Operação Big Hero: uma perspectiva de elaboração do luto na adolescência

Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Filme de Animação

 

Mais uma vez os estúdios Walt Disney Pictures inovam com uma super produção voltada para público infantil, mas com linguagem atual que transcende gerações. Logo após o sucesso mundial de “Frozen – uma aventura congelante”, que rendeu à produtora seu primeiro Oscar de Animação, além da estatueta de Melhor Canção com “Let it Go”, Operação Big Hero chega aos cinemas em 2014 com a promessa de ser uma produção ainda melhor, principalmente por contar com a coprodução dos estúdios Pixar, eternizada por seus clássicos: Toy Story, Vida de Inseto,Procurando Nemo, Carros, Wall-E, Up – altas Alturas, Valente etc.

 

Logo nas primeiras cenas, podemos perceber que foco da trama não é mais o mundo mágico e fabuloso das princesas, como de costume. Em Operação Big Hero, os estúdios Disney parecem apostar nas tecnologias virtuais para criar uma nova realidade, não tão distante da que conhecemos. A produtora traz a ciência, a inteligência artificial e a robótica como novos elementos para suas tramas.

 

 

Focado agora em um público masculino – se é que ainda podemos pensar em diferenças de gênero quando o assunto são os filmes de animação – o longa, que é inspirado em uma série HQ publicada pela Marvel Comics na década de 1990, narra a história de um adolescente que tenta superar o luto da morte de seus pais e do seu irmão enquanto investiga, com a ajuda de amigos, estranhos eventos que acontecem em sua cidade: San Fransokyo. Uma cidade que mistura elementos urbanos de São Francisco e de Tóquio, mas que fica nos EUA. A cidade é mais uma prova dessa miscigenação de culturas e realidades que o roteiro pretende abordar, mas que também é um item recorrente nos quadrinhos da Marvel, e que o longa soube abordar tão bem.

 

 

ATENÇÃO: spolier’s à vista…

 

Hiro Hamada (voz de Ryan Potter), nosso personagem principal, é um adolescente prodígio, que aos 13 anos de idade já concluiu com honras o ensino médio, e mesmo assim não quer saber de faculdade. Hiro utilizou suas habilidades em robótica para criar um robô em miniatura, o qual utiliza para disputar apostas em um ringue ilegal de lutas robô. O comportamento rebelde e em conflito com leis de Hiro seria facilmente analisado como típicos de um adolescente se não soubéssemos que ele está atravessando o luto pela perda dos pais, que morreram em um acidente de trânsito.

 

Sob os cuidados da tia e do irmão mais velho, Tadashi Hamada, Hiro apresenta um comportamento intransigente nessa fase de sua vida. Eles se mantem distante dos familiares, e frequentemente foge à noite para participar de ringues de luta de robôs, chegando a ser detido pela polícia em uma dessas fugas. Sob uma ótica psicanalista, essas atitudes são consequências do processo de luto ocasionado pela perda dos pais de Hiro. Há no adolescente, um desvio da energia psíquica, que é dissociada de forma inconsciente do objeto real causador do trauma, e passa a ser investida em um novo objeto, no caso do nosso Herói: completo desrespeito às regras e normas sociais.

 

Esse comportamento de Hiro pode ser analisado sob à ótica do Arquétipo do Fora da Lei (MARK, PEARSON, 2001). Seu interesse por atividades solitárias e independentes, mais do que uma característica clássica do Luto pela morte repentina dos seus pais, diz respeito à fase da adolescência, que força na criança – agora um quase adulto –  uma ruptura com uma fase da vida onde impera a fantasia e a ingenuidade, sendo agora forçado a lidar com uma realidade dura, por vezes, cruel. Para alguns autores essa ruptura pode ser tão dolorosa que poderia ser comparada ao processo de luto. O comportamento sarcástico e cínico de adolescentes nessa fase se justificam pela perda de sua identidade de criança somada à necessidade de uma transformação forçada por aspectos internos; biológicos (puberdade); e sociais, que na maioria dos casos é enfrentada com dor e rebeldia.

 

Nesta fase, a trama apresenta um adolescente fragilizado e com preferência por atividades arriscadas, que desafiam figuras de autoridade imediata. Aqui, a psiquê de Hiro está totalmente fragmentada, há uma clara confusão e inversão de papeis, sobretudo, resultante do processo de enlutamento pela perda repentina dos pais. A função de Tadashi nesse momento, mas do que a do irmão mais velho também fragilizado pelo luto, é a de ser um apoio/suporte para o irmão caçula. Assim, ele se torna alvo de transferências do adolescente, assumindo inconscientemente o papel de novo pai, referencial de leis e normas sociais.

 

Tadashi aposta no amor que o irmão tem pela tecnologia para mostrar a ele seu laboratório na universidade e assim tentar convence-lo a ingressar na faculdade. Hiro fica fascinado com as pesquisas do irmão, que trabalha em melhorar seu robô, o Baymax. O modelo é uma espécie de enfermeiro do futuro. De uso individual e baixo custo, tem corpo inflável e visual acolhedor. O robô foi desenvolvido por Tadashi como um protótipo para ser testado em Hiro, mas que futuramente seria produzido e distribuído em larga escala para cada cidadão do planeta.

 

 

Cada vez mais próximo do laboratório, e após entrar em contato com os amigos de Tadashi (Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago e Fred), Hiro se vê empolgado com a possibilidade de desenvolver novas pesquisas e aplicar toda sua genialidade em prol de uma causa nobre, vemos aqui os primeiros sinais do desenvolvimento do Arquétipo do Herói no adolescente (MARK, PEARSON, 2001).  Empolgado com a possibilidade de ingressar na universidade, Hiro dedica seu tempo aos estudos e começa a pesquisar nano robótica para um trabalho que será apresentado na feira tecnológica, com objetivo de disputar ingresso na mesma universidade em que o seu irmão estuda.

Chegado o grande dia da feira, Hiro é ovacionado pelo seu experimento que atrai a atenção de todos. Com entrada garantida na universidade ele é surpreendido por um acidente que tira a vida de seu irmão de forma repentina e violenta. Esse novo luto, pela segunda vez em um período tão curto de tempo é sentido de forma muito dolorosa pelo adolescente, sobretudo pela representação paternal que seu irmão agora tinha em sua vida. Hiro, pela segunda vez, perde seu modelo transferencial de forma repentina e trágica, entrando em um processo de luto ainda mais intenso.

 

Com a morte do irmão, Hiro atravessa um segundo luto, muito mais forte e avassalador, sobretudo, por ainda não ter elaborado o primeiro. Mesmo com os esforços da tia e dos amigos de Tadashi que agora se sentiam compadecidos com o sofrimento de Hiro, o adolescente experimenta um quadro de enlutamento ainda mais severo que o anterior. Para a psicanalise Freudiana, o luto é uma representação do ego, onde a melancolia aparece, também, como uma representação de perda significativa da estrutura egoica (FREUD, 1917). A perda do referencial de identificação, resultante do luto, favorece a fixação de um polo melancólico no ego, este se torna alvo de interferências internas e externas, gerando um polo ambivalente e de múltiplas transferências e de conflito para o super eu.  Como resultado desse complexo, o luto é vivenciado por uma baixa autoestima, e quadros de regressão e ambivalência.

 

 

Como reações típicas do luto na adolescência podemos apontar: tristeza profunda, revolta, irá, desejo intenso de ficar sozinho, choro constate e/ou repentino, sentimento de culpa e impotência diante da vida, perca de apetite, inversão do ciclo de sono e vigília, problemas para dormir, pesadelos etc. Uso abusivos de medicamentos, álcool e outras drogas sem causa aparente também podem estar associados ao processo de luto vivenciados pelo sujeito. Estes sinais devem ser analisados com muito cuidado e atenção, pois podem facilmente evoluir para o desenvolvimento de um quadro depressivo no sujeito. Estudos apontam que quanto maior o grau de proximidade/afeto entre o enlutado e seu ente perdido, maior será a intensidade com que esses sinais serão vivenciados pelo sujeito em luto.

 

 

No caso do nosso personagem, Hiro experimenta um quadro de isolamento, choro, perca de apetite e tristeza profunda. A morte do irmão desperta nele a falta de interesse por tudo aquilo que antes faziam juntos, e que agora parecem não fazem mais sentido algum. Isso se prolonga até o adolescente reencontrar Baymax que, após forte resistência do adolescente, vai aos poucos se tornando um companheiro inseparável do garoto. Com o robô, Hiro vai redescobrindo o gosto pelas atividades do dia-a-dia, mas ainda não se sente totalmente bem. Eles criam um laço de afeto, e Baymax, apesar de uma máquina com inteligência artificial, demonstra um grande zelo e cuidado para com o garoto, que está cada vez mais apegado ao robô.

 

Apesar da resistência do adolescente em aceitar Baymax como amigo, o robô é o único elo que ele tem com seu irmão. Aos poucos, à medida que ele vai passando mais tempo ao lado do robô (que tem uma aparência dócil e “fofinha” como ele mesmo chega a afirmar), Hiro vai conquistando autoconfiança e começa a apresentar os primeiros sinais de superação do luto. Um fato importante de ser analisado, é que Baymax se desativa automaticamente quando seu paciente está “se sentindo bem”. Ao longo do filme percebemos que Hiro está tão apegado ao robô que evita ao máximo dizer que já está se sentindo bem, temendo perder seu grande amigo. Há uma clara resistência por parte do adolescente em perder seu amigo, temendo passar novamente pelo luto.

 

Com o aparecimento do vilão na trama, aparecem algumas lacunas na história sobre a morte de Tadashi. Hiro, conta com a ajuda de Baymax para desvendar esse mistério.  Para terem condições de lutar contra esse inimigo, Hiro emprega todas as suas energias em desenvolver um plano para recuperar sua tecnologia (os nano robôs). Assim, ele desvia a energia psíquica da dor do luto pela morte do irmão, em uma atividade altruísta. Nessa fase, os amigos de Tadashi reaparecem como apoio para Hiro, que está cada vez mais empenhado em desvendar quem é o vilão que roubou sua tecnologia de nano robôs. Assim, conhecemos um pouco melhor: Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago e Fred.

 

Wasabi é outro gênio da robótica, maduro, racional e viciado em organização, ele é o mais racional do grupo. Com ajuda de Hiro, ele se torna “Afiado”, um herói com lâminas de plasma capazes de cortar qualquer superfície.

Honey Lemon é uma jovem cientista, curiosa e superinteligente. Dinâmica ela é conhecida pelo espirito criativo e habilidade de trabalhar em grupo. Com ajuda de Hiro ela se torna “Ir Girl”, uma heroína usa seu conhecimento em química para produzir misturas incríveis de acordo com a necessidade de sua equipe.

Go Go Tomago, é uma mulher forte e destemida. É a mais atlética e aventureira dos quatro amigos. Com ajuda de Hiro, ela se torna Maglev, uma heroína super veloz que usa rodas de liga leve e ultravelociade.

Por fim temos Fred, este pode ser visto como o menos habilidoso e geniais dos quatro amigos, mas que preserva um espirito ingênuo de criança. Viciado em revistas de quadrinhos e super-heróis, seu sonho sempre foi o de poder cuspir fogo como um dragão. Com ajuda de Hiro ele se torna Fredzilla, um monstro que cospe fogo e tem o poder de Supersalto.

 

Assim como os quatro amigos, Baymax também ganha melhorias. Sua aparência fofinha e vulnerável ganha, nas mãos de Hiro novas ferramentas que o tornam forte e resistente à batalha. Se entendermos o novo amigo de Hiro, como seu psicopombo (ente cuja função é guiar ou conduzir a percepção de um ser humano entre dois ou mais eventos significantes), podemos perceber essas melhorias como uma forma de seu inconsciente externalizar novas defesas que sua psiquê fragmentada cria para conseguir lidar com a realidade. Esse inconsciente pessoal que é vivo, começa a se armar contra esses traumas afetivos, ao passo em que mortifica sua ingenuidade e fragilidade (características típicas de uma criança) enquanto luta pelo seu equilíbrio e homeostase. O ato simbólico de armar seu robô para essa nova batalha expressa a maturação do Herói.

 

Juntos: Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago, Fred, Baymax e Hiro se transformam nos 6 heróis quem tem a missão de derrotar esse vilão e desvendar os mistérios por traz da morte de Tadashi. Nessa tarefa eles precisam aprender a casar suas habilidades e características pessoais para derrotar seu inimigo. Nessa luta, Hiro entra em contato com uma nova decisão, tirar ou não a vida do seu inimigo quem matou seu irmão. Aqui ele consegue entender que tem tanto o direito da escolha, como o de arcar com as suas consequências. Essa fase da trama mostra uma transformação e uma evolução da psiquê de Hiro, que agora demostra características de maturidade, senso de perigo e altruísmo.

O número 6 (integrantes da equipe) aqui não deve ser considerado ao acaso. Analisado de forma simbólica, o numeral 6 significa os atributos que o homem recebe em sua essência: Vontade, Sabedoria e Amor. Esses atributos precisam estar em harmonia e equilibrados para que haja uma transformação pessoal, de modo a permitir a evolução do sujeito.  Esse desejo por crescimento pessoal e amadurecimento parece ser, ao longo da trama, o tema central da história dessa fase da vida de Hiro.

É interessante notar que os quatro amigos: Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago e Fred, juntos, apresentavam características singulares presentes na personalidade de Hiro, mas que no início da história não se articulavam entre si. A jornada do herói na trama parece ser uma busca inconsciente para organização e integralização desses aspectos (responsabilidade, criatividade, dinamicidade e ingenuidade), afim da resolução do mistério que envolve a morte do seu irmão. Simultâneo à resolução desse conflito, ocorre elaboração do luto e individuação do personagem que agora consegue tomar decisões de forma consciente, levando em consideração as consequências de suas escolhas, indícios de mortificação a infância e migração para uma nova etapa do seu desenvolvimento: a adolescência.

 

Voltando ao luto enfrentado por Hiro, percebemos que a investidas do robô foram aos poucos tendo como resultado o desenvolvimento de uma relação de afeto sincero entre as duas partes. Aos poucos, Baymax foi ocupando na vida do adolescente um papel semelhante ao que o de Tadashi. Hiro se mostra no final da trama como um jovem resiliênte, empenhado em recuperar uma relação harmoniosa com sua tia, entendendo que não precisa sepultar dentro de si a dor e o amor que sentia pela perde de seus pais e do seu irmão, mas que agora podia empregá-los em atividades de cunho altruísta e de ajuda para com o próximo, tornando-se um herói.

 

Operação Big Hero é mais do que uma lição de como o Arquétipo de Fora da Lei pode dar vazão ao surgimento do Arquétipo de Herói, trata-se de uma experiência de transformação aliada ao processo de enfrentamento do luto por perda repentina de familiares e de consolidação de uma personalidade individuada e consciente de suas potencialidades. No filme podemos ver que o luto deve ser enfrentado, mas sobretudo, no tempo do sujeito e com recursos interno próprios. O apoio dos seus amigos e familiares se tornam elementos importantes para o processo, mas que servem apenas de auxílio na construção dessa nova psiquê, que precisa encontrar em suas reservas pessoais elementos próprios para se organizar e aprender lidar com essa nova realidade.

Referências:

MARK, Margaret. PEARSON, Carol. O Herói e o Fora-da-Lei. São Paulo: Cultrix, 2001.

FREUD, S. (1986). Luto e melancolia. In Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1917).

A Filosofia simbólica dos números, disponível em: <http://odespertardaespiritualidade.blogspot.com.br/2014/12/a-filosofia-simbolica-dos-numeros.html>. Acesso de 10 de fevereiro de 2015.

Operação Big Hero, disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-209529/> Acesso de 10 de fevereiro de 2015.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

OPERAÇÃO BIG HERO

Título Original (EUA): Big Hero 6
Título em Portugal: Big Hero 6 – Os novos heróis
Direção: Don Hall e Chris Williams
Gênero: Animação, Comédia
Estúdio: Walt Disney Studios
Duração: 108 minutos
Ano: 2014