Shut Up and Dance é o terceiro episódio da terceira temporada da famigerada série Black Mirror. Conhecida por retratar como os avanços tecnológicos influenciam no comportamento humano, a série traz uma visão futurística que ao mesmo tempo coincide com a contemporaneidade, por isso, sempre choca o público. Na adaptação brasileira o título do capítulo é “Manda quem pode”, que remete à expressão nacional bem conhecida “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Nesse sentido, você já deve especular do que o episódio trata… Isso mesmo, PODER!
Em quase uma hora de adrenalina somos apresentados ao protagonista da cena, Kenny. Jovem, introvertido e docilizado, o personagem demonstra a vida comum de um adolescente europeu, que anda de bicicleta, mora com a mãe e a irmã e trabalha numa lanchonete. Nisso, após sua irmã usar seu computador sem a sua permissão, Kenny resolve instalar trancas na porta do seu quarto, objetivando esconder um segredo. Mal sabe ele está sendo observado no lugar em que mais se sente seguro.
Depois de acessar imagens em seu computador e masturbar-se em frente à tela, ele recebe uma mensagem de um desconhecido: “Nós vimos o que você fez”. É a partir de então que o exercício de poder sobre Kenny é instituído. Diante disso, a webcam instalada no laptop juntamente com softwares de espionagem se tornam a concretização (informatizada) do modelo panóptico idealizado por Jeremy Bentham.
O modelo supracitado foi argumentado por Michel Foucault (1987) em sua obra “Vigiar e Punir” para clarificar como essa nova forma de controle apoderava-se, e ainda se apodera da sociedade disciplinar. O autor lembra que o efeito primordial do panóptico é a indução da consciência no indivíduo de que ele está sempre visível e isto o certifica de que o poder continuará funcionando automaticamente. Dessa forma, “O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto” (FOUCAULT, 1987).
Dentre consecutivas ameaças do poder visível e inverificável, Kenny passa recorrentes crises de ansiedade, se subordina a todas as incumbências que lhe são ordenadas e entra em contato com outras pessoas que estão na mesma situação. Da mesma maneira que a internet é caracterizada como rede, os personagens da trama que estão sendo vigiados e (quase) punidos encontram-se intrinsecamente conectados. Apesar disso, em momento algum eles cogitam se unirem para ir contra o dispositivo de poder que os ameaça, melhor dizendo, o medo tenciona a individualização destes, reverberando a ideia de Foucault (1987) em que: “A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multidão enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada”.
Nessa situação, averígua-se que não só corpos (pessoas como Kenny) estão sendo docilizados, essa domesticação abrange-se até a população. Pois, a punição do modelo panóptico tem o intuito de “exemplificar”, mostrar aos demais que os rompimentos das normas instituídas não serão absolvidos e, portanto, não se pode cometê-los. Assim, a punição, nesse caso, consiste na divulgação de vídeos, e-mails e conversas (gravadas por aparatos tecnológicos) que vão contra a moral e ética vigente. Isto nos retoma a ideia de Benelli (p. 66, 2014) em que “o panoptismo constitui o processo técnico-político universalmente difundido da coerção e enquadramento dos corpos e das populações”.
A subversão de valores, onde os princípios deontológicos são contrapostos, é elucidada pelos personagens dando significação à frase “os fins justificam os meios”. E, é dessa forma que Kenny consegue sobreviver ao dia em que sua vida se tornou um martírio. Entretanto, a pergunta que trago a você, caro leitor: você sabe o que tão abominável Kenny se tornou ao pesquisar fotos para utilizar a seu bel-prazer?
Se você NÃO sabe:
Ao longo do enredo, várias vezes nos questionamos se o simples ato de masturbação, inerente ao ser humano, poderia ser causador de tanto sofrimento, culpa e submissão no protagonista. Seriam suas concepções éticas e morais que o levavam a autocondenação, apenas por exercer sua própria sexualidade? NÃO! Até porque há uma instituição de poder que também o julga e condena.
A psicopatologia presente na identidade de Kenny é a mesma do personagem que luta com ele até a morte e não sobrevive, afinal, esse era o único modo de vencer. O transtorno pedofílico, de acordo com o CID 10, pode ser diagnosticado a partir das seguintes características:
1. Por um período de pelo menos seis meses, fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos intensos e recorrentes envolvendo atividade sexual com criança ou crianças pré-púberes (em geral, 13 anos ou menos).
2. O indivíduo coloca em prática esses impulsos sexuais, ou os impulsos ou as fantasias sexuais causam sofrimento intenso ou dificuldades interpessoais.
3. O indivíduo tem, no mínimo, 16 anos de idade e é pelo menos cinco anos mais velho que a criança ou as crianças do Critério A.
Nota: Não incluir um indivíduo no fim da adolescência envolvido em relacionamento sexual contínuo com pessoa de 12 ou 13 anos de idade.
Determinar o subtipo:
Tipo exclusivo (com atração apenas por crianças)
Tipo não exclusivo Especificar se:
Sexualmente atraído por indivíduos do sexo masculino Sexualmente atraído por indivíduos do sexo feminino Sexualmente atraído por ambos Especificar se:
Limitado a incesto.
Para Almeida (2014), consoante com um olhar clínico, uma resolução penal e ética para os casos de condenação dos indivíduos que apresentam tal transtorno seria:
a) a inclusão da possibilidade de um tratamento clínico (especializado e interdisciplinar) para o transtorno pedofílico, medida que pode contribuir para a promoção da saúde mentaldo indivíduo;
b) que a adesão ao tratamento clínico seja voluntária, em respeito, não apenas ao princípio da autonomia, como também diante da maior efetividade da medida terapêutica neste caso;
c) que as medidas alternativas às diferentes formas de restrição à liberdade individual devem ser priorizadas, garantindo-se, ainda, o acesso ao tratamento clínico especializado einterdisciplinar ou, então, caracterizando-as justamente por este tratamento voluntário;
d) a criação de centros especializados para o oferecimento de um tratamento clínico com equipe especializada e interdisciplinar que possa atender e acompanhar, no âmbito da saúde e nos termos mencionados, os pedófilos judicialmente condenados, viabilizando, ainda, psicoterapias de grupo e, sempre que possível, envolvendo a participação da família do indivíduo.
Durante a luta, somente quando o homem pergunta a idade das pessoas nas imagens pesquisadas e confirma que também fez o mesmo, o espectador percebe o quão grave se trata o ato e os desejos de Kenny. E, são retomadas à nossa memória de curto prazo as primeiras cenas em que o mesmo se apresenta atraído pelo que é de cunho infantil (o brinquedo que devolve à criança e os lápis que recolhe da mesa de outra criança no dia seguinte).
Desse modo, é perceptível o motivo pelo qual o protagonista teve tarefas mais árduas de se executar e não fora liberado logo, como os outros. A pedofilia é tida como um comportamento inadmissível pela população ocidental e, até mesmo, por aqueles que são condenados por cometerem outros tipos de crimes gravíssimos. Dessa maneira, pode-se hipotetizar que se ele não morresse lutando pela vida, poderia ser morto pela justiça da própria população ou no sistema carcerário. O que nos prediz isso é a ligação de sua mãe e a chegada dos policiais para prendê-lo.
Nessa conjuntura, é válido lembrar que apesar de todos terem seguido os comandos dos detentores do poder (os vigilantes), foram punidos veemente com a divulgação de seus “erros”. E isto se torna exemplo evidente para o meio social de que os que irem contra a normatização não serão impunes. O alerta que este capítulo nos traz é a real vulnerabilidade que vivemos, onde somos vigiados por meio das tecnologias da comunicação e informação, logo a plena consciência e permanência disto retrata que somos a engrenagem para o funcionamento dessa dinâmica de poder.
Destarte, o panoptismo pode ser usado como um mecanismo experimental, onde modifica-se o comportamento dos indivíduos, podendo treiná-los ou “retreiná-los” (FOUCAULT, 1987). De modo que o receio de estar sendo vigiado domestica nossas atitudes adequando-as ao que é instituído moralmente, mesmo que isso implique em negar nossas próprias motivações e pulsões.
Falando nisso… Você já cobriu a webcam do seu computador hoje?
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Jéssica Pascoal Santos. PEDOFILIA: aspectos clínicos, éticos e forenses. 2014. 424 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-03082015-115519/pt-br.php>. Acesso em: 30 set. 2017.
FOUCAULT, Michel. O Panoptismo. In: Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 27 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Porto Alegre: Artmed, 2014. xliv, 948 p.; 25 cm. ISBN 978-85-8271-088-3
POSSOLLI, Gabriela Eyng. Panoptismo como dispositivo de controle social e exercício de poder. In: II Congresso Nacional de Educação Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), 2004, Curitiba. Anais IV EDUCERE. Curitiba: Ethos, 2004. p. 1 – 11.