

AS VOZES

Titulo original: The Voices
Direção:  Marjane Satrapi
Gênero: Comédia, Suspense, Drama
Lançamento: 25 de Junho de 2015-12-01
Nacionalidade: EUA, Alemanha
Elenco: Ryan Reynolds, Gemma Arterton, Anna Kendrick