“A escolha é possível, em certo sentido, porém o que não é possível é não escolher.
Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que,
se não escolher, assim mesmo estarei escolhendo” – Jean-Paul Sartre
O filme “Boa Sorte”, que é inspirado no conto “Frontal com Fanta”, de Jorge Furtado, recebeu várias referências positivas da crítica tupiniquim. Estrelado por Débora Secco e João Pedro Zappa, e sob a direção de Carolina Jabor, o longa aborda a conflituosa existência de uma portadora de HIV e usuária de drogas, Judite, que se envolve emocionalmente com o adolescente João, um garoto diagnosticado com “distúrbios de comportamento” e em contratempo com a família. Eles se conhecem durante um período em que ficaram internados juntos numa clínica psiquiátrica de uma região degradada do Rio.
Minuto a minuto, Débora Secco se agiganta na atuação. Como Judite, faz o papel de uma mulher que demonstra se recusar a enfrentar o mundo (e que sintetiza as agonias e sofrimentos de muitos); Já os pais de João reconheceram na clínica “uma boa alternativa para se livrar de um problema dentro de casa”. A opção mais cômoda, então, foi terceirizar o enfrentamento do problema.
A partir desta dinâmica, percebe-se nos personagens uma tendência para a auto-exclusão, para a autossabotagem e para a negação da interioridade (identidade). Como diria Antoine de Saint-Exupéry, autor de “O Pequeno Príncipe” e amplamente utilizado como “pano de fundo” na estória, “se a vida não tem preço, nós comportamo-nos sempre como se alguma coisa ultrapassasse, em valor, a vida humana… Mas o quê?”. A resposta parece vir de outro trecho da obra do francês: “A ordem não cria a vida”. Por mais que a vida seja sabotada, ou que se tente “ordená-la” através do convencionalismo, é na contingência e na angústia que ela se expressa com grande força e esteticidade. Secco “encarnou” bem esta personagem, alguém que busca transcender pelos extremos, e que ao mesmo tempo – pelas limitações comuns inerentes ao corpo – não suporta as demandas decorrentes de suas escolhas (ou ausência delas).
Além deste viés parcialmente existencialista, o filme “denuncia” uma situação corriqueira impingida às comunidades minoritárias/estigmatizadas do país, como os portadores de HIV e usuários de drogas. No caso específico dos portadores do HIV, o longa parece indicar para um ponto amplamente debatido pelo professor Bernardino Geraldo Alves Souto, que pesquisa sobre o impacto do diagnóstico de tal infecção e sua “carga” nas representações internas e na temporalidade existencial (os portadores, no início do diagnóstico, tendem a perder a perspectiva de futuro) e, por fim, a forma como o estado e a sociedade tentam manter o “controle” sobre os infectados, diferenciando-os e isolando-os dos demais pacientes de doenças crônicas.
Ao separar os locais de tratamento de HIV/Aids e de outras doenças sexualmente transmissíveis das unidades gerais de saúde (hospitais, clínicas e afins), o portador é inserido numa esfera psicológica que, num primeiro momento, reforça o estigma e pode passar a impressão de que há, no fundo, uma punição pelo diagnóstico recebido.
Alguns pesquisadores destacam que o desnudamento comportamental da pessoa provocado pela revelação do diagnóstico, especialmente na esfera sexual, e a perspectiva da morte têm caráter extremamente estigmatizante, tanto por parte da sociedade em relação à pessoa infectada quanto por parte do indivíduo infectado em relação a si próprio. […] A morte então é vista como algo repulsável, assim como o é quem e/ou aquilo que a representa, da mesma forma que são rejeitados determinados padrões de comportamento tido como anticulturais, os quais conjectura-se que fizeram parte das atitudes que levaram o indivíduo a contrair o HIV. (SOUTO, Bernardino apud FERRAZ & STEFANELLI, 2001; NETO, VILLWOCK & WIEHE, 1996).
Haveria na personagem Judite, portanto, traços de isolamento deliberado e de supressão da identidade, numa espécie de “indisposição para a vida”. Além da falta de perspectiva de futuro, “a experiência psicológica da morte vem como uma consequência do isolamento social do indivíduo, criando um senso de ser invisível, excluído do interesse alheio, desprezado e descartado socialmente”, no entanto sob o paradoxo de estar sendo “observado e vigiado” [Souto et al. (2008)].
Ainda assim, a pulsão pela vida “reclama” o seu espaço. Ela se revela numa espécie de “ética estética” ao estilo foucaultiano, e que na estória se apresenta no romance entre os protagonistas. Os afetos são “aquecidos” pela energia do sexo, e o filme além de conter traços cortantes e obscuros, passa a expressar que, mesmo sob as mais difíceis circunstâncias, é possível vislumbrar o poder criador do indivíduo. Naquela casa psiquiátrica, Judite e João cunharam suas próprias regras. Há, portanto, uma afirmação da vida, ainda que diante de um panorama que exala a morte. Mas isso não foi muito longe!
A ambiguidade de sentimentos desestrutura o bem-estar da pessoa. […] ela passa a conviver com um misto de desespero e esperança, (com) as preocupações existenciais diante do significado e dos projetos da vida, a ansiedade em face da perspectiva consciente da morte e do isolamento, a sensação de estar entre a doença crônica e a doença terminal, entre o sentimento de culpa e de inocência. (SOUTO, Bernardino. 2008)
Não por menos, apesar dos avanços no tratamento da AIDS com o uso dos superpotentes medicamentos de última geração (e a cada período, novas descobertas e novos medicamentos são incorporados ao tratamento), ainda assim cerca de 11,5 mil brasileiros morrem por ano em decorrência de complicações promovidas pela AIDS. Boa parte dos problemas é decorrente da falta de adesão ao tratamento. No filme, no entanto, não se aborda esta faceta.
Por fim, Débora Secco quis entender a fundo este universo ainda mal compreendido. Além de ter vivenciado fortes marcas corporais, já que emagreceu 11kg para atuar, disse em entrevistas que o longa foi uma divisão de águas em sua carreira, com marcas também na sua forma de enxergar o mundo.
Para Bernardino Alves Souto, um diagnóstico de HIV/AIDS modifica a pessoa de dentro para fora, alterando a forma como ela se percebe, como percebe os outros e como os outros a percebem. Em súmula, o diagnóstico de infecção pelo HIV, “por suas implicações orgânicas, existenciais e socioculturais, transforma o indivíduo em outra pessoa, mesmo que ela não queira”. Judite (Débora Secco) parece ter representado muito bem esta metamorfose.
REFERÊNCIAS:
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
SOUTO, Bernardino Geraldo Alves. O HIV, seu portador e o tratamento anti-retroviral: implicações existenciais. São Carlos: EdUFSCar, 2008;
Filme com Débora Secco como portadora de HIV emociona público em Paulínia. Disponível em < http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/25/filme-com-deborah-secco-como-portadora-de-hiv-emociona-publico-em-paulinia.htm > – Acesso em 21/04/2015;
Resenha do livro “O HIV, seu portador e o tratamento anti-retroviral: implicações existenciais”.Disponível em < http://www.editora.ufscar.br/ > – Acesso em 21/04/2015;
Sinopse e Ficha Técnica de “Boa Sorte”.Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-218415 > – Acesso em 21/04/2015.
MAIS:
O HIV, seu portador e o tratamento anti-retroviral: implicações existenciais. (Bernardino Geraldo Alves Souto – EdUFSCcar)
Além do filme “Boa Sorte”, há uma completa pesquisa compilada em um livro e publicada pelo EdUFSCar. Voltado para psicólogos, médicos, enfermeiros e qualquer outro profissional da saúde que lida com portadores de HIV, “O HIV, seu portador e o tratamento antirretroviral: implicações existenciais” é uma das melhores obras já lançadas sobre o assunto no Brasil.
No livro, Bernardino Alves Souto diz que a infecção pelo HIV é um fenômeno existencial. Ultrapassa questões de ordem biológica, tecnológica ou epidemiológica para envolver aspectos políticos, sociais, culturais e antropológicos que estão além da nossa compreensão contemporânea. Afeta não só os infectados, rompendo-lhes a linha da vida, mas mexe com nossos valores e tradições ao interferir na forma como vivemos e convivemos. Para nos explicar sobre isso, ninguém melhor que os portadores do HIV. Quem já recebeu um diagnóstico de infecção por esse vírus tem um saber a mais sobre a existência, o qual lhe serve de instrumento para administrar a ruptura provocada pelo próprio diagnóstico. Essas pessoas adquirem tal saber porque a ruptura que vivenciam faz com que experimentem simultaneamente, tanto no corpo quanto na alma, o conflito entre a vida e a morte, assim como a significação do bem e do mal. Quem presta assistência a pessoas infectadas pelo HIV precisa se aproximar desse saber para oferecê-las um cuidado centrado nelas mesmas e, portanto, mais humanizado e mais eficaz. Tal aproximação nos oferece subsídios para apoiar esses indivíduos em seu processo de reajustamento existencial a partir do impacto do diagnóstico e, consequentemente, ajudá-los no processo de adesão ao tratamento antirretroviral.
Este livro expõe e discute as percepções de um conjunto de portadores do HIV sobre os significados e as representações da infecção por esse vírus e do tratamento antirretroviral, e sobre a forma como enfrentam esses fenômenos.
FICHA TÉCNICA
BOA SORTE
Dirigido por Carolina Jabor
Elenco: Deborah Secco, João Pedro Zappa, Pablo Sanábio e outros.
Gênero: Drama, Romance
Nacionalidade: Brasil
Ano: 2014