O Auto da Compadecida: um paralelo acerca da realidade no Brasil

Difícil um brasileiro não conhecer essa maravilhosa obra cinematográfica, carregada de cultura, saberes, emoção e várias críticas sociais, que demonstram muito a realidade do Nordeste e também do Brasil, que conta com uma das características mais marcantes do país, a comédia que envolve toda uma trama e se faz interessante do começo ao fim da obra.

O Auto da Compadecida é um filme dirigido por Guel Arraes e é baseado na obra de Ariano Suassuna, oriundo de sua peça teatral de mesmo nome. Sua obra começa em 1955 sendo escrita e posteriormente adaptada para a televisão em 1999 como minissérie e para o cinema em 2000, tendo uma duração de 1 hora e 44 minutos, com versão estendida de 2 horas e 38 minutos.

O enredo do filme se passa na época do cangaço brasileiro, nos arredores da cidade de Taperoá no sertão da Paraíba, onde os protagonistas Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) mostram as dificuldades de um cenário de pobreza e miséria, sendo os mesmos obrigados a arrumarem serviços que pagam pouco e que em sua maioria são exploratórios.

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No filme podemos verificar que Chicó e João Grilo vivem então em extrema pobreza, sendo assim com os impactos citados nas condições de vida e estão constantemente em busca de satisfação das necessidades de alimentação, como por exemplo na cena em que João Grilo e Chicó trocam seus pratos de comida ruim pelo bife da cadelinha de seus patrões Seu Eurico (Diogo Vilela) e dona Dora (Denise Fraga), que são donos de uma padaria, os quais nas palavras de João Grilo não deram nem um copo d’água quando ele esteve doente e acamado por três dias.

Dantas, Oliveira e Yamamoto (2010) nos trazem que a condição de pobreza está relacionada aqueles que não tem renda suficiente para o mantimento de roupas, alimentos, despesas pessoais, educação, habitação entre outros. Enquanto que aqueles abaixo da linha de pobreza são considerados indigentes, que vivem em busca da satisfação de necessidades vitais, como alimentação por exemplo.

Segundo Silveira (2020) com base nos dados do IBGE (2019) a atualidade brasileira conta com 13,5 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza. O dados apontam ainda que um em cada quatro brasileiros sobreviveram com menos de 436,00 R$ por mês no ano de 2019. Estes dados em 2020 podem ter tido uma redução por conta do auxílio emergencial em decorrência da Pandemia.

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Ao relacionar tal situação, podemos falar acerca do atual cenário brasileiro, que ainda possui mão de obra de forma exploratória, ou comumente chamado de trabalho escravo, com péssimas condições. Acerca disso Sakamoto (2005, p. 11) explica que:

O sistema que garante a manutenção do trabalho escravo no Brasil contemporâneo é ancorado em duas vertentes: de um lado, a impunidade de crimes contra direitos humanos fundamentais aproveitando-se da vulnerabilidade de milhares de brasileiros que, para garantir sua sobrevivência, deixam-se enganar por promessas fraudulentas em busca de um trabalho decente. De outro, a ganância de empregadores, que exploram essa mão-de-obra, com a intermediação de “gatos” e capangas.

No Brasil há também um forte índice de violência e de pobreza, que se mostram como um fator de risco, pois, geralmente trazem um déficit na educação das comunidades pobres, altos índices de evasão escolar, condições de trabalho exploratórios e situações que levam muitos à criminalidade, bem como situações de conflitos nas favelas que muitas vezes envolvem pessoas inocentes. Nesse contexto, Borges e Alencar (2015) nos revelam que os processos de democratização não se mostram satisfatórios para mudar o quadro de violência arraigada historicamente em que injustiças sociais e violações de direitos humanos sempre foram frequentes, sendo assim a ausência do Estado culmina em mais crescimento da exclusão social e da pobreza, a partir daí Dornelles (2006, p.220) completa que:

Assim, na prática a democracia, para uma grande maioria da população brasileira, restringe-se ao ritual das eleições. Uma pratica onde a democracia é limitada e se restringe à formalidade institucional de um Estado de Direito que pune, controla e violenta as classes subalternas, os setores em situação de precariedade, excluídas dos benefícios e dos direitos efetivos de uma sociedade moderna.

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Vemos na trama um dos personagens que em decorrência das consequências da violência torna-se o cangaceiro Severino de Aracajú (Marco Nanini), que aos oito anos de idade teve os pais brutalmente assassinados por militares e presenciou toda a cena, tal evento traumático levou Severino a se tornar um grande criminoso no filme demonstrando sua turbulência psíquica, onde o mesmo realizava atrocidades e fazia também duras críticas ao povo da cidade, que não lhe deu comida e nem esmola, destratando-o fortemente enquanto disfarçava-se de andarilho pela cidade.

Dentre as críticas feitas, vale ressaltar também a corrupção envolvendo dinheiro e poder, nesse aspecto praticamente todos os personagens se envolvem, como por exemplo a relação do Padre João (Rogério Cardoso) e do Bispo (Lima Duarte) que se mostram mais em prol dos ricos do que dos pobres, e que conseguem realizar certos favores em troca de dinheiro. Dentre as cenas, uma demonstra João Grilo e Chicó indo pedir que o padre João “benza” a cadela (de dona Dora) que estaria doente, o mesmo se recusa a benzer pautado em normas religiosas e então João Grilo começa a dizer em alto e bom tom que a cadela seria do Major Antônio Moraes (Paulo Goulart), um rico fazendeiro da região, após isso o padre aceita fazer tal ação por achar que a cadelinha seria do Major, porém antes do padre realizar a benção, o animal morre, e o mesmo se recusa a fazer um enterro, sugerido pela dona, em latim, mas o faz após João Grilo criar uma história em que a cadelinha teria deixado um testamento para a igreja deixando uma quantia em dinheiro (Dez contos de Réis) que logo depois é aceito também por parte do Bispo.

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Apesar de ser um assunto delicado, vemos constantemente corrupções no país, não só políticas como comumente aparecem nos jornais, mas também de autoridades religiosas. Um fator que também chama atenção e que acontece bastante são as alianças entre igrejas e candidatos/políticos, sendo assim há uma grande influência social ligada à igreja relacionada com as decisões democráticas. Dentro dessa perspectiva De Souza e Simioni (2017, p.468) fomentam tal relação da seguinte forma:

Essa apropriação de preleção política por grupos religiosos é bastante alarmante, já que eles não apenas selecionam o discurso estatal e apoiam candidatos, mas, muitas vezes, participam diretamente na legitimação democrática, ancorando seus discursos, abertamente, no código religioso, sendo espantoso o número de cadeiras ocupadas pela bancada religiosa, além da sua atuação em processos judiciais importantes.

O filme traz bastante essa relação social de controle, tanto da igreja, como das figuras importantes sobre os menos afortunados, sendo o impacto maior voltado àqueles com menos condições. Por outro lado, também mostra a religiosidade de forma vantajosa em algumas cenas, como por exemplo, na cena em que João Grilo se diz um portador da mensagem de Padre Cícero (Considerado santo católico por muitos fiéis), pedindo que o Capitão Severino de Aracajú, que é grande devoto, não faça mal às pessoas de Taperoá e cancele o ataque à cidade por pedido do “Padim padre Cícero”.

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No filme também se fala no aspecto religioso, no qual podemos interpretar como um fator de proteção, quando a Compadecida (Fernanda Montenegro), diz que o pobre passa por muitas dificuldades e em específico na seca do Nordeste oram pedindo por chuva como forma de contornar o sofrimento. Sabemos aqui que a religiosidade tem também influências positivas, principalmente em relação a enfrentamentos de doenças e sofrimentos psíquicos (como fator estruturante da psique), sendo assim pode contribuir na geração de pertencimento, vínculo e bem-estar aos que costumam frequentar espaços religiosos (FARIA E SEIDL, 2006).

Vale ressaltar aqui também a presença de uma figura religiosa, o Cristo (Maurício Gonçalves), de cor negra, onde comumente a figura de Jesus é retratada em obras como alguém de olhos claros e pele branca, e aqui ao aparecer gera até mesmo comentários racistas por parte do Protagonista João Grilo ao dizer: “O senhor pode não ter a cor das melhores, mas fala bem que faz gosto” e também em outra cena ao final, onde João discorda que o personagem poderia ser cristo disfarçado de mendigo e diz “Jesus Pretinho daquele jeito?”.

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Ao falar então de preconceito racial, vale citar um estudo realizado por Turra (1995) onde a mesma revela que os brasileiros sabem que há racismo no Brasil, porém em sua grande maioria negam ter preconceito racial, mas demonstram racismo de diversas formas, ao pronunciar ou concordar com enunciados preconceituosos ou ao admitir comportamentos de conteúdo racista em relação a negros.

O filme é carregado de muitas críticas, mas traz tudo com um humor ímpar que faz o espectador dar muitas risadas, mas que também é capaz de trazer muitas emoções e reflexões do nosso cenário Brasileiro, que necessita muito das ações promovidas pela psicologia, mas também de efetividade em quesito de amparo e cumprimento das pautas governamentais destinadas às pessoas que vivem de forma precária, que necessitam muito de necessidades básicas. São importantes também as reflexões acerca do valores éticos e desconstrução de valores negativos que se formaram ao longo dos séculos como racismo e formas de preconceito no país.

Em resumo o filme traz um reflexo de preconceitos, situações de exploração, estigmas, mas também nos mostra muitos aspectos enriquecedores acerca de aspectos da realidade no Nordeste do país e características desse povo, suas crenças e sua alegria, sendo o filme aclamado com vários prêmios e críticas positivas tanto de profissionais da área como do público geral deixando ainda o gosto de “quero mais”.

FICHA TÉCNICA 

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Título: O Auto da Compadecida
Direção: Guel Arraes
Elenco:  Matheus Nachtergale, Selton Mello, Rogério Cardoso, Lima Duarte 
Ano: 2000
País: Brasil
Gênero: Comédia, Drama

REFERÊNCIAS

BORGES, Luciana Souza; DE ALENCAR, Heloisa Moulin. VIOLÊNCIAS NO CENÁRIO BRASILEIRO: FATORES DE RISCO DOS ADOLESCENTES PERANTE UMA REALIDADE CONTEMPORÂNEA. Revista brasileira de crescimento e desenvolvimento Humano, v. 25, n. 2, 2015.

DANTAS, Candida Maria Bezerra; OLIVEIRA, Isabel Fernandes de; YAMAMOTO, Oswaldo Hajime. Psicologia e pobreza no Brasil: produção de conhecimento e atuação do psicólogo. Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 1, p. 104-111, 2010.

DE SOUZA, Ana Paula Lemes; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O Congresso Nacional entre o “mýthos” e o “lógos”: religião e corrupção sistêmica no cenário político brasileiro. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 2, p. 465-487, 2017.

DORNELLES, João Ricardo W. O desafio da violência, a questão democrática e os direitos humanos no Brasil. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 29, 2006.

FARIA, Juliana Bernardes de; SEIDL, Eliane Maria Fleury. Religiosidade, enfrentamento e bem-estar subjetivo em pessoas vivendo com HIV/AIDS. Psicologia em estudo, v. 11, n. 1, p. 155-164, 2006.

O AUTO da Compadecida. Direção de Guel Arraes. Brasil: Globo Filmes, 2000. 1 DVD (104 min.)

SILVEIRA, Daniel. Extrema pobreza se manteve estável em 2019, enquanto a pobreza teve ligeira queda no Brasil, aponta IBGE. G1.Globo.com, rio de Janeiro, 12, novembro de 2020. ECONOMIA. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/11/12/extrema-pobreza-se-manteve-estavel-em-2019-enquanto-a-pobreza-teve-ligeira-queda-no-brasil-aponta-ibge.ghtml>. Acesso em: 20, novembro de 2020.

SAKAMOTO, Leonardo. Trabalho escravo no Brasil do século XXI. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2006.

TURRA, Cleusa; VENTURI, Gustavo. Racismo cordial. São Paulo: Ática, 1995.