Confiar: quando o silêncio fala mais alto

Dia 18 de Maio de 1973 entrou para a história como uma das datas mais tristes e comoventes do cenário brasileiro.  Araceli Cabrera, com apenas oito anos de idade, foi sequestrada, drogada, espancada, estuprada e assassinada. Seu corpo foi encontrado seis dias depois do crime, os agressores jogaram ácido por todo o corpo da vitima, principalmente no rosto para que não pudesse ser reconhecido. Por serem membros de uma tradicional família capixaba, poucas pessoas tomaram coragem para denunciar, sendo assim o silêncio falou mais alto, decretando, então, a impunidade dos criminosos.

Foi então que a data de 18 de Maio foi instituída como O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Lei 9.970/2000), para reafirmar a responsabilidade da sociedade brasileira em garantir os direitos e a proteção de todas as crianças e adolescentes.

Não há duvidas quando mencionamos que, entre as situações que mais nos comovem e nos despertam sentimentos de angústia, raiva e aflição, a violência praticada contra crianças e adolescentes está entre as primeiras, quiçá a primeira entre todas. Embora existam inúmeras tentativas de mostrar esse problema ao mundo, de expor que situações tão absurdas fazem parte da nossa realidade, a violência sexual contra crianças e adolescentes ainda parece manter um caráter velado, mantido num silêncio que parece querer proteger todos dessa comoção, do sentimento doloroso que é saber que uma criança pode ser alvo de algo tão cruel, essa proteção, no entanto, só não protege aquele que mais sofre: a criança. É preciso expor, mesmo que seja dolorido, o silêncio só dá forças para que esta situação permaneça.

O filme “Confiar” escrito e dirigido por David Schwimmer, é um exemplo de trama que trabalha de forma clara, direta e honesta um tema tão delicado: o abuso sexual de uma criança. Sem deixar para trás qualquer detalhe, qualquer veracidade dos fatos. Parece a realidade, nua e crua.

A base do roteiro de “Confiar” é a personificação do pior pesadelo da maioria dos pais atualmente. Engana-se porém, quem pensar que o longa trata do assunto com a trivialidade de um thriller. O filme dirigido por David Schwimmer (o Ross da série “Friends”) é na verdade um drama denso e angustiante que parte da perda da inocência infantil, através de um dos crimes mais comuns da era virtual, para expor as feridas de uma família em colapso (ATAIDE, 2011).

Will (Clive Owen) e Lynn (Catherine Keener) têm três filhos: o mais velho está prestes a entrar na faculdade, a do meio está entrando na adolescência e a mais nova está na fase das perguntas. Will e Lynn são pais dedicados, amorosos e que confiam fielmente em seus filhos. Procuram sempre estabelecer uma relação de amor e confiança, dando suporte necessário para todos, nos passando a imagem de uma família bem estruturada e saudável.

Annie (Liana Liberato), a nossa protagonista, é mais uma adolescente comum, enfrentando problemas como qualquer outra garota da sua idade: aceitação entre as colegas de escola, namorado, mudanças no corpo entre outras características comuns dessa fase, mas recebe total atenção dos pais.

Em seu aniversário de 14 anos, Annie é presenteada pelo seus pais com um computador moderno, sonho de toda adolescente. E, como uma adolescente comum, a garota encontra na internet uma forma de desabafar, de se descobrir, de encontrar formas de sair dos seus problemas. Como mencionado no inicio, a relação de confiança entre os membros da família de Annie é tão forte que os pais sabem perfeitamente sobre os amigos de internet que a adolescente tem, inclusive Charlie (o namorado virtual que Annie conheceu em uma sala de bate-papo).

Inicialmente, dócil e ameno, parece apenas uma amizade virtual. Annie desabafa e encontra em Charlie um amigo compreensivo e que divide com ela todos os anseios, dúvidas e preocupações do universo juvenil. A relação aumenta, as conversas se intensificam e a inocência começa a ser deixada para trás.

Charlie, que antes era um adolescente de 16 anos e que estava no colegial, agora diz que tem 20 anos e está na faculdade. Pouco tempo depois ele revela para Annie que tem 25 anos e que já é formado. Mas Annie está envolvida demais para saber os riscos que poderá enfrentar. A adolescente está ludibriada por tantas declarações, tanto apoio, sente-se cada vez mais apaixonada. Tudo muda radicalmente quando o relacionamento deixa de ser virtual e Annie se encontra com Charlie, sozinha, em um shopping.

Charlie aparenta ter cerca de 35 anos. A expressão de surpresa de Annie frente à Charlie não diferencia da nossa (logo substituída por repulsa). Mas a adolescente é manipulada emocionalmente por todas as investidas do seu agressor.

Depois deste primeiro encontro a família conhecerá de perto uma das situações mais tristes da humanidade: a violência sexual contra crianças e adolescentes.

A cena não agrada a ninguém. É possível viver junto com a personagem toda a angústia e o desespero que aquela situação provoca. Ficamos perplexos, imóveis.

Charlie domina lentamente Annie, ela por sua vez está estática, fita o teto e deixa que seu abusador faça dela o que quiser, e então a dor toma de conta da cena.

Quando falamos sobre violência sexual contra à criança e ao adolescente, usamos conceitos que parecem explicar um mesmo assunto. Equivocadamente tendemos a chamar todos os agressores de crianças e adolescentes de pedófilos. Os termos “pedofilia” e “abuso sexual” são usados constantemente como sendo sinônimos, dificultando as ações governamentais de enfrentamento dos problemas e da responsabilização de ofensores sexuais. Segundo José Raimundo Lippi, psiquiatra, o pedófilo é aquele que preferencialmente tem a sua libido exacerbada com a presença da criança, e principalmente muito pequenas. O conceito de pedofilia diz respeito, então, ao transtorno comportamental de indivíduos que sentem atração sexual por crianças.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a pedofilia é a preferência sexual por crianças pré-púberes ou no início da puberdade, já a Associação Americana de Psiquiatria destrincha um pouco mais o conceito, classificando a pedofilia dentro do grupo de parafilias: anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que causam sofrimento ou prejuízo na vida social e ocupacional do indivíduo. No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação a pedofilia está descrita como: “toda atividade sexual com um a criança pré-púbere -13 anos ou menos-“. O pedófilo deve ter acima de 16 anos e ser pelo o menos cinco anos mais velho que a criança a qual tem relação sexual ou deseja ter.

Já o abuso sexual é caracterizado pela utilização do corpo de uma criança ou adolescente para a satisfação sexual de um adulto, com ou sem o uso da violência física. Podem ocorrer dentro deste crime: desnudamento, toques e carícias nas partes íntimas da criança, levar o menor para assistir ou participar de práticas sexuais de qualquer natureza.

O filme começa agora. Annie parece perder-se nas suas angústias, somos tomados pela sensação de que a garota não faz a menor ideia do que aconteceu realmente, como se ela tivesse se desligado e ao mesmo tempo permanecer na ilusão do amor, da paixão, da ideia de que Charlie é a vida dela. Sim, ela nos mostra constantemente apaixonada por ele. Compreensível, devido a sua vulnerabilidade. Annie está refém de um trauma e nutre admiração pelo o seu agressor.

Em outras circunstâncias podemos dizer que Annie começa a desenvolver a Síndrome de Estocolmo, caracterizada pelo um estado psicológico particular onde a pessoa, que foi submetida a um tempo prolongado de intimidação,  passa a criar uma espécie de vínculo, simpatia, amor ou amizade pelo o seu agressor. Diante do estresse físico e mental o que está em jogo é a autopreservação por parte daquele que está sendo oprimido, aliada à ideia de que: se não há como fugir preciso manter-me próxima a ele e segura. Foi assim com Annie, durante sua reação estática diante de Charlie. No entanto, devemos levar em conta que ela criou  um vinculo com seu agressor antes de conviver com ele, de fato, envolveu-se na ilusão de que Charlie era um amante dócil e gentil.

De acordo com Trindade (2010) para que a síndrome seja diagnosticada alguns requisitos são exigidos, tais como: o evento traumático (sequestro, assalto, abuso sexual, violência); ameaça física ou psicológica; crença de que o desfecho irá acontecer; a vitima acredita que há gestos de atenção por parte do seu agressor e o sentimento de impotência para escapar. Ainda que tenha sido um vinculo construído antes do relacionamento físico, não podemos anular o fato de que Annie foi coagida e mantida sob o domínio e a manipulação de Charlie.

A estrutura familiar começa a ruir. O problema é finalmente exposto para os pais, para a escola. Um conflito é estabelecido entre Annie e Wiil, pois para a garota os pais querem afastá-la do seu amor, querem impedir que fiquem juntos e se não tivessem chamado o FBI, Charlie não lhe abandonaria. Quem sofre da síndrome de Estocolmo tenta de todas as maneiras evitar comportamentos que desagradem ou que afastem seu agressor. Bem explícito nas reações de esquiva de Annie quando se recusa a ajudar nas investigações.

(…) a pessoa que sofre a agressão passa a ignorar o fato de que o agressor é a origem do risco o qual ameaça sua sobrevivência, criando assim uma auto ilusão. A consequência disso é que quem está .“do lado de fora” deixa de ser um aliado, ao passo que busca ferir o ser com quem a vítima se identifica e possui afeição (HORTA, SANTOS, JARDIM, 2013)

Enquanto Annie nega sua situação de vitima, Will adota um comportamento obsessivo, tentando de todas as maneiras encontrar o agressor de sua filha, a família parece não retomar a normalidade, deixando que o problema tome proporções maiores. Mas é somente depois de ficar diante de outras vítimas de Charlie, de conhecer a história com todos os detalhes, e vê que não foi a única, é que Annie deixa a zona de distanciamento e se depara com a realidade que evitou a tanto tempo: foi vitima de estupro.

Após diversas reviravoltas e de ficarmos inquietos diante do desenrolar dos fatos, é que a família finalmente resolve retomar suas vidas, embora os danos permanecerão, mas entendem que o que resta é seguir em frente, e restabelecer o vinculo familiar que foi afetado por tamanho problema.

Mais do que mostrar a importância de ficarmos atentos às nossas crianças e adolescentes o filme apresenta aspectos relevantes que também merecem atenção: a confiança nas pessoas fora do ambiente familiar e os riscos que a internet oferece. Os laços familiares são fortes até que ponto? Os pais têm, realmente, controle sobre a vida dos filhos? Sobre os conteúdos que eles acessam constantemente na internet? Quando a liberdade deixa de ser saudável e se torna prejudicial à criança e/ou adolescente? Será que, mesmo com tantos meios de comunicação, com tantas exposições, de tantas informações acerca de abuso sexual infantil, violência contra crianças e adolescentes, ainda assim nossas crianças são inocentes a ponto de não saber com exatidão o conteúdo daquilo que acessam?

Schwimmer soube explorar com eficiência os conflitos internos de seus personagens e corajosamente deu uma outra dimensão ao tabu do abuso sexual infantil no cinema. Doloroso sem ser piegas, o longa mantém um bom ritmo narrativo e contrariando expectativas – ainda bem! – ruma para um desfecho de forte impacto emocional (ATAIDE, 2011).

 

 

FICHA TÉCNICA:

CONFIAR

Gênero: Drama
Direção: David Schwimmer.
Elenco Principal: Liana Liberato, Clive Owen, Catherine Keene, Chris Henry Coffey
Ano: 2011