Na noite em que Mardônio me pediu: “Você faz o texto de apresentação da série do Foucault?” e eu respondi que sim, cinco segundos depois percebi que estava mergulhando em uma encrenca, dessas das quais a gente se arrepende quase que instantaneamente depois de ter entrado. Aceitei de imediato a proposta porque me vi imbuída de reler Michel Foucault (1926-1984) para escrever algumas linhas que o apresentasse, acreditando que viveria momentos de me reencontrar com textos que um dia me engrandeceram enormemente, repetiria as noites viradas com vinho, ternura e indignação nutridas por passagens foucaultianas, tiraria o pó da estante dos livros que quase sempre me convida a estancar o cotidiano cinza e triste para me perder em leituras, viveria tantas outras intensidades que suas sagazes letras provocam em mim. Afinal, reler esse francês nascido em Poitiers e morto em Paris me reapresentaria momentos de melhores encontros literários? Produzir algum/qualquer texto poderia voltar a ser divertido?
Escrever tal prefácio é demasiado difícil quando penso que se trata de provocar curiosidade em relação a uma série deste porte sem “queimar” os textos que estão por vir. Apresentar um pensador sem fazer referência a alguma obra específica é como procurar agulha no palheiro: é possível, mas requer imenso esforço e, mais ainda, um bocadinho de sorte.
Ao mesmo tempo em que eu buscava alguns de seus livros para folhear, aquela clássica fotografia que representa o autor, na qual ele aparece com sua careca brilhosa, largo sorriso e óculos grandiosos, se fez forte em minhas lembranças. Sim, a expressão imagética de Foucault é sempre inconfundível, indecifrável e estranhamente bonita. Talvez, quem sabe, as transcrições de suas aulas proferidas no Collège de France e publicadas em livros colaborem para reforçar a imagem que descrevo: são, em sua maioria, também emissoras de brilho, também largas, também grandiosas, também estranhas e também bonitas. Mas, mais que tudo, deliciosamente escandalosas.
O interesse que esse autor desperta pode comportar ares de descobertas de novos modos de reflexão. Encontrar os dizeres foucaultianos pode ser, em primeira instância, no mínimo instigador. Ele convida a um pensar que revoluciona porque é um pensar insólito e que desconstrói lógicas impregnadas na cultura há séculos: a de que o poder está fora de nós, a de que o saber é produto da ciência, a de que a subjetividade é individual. Ele propõe que o poder está em todas as relações e em todas as direções, ao contrário do que comumente se repete sobre relações de poder serem unilaterais; que o saber não está necessariamente imbricado à racionalidade científica hegemônica; que a subjetividade é produção coletiva; entre outras tantas desconstruções. Ao viver o maio de 68 (momento de protestos para que a universidade não se rendesse ao mercado e, mais ainda, de borbulhares reivindicatórios em prol de transformações de paradigmas culturais), ele transformou sua obra em um nó impossível de desfazer, questionando sobre como relações de poderes institucionais, especialmente na modernidade, dominam os corpos.
Seja pela via da disciplina como dominação explícita pelo suplício, seja pelas entrelinhas de controle que a cultura nos impõem sem que percebamos, esses corpos – que, no segundo caso, Foucault denomina de “dóceis”- são problematizados em suas entranhas e rematerializados em palavras que nos propõem não verdades, mas sim engendramentos de possibilidades de compreensão. Ou incompreensão. Mas, de modo algum, descaso. É isso o que o autor faz conosco: sem melindres, ele nos provoca coceira mental, nos desestabiliza em tempestades violentas de leituras de textos, faz montanha-russa com sistemas de pensamentos que tão bem nos acomodavam o viver. Sua produção intelectual refuta muitas repetições de conceitos de que o mau-senso faz uso.
Foucault se inscreveu em muitas diferenças. Entre elas, ele viveu na pele o cotidiano de lidar diretamente com o humano em suas versões mais discriminadas socialmente, pois trabalhou como psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões, e também viveu os propósitos da academia, já que foi professor em universidades e outras instituições de diversos países. Não explicito aqui o velho e ainda não-superado discurso “teoria x prática”, pois é evidente que ambas as carreiras se cruzam o tempo todo, já que quem está na academia faz pesquisas sobre a prática e quem está no lidar cotidiano com o público que demanda atendimento faz estudos. O que quero registrar é ele se fez de muitos caminhos trilhados e que isso ajuda a compreender algo da multiplicidade de sua expressão teórica.
Sua tese de doutorado defendida na Sorbonne (editado na forma do livro “História da Loucura na Idade Clássica”) lhe deu repercussão internacional. Ele lecionou, correu o mundo palestrando, produziu obras escritas e faladas. Tais incursões permitiram que ele se constituísse como um pensador no que de mais intenso esse termo pode comportar. Esteve em ambos os lados e, em alguns momentos, em mais lados ainda, pois seu corpo experimentou muito do que escreveu, seja a respeito de genealogias, seja a respeito de prospecções conceituais de tempos além do seu. Ele era um ser de palavras.
Foucault criou sua própria trajetória pelo signo do rompimento. Algo de sua história de vida pode colaborar na compreensão de sua produção intelectual: embora sua família fosse constituída de muitos médicos – pai, avô, bisavô -, ele rescindiu com a tradição familiar. Seu desejo era ser historiador. E assim o fez. Mas, mais que quebrar a tradição, fez fortes questionamentos à ciência médica e aos seus modos de funcionamento. Realizou graduação em filosofia e também se formou em psicologia patológica. Ao longo de sua carreira, pensou e repensou a ciência e, especialmente, a ciência dos cuidados humanos.
Entretanto, Foucault não se denominava filósofo, psicólogo ou historiador, como alguns o fazem. Ele se dizia arqueólogo – e, hoje sabemos, foi um arqueólogo de saberes. Esses mesmos que ele contestou, reverteu, problematizou. Saberes que, aliás, talvez não coubessem em nenhuma dessas ciências específicas. Sua crítica à racionalidade científica é constante: para ele, a ciência só existe em determinados sistemas históricos específicos e, portanto, não pode responder à universalidade, justamente por ser mutável de acordo com a época em que está circunscrita. A esse respeito, ele transfigurou a noção de história linear, ao propor que a história é como um emaranhado de percursos e movimentos.
Foucault ia, lia, via além: ele fazia eclipse nas idéias pré-concebidas até romper com elas. No entanto, não eram rompimentos que visassem tão puramente destruir: ao contrário, ele ardilosamente desconstruía saberes para fazer com os cacos, usando de perspicaz astúcia, outros novos possíveis saberes. Sua indocilidade em fazer desconstruções é apaixonante.
Aliás, a esse respeito, Foucault também contribui para pensarmos a psicologia. Ele não viveu para ver o rumo que tomou essa profissão, mas já o anunciava. Em alguma parte do que falou e escreveu, fez críticas vorazes (e como é bom ler um autor que estoura, ruge e vocifera!) aos rumos que a ciência como um todo vinha tomando. Seria mesmo a psicologia tão necessária, virtuosa e coerente? Não posso responder a esse questionamento que me fere tão agudamente, mas posso afirmar, com clareza, que reler Foucault me ajuda a formular tal pergunta e, ao menos, a buscar qualquer lucidez. Algumas releituras de seus textos auxiliam no processo de desorientação necessário para isso. Sim, porque tentar fazer qualquer tentativa de compreensão nesse sentido só é possível com muitos movimentos de desnortes. É sempre um desgaste. Mas, é sempre necessário.
Na atualidade, a psicologia tem vivido intensas transformações acerca de seu ensino e prática, principalmente no que concerne à quantidade, agilidade de instalação e qualidade dos cursos de graduação que se mantém país afora. Por que a psicologia interessou tanto à população em geral na última década? Por que parece que os meios de comunicação usam de maneira desmesurada os comentários desse especialista? Por que o alargamento do campo de atuação do psicólogo parece acontecer de modo tão veloz nos últimos anos?
As psicologias duras, pragmáticas e distantes da vida que a academia e o mercado muitas vezes exigem nos propõem caminhos afastados de qualquer pensamento problematizador. A mídia está repleta de aparições de psicólogos que se travestem de exemplos charmosos de como ser um bom profissional. Há uma grande leva de especialistas psis necessariamente blasés opinando com seu palavreado que se aproxima da ciência, mas não a alcança, sobre como-ser-um-bom-marido-como-ser-uma-boa-esposa em programas de auditório.
Foucault estava certo quando fez suas duras e perspicazes críticas à psicologia moderna. Estaria ele antevendo o futuro tortuoso dessa profissão que teve sua rápida ascensão no Brasil? Embora a ciência esteja vivendo uma transformação paradigmática que permite que ela seja revista e que a faz hoje mais borrada em seus limites e mais permissiva a saberes que anteriormente não eram considerados científicos, a maioria dos modos de se fazer psicologia ainda assim não são considerados ciência, andando na contramão, se distanciando de investigações que cuidam do humano e se aproximando da necessidade de produção de perfis adaptados à lógica do capital e ao estilo de vida “american way of life”. Psicólogos: demos um tiro no pé?
Ao escrever este texto e, ao mesmo tempo, pensar nos rumos que a profissão vem tomando, percebi o prazo estourando e nenhum respingo de resposta para tamanhas angústias. Mesmo com as releituras ao passar dos dias e com o apressado da hora da chegança do prazo final, eu olhava para o teclado do computador, o teclado do computador olhava para mim, uma pilha de livros acompanhava a troca de olhares, e o tic-tac do relógio me anunciava que o tempo – senhor de tudo – findava. Assim como a doença pelo HIV findou a vida de Michel Foucault em pleno ápice de sua produção e deixou a egoísta sensação de que ele poderia ter vivido e produzido só mais um pouquinho. Sobre esse fato, aliás, cabe registrar que, ao que parece, ele não tratou da doença que, naquela época, era quase completamente uma incógnita, tanto em seu aspecto de compreensão de evolução, quanto no de terapêutica. Desconhecimento? Posição política? Escolha ética? Estilo de vida? Não sabemos, mas imagino ter sido um ato de imensa coragem.
Lamentáveis e fatídicas experiências – sua morte aos 57 anos, os apertados prazos que cumprimos, o apego aos medidores de tempo que não nos permitem viver tão satisfatoriamente, as imagens rápidas e instantâneas que tentamos processar, são algumas da face mais dura da disciplina que Foucault tão bem arriscou pensar para questionar.
Numa noite de insônia por variados motivos e na ânsia/angústia de escrever sem ainda ter conseguido reviver Foucault em toda sua radicalidade, percebi vivamente que não era o autor que eu deveria reencontrar para produzir este texto, mas os diálogos que um dia travei com sua obra. Pensei que, quem sabe, os convidados a contribuir com esta série também pudessem ter tido bate-bocas e conversações afins como os que um dia eu também tive. Sim, porque muitos os que lêem Foucault vivem essa experiência. E então a tarefa se fez ainda mais complexa e arriscada, já que eu deveria apresentar não somente uma série, mas um contexto de diálogos dos mais variados autores com Michel Foucault. Sim, definitivamente, entrei numa enrascada. Portanto, já convencida de que dela não sairei ilesa, só posso mesmo seguir com a proposta a partir do que Foucault ressoou e continua ressoando em mim.
Lembro-me que, no primeiro ano do curso de psicologia, um professor, cujo nome não me recordo de prontidão, nos indicou “História da Loucura” como leitura de banheiro, no lugar das tradicionais revistas de corte e costura/fofocas de novelas/ políticas esquerdistas que muito provavelmente ornamentavam os toaletes das repúblicas estudantis dos alunos da área de humanas da época. Ele dizia que nada dava mais dor de barriga que “História da Loucura”. Balela. Demorou uns meses para que eu entendesse que talvez os livros foucaultianos não substituiriam essas literaturas, mas sim se somariam a todas elas, já que todas são afeitas à produção de tesão e de vida. Foucault é ciência pornográfica, aquela que escancara o corpo, que observa todos os buracos, que permite pensar outros usos para nossos poros, que produz conhecimento quando inscreve significações imaginárias nas problemáticas corporais, que pensa a clínica, que traz o tema da loucura – minha e sua – trancafiada em manicômios e/ou em gestos nossos de cada dia, que traduz em palavras o contentamento e descontentamento de sua época. Leituras de Foucault podem fazer viver outro corpo antes nunca vivido. Foucault é lindamente obsceno ao tornar públicas discussões antes sigilosamente escondidas nas salas de aula. No Collège de France, fez alguns dos seus muito freqüentados seminários, em que os alunos enchiam sua mesa de gravadores para tornar vivas suas palavras em outros momentos além daqueles. Sim, porque as palavras de Foucault não merecem apenas ser degustadas e digeridas, mas também ecoadas. E, mais que tudo, constantemente ruminadas.
Não escrevo especificamente sobre nenhuma de suas obras ou mesmo faço qualquer menção a alguma passagem especial porque não me apraz o gênero “a chata que conta o final do filme”. Deixarei aos leitores a prazerosa tarefa de descobrir a produção literária que a série reserva. A única observação que faço é referente ao desejo que, espero, a publicação dos próximos textos produza em vocês: o de ter contato(s) com as produções foucaultinas revisitadas por autores que se dispuseram a colaborar com as discussões. Pode ser para gostar ou desgostar. O importante é conhecer.
Há alguns anos, numa defesa de mestrado que assisti, um dos membros da banca referiu-se a Foucault como “carne de vaca”. Em minha terra, no interior assisense e de caipira paulista, tal expressão diz de algo que é tão comum que já perdeu a graça de ser falado, escrito, lido, escutado, tocado, vivido. Nego, nego e nego. Michel Foucault, que me perdoem os imersos em amarguras acadêmicas, é mais atual e imprescindível do que nunca. Suas críticas à subjetividade contemporânea batem forte no corpo de quem o lê. Não é possível conhecer sua obra, ou mesmo parte dela, e sair ileso. Transformar-se foucaultianamente é, para quem aceita o desafio, morrer para alguns preconceitos e viver para quaisquer outros conceitos que se produzam nessa relação leitor-texto. Dialogar com Foucault é fazer em si mesmo, como ele mesmo dizia, “estilo de vida”, ou seja, modos de produzir a existência condizentes com suas escolhas éticas, estéticas e políticas, fazendo da própria vida uma obra de arte. Genealogicamente e genialmente,na e pela vida que pulsa, pulsa, pulsa, pulsa, pulsa…