Lars von Trier parece não ver diferença entre os extremos do ascetismo e da licenciosidade.
Afinal, não seria a busca incessante do prazer pelo corpo uma forma de transcender o próprio corpo? De dar sentido à vida?
Apesar de algumas mentes desavisadas observarem “Ninfomaníaca” (em suas duas partes) apenas como uma versão cult de um filme proto-pornô escandinavo que retrata o vício de uma mulher pelo sexo, o diretor e roteirista Lars von Trier consegue trazer à tona pelo menos dois importantes temas que ultrapassam de longe a variante da suposta “perversão” da personagem Joe. Trata-se de assuntos que vêm custando caro ao Ocidente, ainda marcado por setores fortemente dominados pelos valores vitorianos¹ e pelo medo², alguns dos “pilares” que desenharam as subjetividades coletivas de transição do modernismo para a contemporaneidade, sobretudo entre os séculos XVII e XIX, e que é abordado com maestria pelo dinamarquês.
O assunto não é novo, já havia recebido ampla atenção do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que sentenciou de morte toda moral vigente à sua época. Isso fez com que alguns críticos percebessem em “Ninfomaníaca” grandes traços filosóficos, onde o importante não é chegar a um ponto final, a um denominador comum, mas questionar mesmo os limites do moralmente inaceitável. A moral e o medo, então, são subvertidos. Mais que isso, são transmutados.
De forma geral, “Ninfomaníaca” mostra a trajetória de uma mulher que “guerreia” para obter a posse de seu próprio corpo. Joe tenta ser esposa e mãe, mas não consegue esconder o vazio que este “papel” lhe provoca, por se tratar de algo que, no fundo, lhe é imposto. E para entender parte deste processo, o filme traça o contexto histórico (que vai desde a diáspora entre as igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente, até a escolha dos símbolos que irão representar estas facções) e denuncia a excessiva normatização do corpo e do sexo, quesito em que as mulheres são ainda mais cobradas.
Em “Ninfomaníaca”, pode-se ver o “campo de batalha” a que todos estão submetidos, onde constantemente se é inquirido a aderir às assertivas religiosas, de um lado, e/ou às assertivas científicas (e de mercado), de outro. Lars von Trier parece não ver diferença entre os extremos do ascetismo e da licenciosidade. Afinal, não seria a busca incessante do prazer pelo corpo uma forma de transcender o próprio corpo? De dar sentido à vida? Estas são as provocações do diretor dinamarquês, ao lembrar que a igreja do Ocidente escolheu diligentemente a crucificação de Cristo (um episódio de dor e violência, além de medo provocado pela culpa) como marco de sua exegese. Assim, o ascetismo pela contenção dos prazeres mundanos e, em alguns casos, pelo uso do autoflagelo como mecanismo de transcendência, também tem algo de muito parecido com as marcas deixadas pelo mundo, em quem “vive do mundo e para o mundo”. Os limites e/ou aprovação de um ou de outro dependeria apenas do “olhar moral” de quem julga.
Nesta contenda para saber quem se impõe como “o senhor do corpo e da mente”, a ciência (representação do mundo) não é muito diferente da religião. Como diria a dupla Fernando e Ana Maria Lefevre, que aborda parcialmente este tema em um de seus livros, os “atores” disputantes [religião e ciência] tentam se sobrepor um ao outro, buscando para si a autoridade do conhecimento. No fundo, ambos são calcados num conjunto de normas e regras rígidas, que apenas aparenta dar espaço para o dissonante.
Enquadrar os comportamentos
Especificamente sobre o discurso totalizador da ciência (que muitos diriam que está atrelado ao próprio contexto do mercado), a tendência de “normatizar” os comportamentos é cada vez mais explícita, a exemplo do que já ocorre na religião. A “Bíblia da psiquiatria”³ amplia constantemente a lista de transtornos. De quebra, os novos sacerdotes e mediadores do conhecimento também aumentam “as chances de alguém ser diagnosticado com os transtornos já existentes”, pois se reduz o número de “sintomas necessários para que um paciente se encaixe em determinado diagnóstico”4.
A “patologização” de variantes comportamentais, notadamente no campo sexual, enquadra tudo o que não é moralmente aceito, como ocorre com algumas “parafilias”5, nomeia tais expressões e, em seguida, abre o caminho para que se rotule (muitas vezes, pejorativamente) tais ações. Sobre este assunto, o padre/filósofo/historiador prof. Dr. Luiz Corrêa de Lima, da PUC-RIO, defende a necessidade de se abordar as pessoas como sendo detentoras de sexualidades distintas. Cada pessoa nasceria, então, com uma sexualidade peculiar, e o mundo deveria ser encarado como o ambiente de expressão de múltiplas sexualidades. Alvo de críticas de setores conservadores, provavelmente ao defender tal tese, Padre Luiz deve ter sofrido a influência do místico cristão Meister Eckhart, para quem “as palavras reduzem a realidade a algo que a mente humana é capaz de entender, o que não é muita coisa”. Rotular, portanto, é uma forma de compreender. Mas o convite é para que se vá além desta etapa.
Pulsão e sublimação
Obviamente que a sociedade não se desenvolveu sob a égide da epokhé (a suspensão de julgamento do ceticismo pirrônico), ao contrário, foi calcada na construção e manutenção de juízos, sobretudo os de ordem moral. Lars von Trier vem justamente mostrar que todo esse processo não foi “dado ao homem” (como faz entender, ainda hoje, algumas vertentes religiosas), mas desenvolvido convenientemente ao longo dos séculos, num movimento mesmo de dominação e controle das identidades de gênero. Joe está sob a égide de um conjunto de preceitos que determinam a forma como ela deve agir. Atuar fora destes limites exige um alto preço a ser pago, mesmo que fique claro que a pulsão (personagem de Joe) e a sublimação (personagem de Seligman) são, no fundo, facetas da mesma moeda.
Em “Ninfomaníaca” a lógica histórico-moral é invertida, e von Trier aponta para o limiar entre o sagrado e o profano, já que ambos, apesar de diferentes nos meios, seriam iguais nos fins. Haveria sempre uma necessidade de transcendência. O “desprendimento” provocado pelo prazer sexual, então, seria semelhante à experimentação mística do sagrado, o contato “com a clara luz” de que falam os budistas tibetanos (tantrismo).
O dinamarquês traz à baila questões que parecem antiquadas, mas que continuam tão atuais como nunca, como as constantes tentativas de “regulação” dos desejos, as cada vez mais comuns terapias para “curar” certas tendências, e o que poderia ser caracterizado como excessiva medicalização para “inibir os distúrbios”. Além, claro, de abordar a responsabilidade por “tomar parte definitivamente do que é seu”, por tomar parte do próprio corpo e decidir o que fazer dele.
Enfim, o filme faz rever as assertivas comuns sobre liberdade, ao mostrar que esta [liberdade], no fundo e para as pessoas medianas, não passa de ação condicionada a uma série de pré-requisitos, logo, não-liberdade. É uma espécie de “liberdade assistida”, que é dada apenas se se respeitarem algumas regras. E ai daqueles que infringi-las!!!… em “Ninfomaníaca”, Joe “compra” esta briga.
Notas:
¹ – Valores vitorianos são marcados por moralismos e disciplina, com preconceitos rígidos e proibições severas. Os valores vitorianos podiam classificar-se como “puritanos”, e na época a poupança, a dedicação ao trabalho, a importância extrema da moral, os deveres da fé e o descanso dominical eram considerados valores de grande importância (aspectos que recebem a influência do Calvinismo). Os homens dominavam, tanto em espaços públicos, como em privado e as mulheres deviam ser submissas e dedicar-se em exclusivo à manutenção do lar e à educação dos filhos. Fonte: Wikipédia, com dados de De la moral victoriana al goce moderno: Freud, Lacan y Zizek en Revista de Observaciones Filosóficas. Disponível emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Era_vitoriana – acesso em 11/04/2014.
² – “Os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental” do final da Idade Média à consolidação do Iluminismo variavam desde questões como “o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seu agentes (o judeu, a mulher, o muçulmano, o sexo)”. -DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
³ –Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em tradução livre).
4– Nova ‘Bíblia da psiquiatria’ amplia lista de transtornos e gera polêmica – Disponível emhttp://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/05/130515_manual_psiquiatria_ny_fl.shtml – publicado em 15 de maio de 2013. Acesso em 11/04/2014.
5– Do grego παρ?, para, “fora de”, e φιλ?α, philia, “amor”, é um padrão de comportamento sexual no qual, em geral, a fonte predominante de prazer não se encontra na cópula, mas em alguma outra atividade. Em determinadas situações, o comportamento sexual parafílico pode ser considerado perversão ou anormalidade, apesar de algumas vertentes da psicologia a abordarem como inofensivas e parte integral da psiquê normal (quando não afetar a saúde e a segurança do praticante ou de terceiros). Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Parafilia – Acessado em 12/04/2014.
REFERÊNCIAS:
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.
Ninfomaníaca 2 – Ficha técnica. Disponível em http://www.cineclick.com.br/ninfomaniaca – Acessado em 12/04/2014.
O homossexualismo segundo o Padre Luis Corrêa de Lima, SJ: “É preciso combater a homofobia” (sic). Disponível em http://fratresinunum.com/2011/09/16/o-homossexualismo-segundo-o-padre-luis-correa-de-lima-sj-e-preciso-combater-a-homofobia/ – Acessado em 12/04/2014.
FICHA TÉCNICA:
NINFOMANÍACA II
Gênero: Drama
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Christian Slater, Connie Nielsen, Jamie Bell, Jean-Marc Barr