Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
(Augusto dos Anjos)
Um policial de uma pequena cidade solicita a ajuda de dois investigadores da polícia federal por acreditar que sua comunidade tenha sido atingida por alguma força sobrenatural, já que alguns corpos estão sendo profanados em seus túmulos.
Estamos na segunda metade da década de 1990, à espera do místico ano 2000, e os investigadores em questão são Mulder e Scully (dos Arquivos X), mas o crime não foi cometido por ETs.
Por causa dos padrões da rede de televisão Fox (na época), as séries não podiam apresentar, de forma explícita, elementos relacionados a patologias complexas, como a Necrofilia. Assim, nesse episódio, tal conceito não é literalmente mencionado e tratam o criminoso em questão como um fetichista da morte. Nas palavras da Scully, tal conceito foi assim definido:
“Um modelo ou perfil psicológico completo do fetichista da morte não existe. A compulsão decorre de uma complexa ordem errada de valores e um desvio das normas culturais e costumes sociais. O progresso da patologia passa da fantasia aos atos cometidos por impulsos fetichistas até a realização de homicídios oportunistas. Ao começar a assassinar, desvia a atenção de um motivo mais profundo. Motivo que a maioria, inclusive os que executam a lei, não se atrevem a imaginar. É de certo modo mais fácil crer em OVNIs e alienígenas, do que no tipo de monstro desumano que poderia atacar os vivos e ser um abutre dos mortos.”
Para Rosman e Resnick (1989), a necrofilia, uma atração sexual por cadáveres, é um distúrbio raro, mas que é conhecido desde os tempos antigos, conforme descrito no texto a seguir:
Segundo Heródoto,
“os antigos egípcios tomaram precauções contra a necrofilia, proibindo que os cadáveres das esposas dos homens de posição fossem entregues imediatamente aos embalsamadores, por medo de que estes os violassem. De acordo com uma lenda, o rei Herodes teve relações sexuais com sua esposa Marianne por sete anos depois que ele a matou. Lendas semelhantes existem sobre o rei Waldemar e Carlos Magno. Em tempos mais recentes, a necrofilia tem sido associada ao canibalismo e ao mito do vampirismo. O vampiro, que foi romantizado pelos contos de Drácula, obtém uma sensação de poder de suas vítimas, como se estes tivessem tomando algo poderoso.”
No decorrer do episódio, uma das preocupações do xerife da pequena cidade é que a população viesse a ter conhecimento do que, de fato, estava acontecendo, pois este achava mais saudável o desconhecimento, pela maioria, de que alguém com esse tipo absurdo de patologia estivesse praticando tais atos. Talvez ele tenha razão, pois se profissionais capacitados, muitas vezes, não suportam lidar com um cenário assim, pessoas sem o devido preparo podem ser atingidas de forma brutal. Isso pode ser observado na fala da Scully, a seguir:
“Você acha que encontrou um meio de lidar com estas coisas. Na Escola de Medicina você desenvolve um clínico desapego à morte. No treino no FBI você se confronta com casos violentos e terríveis. Você pensa que pode encarar a face do mal e, então, você se vê paralisada por ela.” (Scully)
Por mais que vivamos em um mundo de extremos, ainda tendemos a colocar limites para o conceito do mal que permeia a natureza humana. Talvez seja por isso que alguns crimes nos causam tanta perplexidade, pois vão além de todas as construções sociais que erigimos a respeito do mal no decorrer da nossa história.
Um ponto que vem à tona ao pesquisarmos sobre esses assuntos tem relação com o questionamento: como os profissionais da área de saúde mental estão sendo preparados para lidar com esse tipo de situação, que pode ser compreendida, em alguns aspectos, como a negação daquilo que entendemos ser a natureza humana (se é que entendemos isso em algum nível)?
No episódio, a Scully traz essa preocupação à tona (ainda que no contexto de outra profissão):
“Sei que o mundo está cheio de predadores como sempre esteve. E sei que meu trabalho é proteger as pessoas contra eles. E tenho contado com isso para ter fé na minha habilidade de fazer o que faço. Quero essa fé de volta. Preciso tê-la de volta.”
A fala da Scully reflete um temor que talvez não seja isolado: o perigo de lidar tão de perto com o mal e sobreviver, psicologicamente, a ele.
No que tange ao perfil do necrófilo, na pesquisa de Rosman e Resnick (1989), verificou-se, por exemplo, que o uso de álcool ou drogas pode ser um fator importante para que um indivíduo com essa patologia possa superar suas inibições iniciais e executar seus atos. Brill (1941 apud ROSMAN; RESNICK, 1989) observou:
“… A destruição das barreiras do nojo, da vergonha e da moralidade, que deve ocorrer na construção da necrofilia, exige um trabalho mais psíquico do que na construção de quaisquer outras perversões”.
Voltando ao episódio, Mulder, que é psicólogo (pasmem! rs), reflete sobre esse ponto ao dizer sobre o perfil do criminoso que estão procurando:
“É um monstro que não se cria da noite para o dia. Está sendo desenvolvido há anos.”
Para Rosman e Resnick (1989), as explicações para a necrofilia na literatura têm sido principalmente psicanalíticas. Elas incluem: uma fusão de unidades agressiva e libidinal; desejos sádicos e destrutivos; problemas de desenvolvimento de fixação pré-genital ou conflitos edipianos; identificação com a mãe, ou uma tentativa de lidar com a ansiedade de separação; uma tentativa de lidar com a perda ou o medo da perda; medo da morte ou das mulheres; uma deficiência ou degeneração moral.
Os principais mecanismos de defesa que foram atribuídos aos necrófilos (considerando os casos estudados em Rosman e Resnick (1989)) são: a negação da separação e da perda; a identificação com um dos pais; introjeção de uma imagem parental; reação contra-fóbica em relação ao medo dos mortos; transformar passivo em ativo.
“A conquista do medo reside no momento de sua aceitação. Na compreensão de que aquilo que mais nos assusta pode ser o que mais nos é familiar. O garoto da porta ao lado, Donnie Pfaster, o filho mais novo de quatro irmãos, sendo o único homem, extraordinário apenas em sua condição ordinária, cresceu para ser um lobo
em pele de cordeiro. O medo do desconhecido é uma resposta irracional para o excesso de imaginação. Mas o nosso medo das coisas rotineiras, do estranho que observa e do som de passos na escada; o medo da morte violenta e o primitivo impulso de sobrevivência são assustadores como qualquer arquivo X, tão reais que poderiam acontecer… com você.” (Mulder)
“Irresistível” foi um episódio impactante, em muitos aspectos, porque trouxe à tona uma criatura muito mais assustadora do que todos os monstros não-humanos, óleo-senciente, ETs horripilantes que passaram pela série. Como o próprio Mulder conclui ao final, o que nos deixa perplexo é que o mal, em sua essência, pode estar presente nas pessoas mais ordinárias e que, por isso mesmo, os estereótipos que acompanham o conceito de loucura podem servir como perigosas distrações. O personagem apresentado no episódio poderia ser um bom vizinho ou o cara doce que lhe sorriu do outro lado da rua, no entanto, há tempos montava um quebra-cabeça nefasto que resultou na composição de uma personalidade doentia, com uma irresistível atração por cadáveres. Se tirar a vida do outro, em quaisquer circunstâncias, já é uma ação bárbara, fazer isso tendo como único fim alimentar sua ânsia por um cadáver é um ato absurdamente difícil para a elaboração de qualquer análise, mesmo no que tange à compreensão dos elementos que constituem tal patologia.
Ficha Técnica do episódio:
Título: Irresistível (Irresistible)
Série: Arquivo X (X Files) / Segunda Temporada, 13º. Episódio
Ano que foi ao ar nos EUA: 1995
Roteiro: Chris Carter
Direção: David Nutter
Elenco Principal: David Duchovny e Gillian Anderson