Kung Fu Panda: disciplina e honradez como elementos do “éthos” chinês

Na disciplina, a persistência dá o tom e transforma, aos poucos, a vida e as interações sociais dos personagens. Trata-se de uma herança deixada por grandes mestres chineses como Lao-Tsé, Confúcio e Bodhidharma

Provavelmente, como a propaganda do filme indica, Kung Fu Panda é um dos desenhos que consegue, sob medida, agradar crianças, jovens e adultos. Com uma abordagem cômica, a animação não deixa de tocar em temas fortes que marcam o “éthos”¹ chinês, fortemente influenciado pelo Taoismo, o Confucionismo e o Budismo. Essa “tripla referência” é um dos motivos deste país ser um dos poucos a sobreviver a todo tipo de invasão, no decorrer da história, e que está caminhando para se tornar a nação mais rica e influente do mundo, em algumas décadas.

Em que pese os sérios problemas ambientais gerados pelo capitalismo tardio no Império do Meio², a crescente poluição do ar e dos rios, e as constantes denúncias de exploração de trabalho análoga às condições de escravo, é paradoxal perceber que ainda assim a China é um dos países que mais investem em fontes de energia renovável. E o que isso tem a ver com Kung Fu Panda? Tudo! A animação mostra implicitamente, dentre outras coisas, que há uma “luta” em curso onde, de um lado, aparece um modelo de desenvolvimento que devora a tudo que se opõe a seus paradigmas e, de outro lado, há uma cultura milenar que resiste em sobreviver, por não ver sentido no futuro que lhes oferecem.

Duas das características que permeiam as três grandes religiões/filosofias que influenciam a China – disciplina e honradez – também são retratadas no filme. O urso-panda Po (que representa o mamífero tipicamente chinês, sob forte cuidado para que se evite sua extinção) é desajeitado, trabalha no restaurante da família e, num dia qualquer, “é surpreendido ao saber que foi escolhido para cumprir uma antiga profecia, o que faz com que treine ao lado de seus ídolos no kung fu” (arte marcial que, entre os chineses, é conhecida como Wushu). Po tem que, com as notórias companhias, enfrentar o traiçoeiro e temido leopardo das neves Tai Lung. E é justamente aí onde Hollywood aborda as duas temáticas, enfocando nos aspectos da “repetição como mecanismo de aperfeiçoamento”, e realçando o companheirismo e a cumplicidade como indissociáveis da honradez, ensinamentos típicos do Confucionismo.

Na disciplina, a persistência dá o tom e transforma, aos poucos, a vida e as interações sociais dos personagens. Trata-se de uma herança deixada por grandes mestres chineses como Lao-Tsé³, Confúcio e Bodhidharma4 , por exemplo, e que extrapolou os limites dos templos e/ou escolas destes mitológicos seres e, hoje, permeia a sociedade como um todo. Em Kung Fu Panda, Po trava o percurso do típico chinês da zona rural ou das pequenas províncias, que se vê impelido a tomar posições diante de um mundo em rápida transformação. Como, então, avançar perante circunstâncias que levam a uma não valorização das crenças, de um modo de viver que sempre lhes apresentou um lastro relativamente seguro? Na animação, Po “encarna” este chinês contemporâneo, desnorteado, mas que pelo peso que lhe confere a tradição e a história, pela referência com que olha o passado (bem ao estilo de Confúcio) aos poucos (e pela persistência e repetição) constrói uma vida e um mundo cheios de possibilidades e de boas expectativas. Não sem antes, obviamente, experimentar todas as agruras típicas do caminho do guerreiro, já amplamente estudado pelo mitólogo Joseph Campbell, que em suas pesquisas se utiliza de várias estórias do imaginário chinês.

O leopardo das neves, um animal que vive em áreas de grande altitude e que raramente é visto pelo homem, pode representar o “estrangeiro” que sempre tirou o sono dos chineses, ao ponto de fazerem-nos erguer uma das maiores muralhas do planeta. Era preciso se “proteger” do outro, sobretudo porque a história já havia demonstrado que este [outro] chegava carregado de intenções duvidosas, sem interesse em aderir aos costumes locais e, muitas vezes, até mesmo disposto a usar a violência para subjugar o povo. Em Kung Fu Panda, Po representa a esperança de que a tradição, sob duras penas, pode coexistir com a mudança e a transformação, condições personificadas por “aquele que vem de longe”, que é “diametralmente diferente dos [povos] locais”.

Po, então, lembra o homem de características confucionistas, o virtuoso que não necessariamente está no topo da pirâmide social, mas, sim, “aquele que compreende seu lugar dentro desta hierarquia e o aceita”. Para Confúcio, então, o homem que observasse a fidelidade e a sinceridade como princípios básicos poderia ser considerado um verdadeiro cavalheiro, no “sentido de alguém de virtude e praticante das boas maneiras”. O conceito de “fidelidade”, vale destacar, também implica “consideração pelos outros”. Desta forma, se assume a perspectiva de que é possível tornar-se um homem superior, “primeiramente reconhecendo o que não se sabe, depois, observando outras pessoas”.

Trata-se de um filme com uma bela história de amizade, caráter e coragem. Uma obra que mostra qualidades herdadas, mas que também podem ser forjadas, construídas e reforçadas pelo crivo do esforço e da paciência, além da ajuda das companhias sinceras. É uma excelente mensagem para um mundo que, como temem alguns, vem sendo fortemente pressionado por um imediatismo crescente.

Notas:

¹- Éthos \’?θ?s\ [Língua: Grego] é conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, ideias ou crenças), característicos de uma determinada coletividade, época ou região. Dicionário Houaiss. Disponível com senha em http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=ethos – Acessado em 21/04/2014.

² – Desde as épocas remotas dos Mandarins chineses, a China foi sempre tratada, ou por ela mesma escolhida como o Império do Meio, considerando que existe o mundo distante, e a China. A visão do globo parte da chamada Dinastia Celestial, onde o imperador ditava os procedimentos governamentais, leis e rituais diplomáticos para todas as outras nações e governos do resto do mundo. Disponível em http://exame.abril.com.br/rede-de-blogs/brasil-no-mundo/2011/11/19/china-o-imperio-do-meio/  – Acessado em 20/04/2014.

³ – Atribui-se a Lao-Tsé (Antigo Mestre) a autoria do Tao Te Ching, um dos livros mais conhecidos do mundo. Do pouco que se sabe desta figura quase mítica, é que nasceu no estado de Chu, com o nome de Li Er ou Lao Tan, durante a dinastia Chou. Vários textos indicam que se tratava de um arquivista da corte, e que Confúcio o consultou a respeito de rituais e cerimônias. A lenda diz que Lao-Tsé deixou a corte quando a dinastia Chou entrou em decadência e viajou para o oeste em busca de solidão. Quando estava prestes a cruzar a fronteira, um dos guardas o reconheceu e pediu um testemunho de sua sabedoria. Lao-Tsé teria escrito o Tao Te Ching para ele e, então, seguiu viagem para nunca mais ser visto.

4– Bodhidharma ou Bodidarma (? – 528) foi o monge budista tradicionalmente associado à criação da seita chán (zen) do budismo na China. Tem-se muito pouca informação contemporânea sobre a vida de Bodhidharma e narrações posteriores misturaram-se com lendas, mas a maior parte dos relatos concordam que ele foi um monge no sul da Índia que viajou para o sul da China e, posteriormente, mudou-se para o norte.  Diz a lenda que, ao chegar ao templo Shaolin, Bodhidharma deparou-se com a precária condição de saúde dos monges, fruto de sua inatividade. Foi então que ele teria iniciado os monges na prática de uma série de exercícios físicos, ao mesmo tempo em que transmitia-lhes os fundamentos da filosofia zen, com o objetivo de reabilitá-los tanto física quanto espiritualmente. Os exercícios ensinados por Bodhidharma eram baseados em métodos de respiração profunda e ioga, e seus movimentos se assemelhavam a técnicas de combate. A prática desses exercícios logo tornou-se uma tradição no templo, vindo mais tarde a atingir um estado de evolução tal que pôde ser considerada como um verdadeiro e completo sistema de autodefesa. Disponível em http://es.wikipedia.org/wiki/Bodhidharma – Acessado em 20/04/2014.

FICHA TÉCNICA:

Gênero: Animação
Direção: John Stevenson, Mark Osborne
Elenco: Angelina Jolie, Dan Fogler, David Cross, Dustin Hoffman, Emily Robison
Ano: 2008

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.