“O Escafandro e a Borboleta” e a prisão de si

Como realizado no caso da obra O Silêncio dos Inocentes a análise aqui proposta será dupla, ou seja, far-se-á uso tanto da versão fílmica como a literária de O Escafandro e a Borboleta, com o diferencial de se tratar, neste caso, de uma história embasada numa situação real do autor do livro e personagem central do filme. Esta escolha se deu pelo fato de a riqueza da projeção encontrar reflexo narrativo e representativo no escrito original, Le scaphandre et le papillon de 1997 feito pelo próprio personagem principal da cinebiografia.

No filme e livro acompanhamos as memórias, pensamentos e devaneios de Jean-Dominique Bauby editor-chefe da revista Elle na França. Após um derrame cerebral, Jean-Do, como é chamado pelos mais próximos, perde todos os movimentos de seu corpo, restando apenas o piscar de um dos olhos como possibilidade de comunicação com o mundo, situação esta que o acompanharia alguns meses até sua morte, pouco mais de um ano após o incidente.

Em ao menos três obras fílmicas podemos observar um paralelo com a condição de Bauby, como Christy Brown (1932-1981), e sua deficiência cognitiva, representado por Daniel Day-Lewis no filme My Left Foot (Meu Pé Esquerdo) de 1989; no filme Mar Adentro de 2004 Ramón Sampedro (1943 – 1998), vivido por Javier Bardem, enfrenta uma tetraplegia após um acidente no mar; e há também o filme Johnny Got His Gun (Johnny vai à Guerra) de 1971, baseado no livro homônimo de 1938 escrito por Dalton Trumbo, que narra a condição do soldado que perdeu pernas, braços e o próprio rosto na guerra, e tenta lidar com esta situação, trazendo um importante debate, também visto em Mar Adentro, sobre a eutanásia.

Como referência nacional há o interessante curta-metragem Trancado por Dentro de 1989 dirigido por Arthur Fontes e estrelado por Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo. Pode-se ainda citar o conto episódico Locked in (Encarcerado) de 2009, presente na quinta temporada da série Dr. House, dentre outras adaptações e representações da síndrome do encarceramento ou de uma condição física de total incapacidade de locomoção e mobilidade.

Imersões oceânicas

A síndrome do encarceramento consiste em um estado físico no qual uma pessoa conscientemente se encontra limitada a qualquer atribuição motora do seu corpo, muitas vezes restando apenas o movimento dos olhos, ou menos que isto, como dilatação da pupila e movimentação da íris.

Fonte: https://goo.gl/iAygPf

No filme e livro O escafandro e a borboleta assistimos a um caso clássico desta síndrome, vivida por Jean-Do. O protagonista revela seu drama em alguns de seus pensamentos, narrados diretamente por ele no livro e pelo ator Mathieu Amalric como, por exemplo: “Minha vida é aqui, uma eterna repetição” em relação ao hospital, ou então nas seguintes passagens “Meu escafandro te arrasta comigo ao fundo do mar.” e “Jean-Do, não me incomoda que me arraste ao fundo do mar, porque você também é uma borboleta.” (fala da enfermeira, em um devaneio). Estas são passagens do filme, que existem também, com maior profundidade de detalhes, no livro:

Ta aí! “A panela de pressão”! Poderia ser o título de uma peça de teatro que eu talvez escreva um dia com base na minha experiência. Também pensei em intitular O olho e, evidentemente, O escafandro. Todos já conhecem o enredo e o cenário. O quarto de hospital onde o senhor L., pai de família na flor da idade, aprende a viver com uma locked-in syndrome, seqüela de grave acidente vascular cerebral. A peça conta as aventuras do senhor L. dentro do universo médico e a evolução de suas relações com a mulher, os filhos, os amigos e os sócios que tem na importante agência de publicidade da qual é um dos fundadores. Ambicioso e meio cínico, não tendo até então amargado nenhum fracasso, o senhor L. aprende o que é sofrimento, assiste à derrocada de todas as certezas de que se escudara e descobre que seus parentes são uns desconhecidos. Pode-se assistir de camarote a essa lenta mutação graças a uma voz em off, que reproduz o monólogo interior do senhor L. em todas as situações. Só falta escrever a peça. Já tenho a última cena. O cenário está mergulhado na penumbra, com exceção de um halo de luz que circunda o leito, no meio do palco. É noite, tudo dorme. De repente, o senhor L., inerte desde que a cortina subiu, afasta lençóis e cobertas, pula da cama e dá uma volta em cena, sob iluminação irreal. Aí, tudo fica escuro, e ouve-se pela última vez a voz em off, o monólogo interior do senhor L.: “Merda, era sonho.” (BAUBY, 1997, p. 24-25).

O que no filme ocorre por meio dos pensamentos narrados, ou nas imagens quentes dos sonhos e devaneios do personagem principal, no livro, temos com mais riqueza de detalhes, toda as nuanças de sua rotina de aprisionamento no próprio corpo, aumentando ainda mais a complexidade na maneira pela qual o mesmo encara suas vivências diárias: “Não conheço nada mais estúpido e desesperador que esse bip-bip lancinante que me rói os miolos. De lambuja, a transpiração descolou o esparadrapo que fecha minha pálpebra direita, e os cílios grudentos me pinicam dolorosamente a pupila. Finalmente, para coroar tudo, a ponta da sonda urinária se soltou. Fiquei completamente inundado.” (BAUBY, 1997, p. 26).

De igual modo, as projeções imagéticas, sígnicas, icônicas e simbólicas de Bauby só tomam corpo a partir do momento que é oferecido à ele uma forma de tradução linguística do alfabeto. É por meio desta técnica de transposição dos seus pensamentos, e das breves piscadas do seu único olho ainda em uso, que Jean-Do consegue manifestar-se para o mundo exterior, narrando e refletindo sobre cada um dos mínimos eventos que o afetam e rodeiam:

Afasto-me. Lenta mas decididamente. Assim como o marinheiro vê desaparecer a costa de onde zarpou para a travessia, eu sinto meu passado esvanecer-se. Minha antiga vida arde ainda em mim, mas vai-se reduzindo cada vez mais às cinzas das lembranças. Desde que fixei domicílio a bordo deste escafandro, fiz duas viagens-relâmpago a Paris, sempre por ambientes hospitalares, para ouvir pareceres de sumidades da medicina. Na primeira vez sucumbi à emoção quando por acaso a ambulância passou diante do prédio ultramoderno onde outrora exerci a condenável atividade de redator-chefe de um famoso semanário feminino. Da segunda vez que fui a Paris, quatro meses depois, fiquei quase indiferente. A rua já se vestira de julho, mas para mim continuávamos no inverno, e era um cenário de filme o que me projetavam por trás dos vidros da ambulância. No cinema dão a isso o nome de transparência: o carro do herói avança por uma rua que desfila numa parede do estúdio (BAUBY, 1997, p. 34).

 A titulação do filme e livro remonta a dialeticidade presente no personagem principal das obras, ou seja, o voo da borboleta almejado e nunca alcançado, por conta da limitação física, e por outro lado o aprisionamento do corpo, e parte da subjetividade, no interior do escafandro, quilos de metal, limitando o indivíduo às profundezas do seu próprio ser, o voo da borboleta simboliza, desta forma, o reverso do que vemos no em ambas as obras. Um dos termos utilizado por Bauby é que ele vive o seu dia-a-dia “enterrado vivo no próprio corpo”, devido a sua condicionalidade física e mental/emocional, a partir das quais ele nos conta seus fatos e relatos de tal condição:

Longe desse escarcéu, no silêncio reconquistado, posso ouvir as borboletas voando pela minha cabeça. É preciso muita atenção e até certo recolhimento, pois o seu adejar é quase imperceptível. Uma respiração mais forte basta para abafá- las. Aliás, é espantoso. Minha audição não melhora, mas eu as ouço cada vez mais. De fato, as borboletas devem dar-me ouvidos. (BAUBY, 1997, p. 41).

Preso ao escafandro do seu corpo, e liberto nas asas da borboleta de sua mente, Bauby realiza voos pelos quais almeja voltar a ser ou estar livre. Esta luta por uma forma de libertação, por meio da linguagem limitada de um único olho, é diametralmente oposta à posição de Ramón Sampedro em Mar Adentro, que luta pela morte, mesmo que o segundo esteja em uma condição clínica, menos abissal que o francês. A comunicação é, desta maneira, a ponte a partir da qual os meses de vida do personagem principal tomam um sentido novo de existência, mesmo que efêmero.

O imaginário transcendente

É possível afirmar que N’O escafrandro… há uma grande declaração em prol do poderio libertador da janela imaginativa e criativa do ser humano, apesar de haver uma singularidade que potencializa ao máximo este poder da imaginação: “Dei conta de que há duas coisas que não estão paralisadas além dos meus olhos… Minha imaginação e minha memória” e Bauby ainda completa esta máxima de sua vida reafirmando a alternativa do imaginário em sua vida, mais especificamente seu estado corporal: “São os únicos meios que me permitem sair do meu escafandro” (Bauby)

Fonte: https://goo.gl/9bDYNg

Se de início Bauby foi resistente à sua sobrevivência em seu escafandro corporal: “[…] que tipo de vegetal eu sou, uma cenoura, um pepino?” (Bauby), com o passar do tempo o mesmo começa a buscar alternativas para o ser de sua existência, agora transmutada em um limite físico novo e devastador. Esta representatividade ocorrerá, por exemplo, nas declarações de anseio por um meio possível de se libertar do escafandro, uma espera pelo voo da borboleta.

Com os cotovelos sobre a mesa rolante de fórmica que lhe serve de escrivaninha, Claude relê estes textos que vimos extraindo pacientemente do vazio todas as tardes, há dois meses. Sinto prazer em rever certas páginas. Já outras nos decepcionam. Juntando tudo dá um livro? Enquanto a ouço, fico observando seus cachos escuros, as faces muito pálidas que o sol e o vento pouco rosaram, as mãos engastadas de longas veias azuladas e a cena que se tornará imagem lembrança de um verão passado em estudos. O caderno azul, cujos rostos de folha ela vai preenchendo com uma caligrafia exuberante e conscienciosa, o estojo escolar cheio de esferográficas, a pilha de lenços de papel prontos para as piores expectorações e a bolsa de ráfia vermelha, de onde ela extrai, vez por outra, uma moeda para ir buscar café. Pelo zíper entreaberto da bolsinha, percebo uma chave de hotel, um bilhete de metrô e uma nota de cem francos dobrada em quatro, como se fossem objetos trazidos por uma sonda espacial enviada à Terra para estudar os tipos de hábitat, de transporte e de troca comercial em vigor entre os terráqueos. Esse espetáculo me deixa desamparado e pensativo. Haverá neste cosmo alguma chave para destrancar meu escafandro? Alguma linha de metrô sem ponto final? Alguma moeda suficientemente forte para resgatar minha liberdade? É preciso procurar em outro lugar. É para lá que vou (BAUBY, 1997, p. 56).

Segundo o próprio Bauby, em suas infindáveis horas de aprisionamento no leito que o mantém em sobrevida, o que lhe resta são as viagens, saídas e passeios pelos sonhos, nos momentos de entrega absoluta às projeções imaginárias do seu (in)consciente e, também, os devaneios diários e constantes sobre a realidade, objetos e pessoas que o cercam. Tanto no livro como no filme esta pulsão por manifestar suas representações sobre o mundo são notáveis, trazendo para o leitor e espectador uma imersão ímpar nos pensamentos, imagens, desejos dentro do corpo imóvel.

Jean-Do veio a falecer poucos meses após a publicação do livro com suas notas de pensamento, que serviria de base para a filmagem homônima. Pelas imagens descritas e filmadas podemos, ao menos por breves momentos, embarcar nas asas de sua imaginação e fugir do encarceramento de seu escafandro.

Fonte: https://goo.gl/NE331Z

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA

Direção:  Julian Schnabel
Elenco:  Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consignny;
País: EUA e França
Ano: 2008
Classificação: 10