Já imaginou um período histórico em que a tecnologia é uma extensão da consciência humana, que a Inteligência Artificial fecha e também abre novos postos de trabalho, e que a robótica atua desde a execução de cirurgias complexas, passando por sistemas de vigilância e, por fim, culminando na indústria de diversão e do sexo, através dos bonecos sexuais inteligentes? Pois bem, este tempo é agora! Isso porque, nos últimos vinte anos, há uma estrondosa acumulação de conhecimento em várias áreas da ciência, o que acaba por colocar o desenvolvimento tecnológico e humano numa perspectiva exponencial.
E por que desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento humano são vistos como sinônimos, ao menos pelo ponto de vista liberal? Porque, como defende Galimberti (2006), é impossível pensar em humanidade sem, com isso, associá-la ao uso da tecnologia. Isto porque, para o italiano, somos seres naturalmente inclinados à elaboração da técnica e à instrumentalização, sob pena de colocarmos em risco a sobrevivência da própria espécie, já que não dispomos de estrutura biológica adequada para enfrentar todas as intempéries da natureza. Como isso ocorre? Um exemplo simples é pensarmos no uso de roupas específicas para cada estação do ano. Se a humanidade não tivesse desenvolvido um conjunto de artifícios para enfrentar o frio extremo do inverno, como poderia ter sobrevivido? E assim ocorreu com todas as outras tecnologias, em que pese à crítica feita por pensadores de orientação socialista, para o que chamam de criação de pseudo-necessidades, a partir da lógica liberal dos mercados.
De qualquer forma, partindo da premissa levantada pelo físico teórico e cosmólogo Stephen Hawking, não se pode mais imaginar uma humanidade sem que esta esteja cada vez mais entrelaçada à tecnologia, ao ponto de, num futuro próximo, confundir-se com ela, no que os transhumanistas já vêm trabalhando há pelo menos duas décadas. E o que tudo isso tem a ver com a Psicologia e com a série britânica Black Mirror (disponível no Netflix)? Tudo a ver!!!!
No caso de Black Mirror, trata-se de uma ficção científica de sucesso que já está na quarta temporada e que aborda de modo satírico e, por vezes, obscuro, temas típicos da pós-modernidade, sobretudo em relação às consequências imprevisíveis do exagerado uso das tecnologias. Criada por Charlie Brooker, a série replica em sua estrutura narrativa uma dinâmica comum na liquidez (BAUMAN, 2007) da contemporaneidade, a saber, nenhum episódio é continuação de outro, e todo o elenco muda a cada tópico abordado. As estórias às vezes parecem caricaturais, mas em muito alerta para dinâmicas que já ocorreram e que podem ser naturalizadas, com o passar do tempo, como no exemplo do primeiro episódio da terceira temporada, que aborda um hipotético momento em que, para se ter ascensão social, é necessário viver sob o escrutínio de terceiros, a partir do recebimento de avaliações constantes e positivas em redes sociais eletrônicas (o que já está ocorrendo no Instagran, diga-se de passagem). Cada episódio espanta, cativa e gera insights transformadores. Com isso, Black Mirror acabou ganhando a graça do público e da crítica especializada, e é fonte de estudo em grupos de Psicologia, Filosofia e Sociologia.
Neste sentido, a Psicologia é pressionada a dar respostas a este momento histórico desafiador. Isto porque toda transformação de ordem social e tecnológica remete primeiramente a um movimento cuja gênese está na subjetividade. É a vontade humana, consciente ou inconsciente, que gera volição e, depois, as mudanças, no que Freud já relatava sobre o pensamento como o ensaio da ação.
Deste modo, o profissional de Psicologia da contemporaneidade deve apropriar-se de narrativas e intervenções que levem em conta as novas configurações afetivas mediadas pelo uso de tecnologia, além de perceber a tecnologia como condição indissociável e inalienável à vida, logo, produto da engenhosidade humana, extensão mesma deste ser humano ainda em processo de investigação na sua dimensão psicológica. Assim, é imperioso debruçar-se sobre o tema, sob o risco de ficar à margem de uma revolução em curso, revolução esta que diz muito sobre questões de caráter existencial.
No caso específico da prática cotidiana do profissional de Psicologia, questões como o uso de tecnologias para processos terapêuticos (como a utilização de apps para mediar intervenções), os novos transtornos eclodidos pela interação com a tecnologia, e as relações afetivas e de trabalho sob o advento das tecnologias são temas cada vez mais recorrentes que requerem um olhar e uma elaboração teórica e clínica apurada. São muitos autores que já pesquisam e escrevem sobre este tema, sobretudo na Psicanálise. O desafio está dado… ele requer a destreza de quem precisa entender que, no meio de uma revolução, não se pode saber exatamente quais são todos os seus desdobramentos. Isto só a história dirá. No entanto uma coisa é certa: neste debate, a Psicologia tem muito a colaborar, seja na tentativa de dar respostas para as novas agruras humanas típicas do período, seja intervindo para que a melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Referências
BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006.
BITTENCOURT, Renato Nunes. O ressentimento como problema fundamental em Nietzsche. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência – 1º quadrimestre de 2016 – Vol. 9 – nº 1 – pp.103-106. Disponível em <: http://tragica.org/artigos/v9n1/bittencourt-resenha.pdf >. Acesso 18 jan. 2018.