Se há uma coisa que a brilhante série Black Mirror sabe fazer é obrigar-nos a pensar. A escolha de seu nome, que em português significa “espelho negro” pode ser relacionada à quase onipresença das telas negras de smartphones, televisões, tecnologias diversas em todos os episódios. Mas pode ser encarada também (e essa interpretação me convence mais) como a escuridão que a humanidade certamente encontrará se esbarrar consigo mesma em algum espelho de autoanálise.
Em todas as temporadas, nos deparamos sim com tecnologia, mas somos obrigados a encarar, para além disso, uma das facetas mais características do humano: a violência. Violência explícita, violência velada, violência verbal, violência psicológica… E a tecnologia, toda essa modernidade que está a nossa disposição, servindo como mediadora, como propulsora, um canal fértil para a propagação dessa violência que carregamos dentro de nós. Sim, estamos falando de nós, aqui, agora. Não de futuro, nem de distopia… Black Mirror é real hoje, pois trata essencialmente da condição humana, não apenas de avanços tecnocientíficos.
Cada episódio é carregado da crítica pesada que nos surpreende por não apresentar o novo, mas o usual e vivenciado por nós repetidas vezes. Só nos parece novo por ser muito exagerado e caricato, mas é impossível não nos reconhecermos nas situações, simpatizando com os personagens, sabendo que faríamos as mesmas escolhas, e intimamente concordando que talvez, só talvez, fosse a hora de tentar compreender e mudar isso.
No segundo episódio da primeira temporada, “Quinze milhões de méritos”, temos a oportunidade de conhecer Bing Madsen (interpretado pelo brilhante Daniel Kaluuya), um jovem inserido em uma sociedade distópica, totalmente artificial e tecnológica. Todas as pessoas trabalham arduamente, pedalando o dia inteiro em uma espécie de bicicleta, para conseguir seu salário em forma de méritos, a moeda que dá nome ao título e que brinca, não tão sutilmente, com a ideia da meritocracia. Bing, entretanto, recebeu uma herança do irmão, o que lhe permite pedalar menos rápido e assim, ter mais tempo de pensar e refletir.
A princípio, a tecnologia reina absoluta, e nos encanta. As pessoas podem interagir com ela, comprar um amigo que “te ouve e guia seus sonhos”, brincar em jogos que (grande surpresa) reforçam ódio de classes ao colocar como inimigos os faxineiros que diariamente limpam as salas das bicicletas. E logo após, a sensação de incômodo começa a crescer quando vemos que as pessoas realmente não tem a opção de deixar dever, interagir e colaborar com o sistema. O clima fica mais e mais pesado a medida em se repara que nada é real, nem mesmo as frutas que eles compram para se alimentar, e que não há possibilidade de ver… ver o mundo, ver além das paredes cinzentas e do ambiente esterilizado.
Nesse ambiente, nada realmente toca Bing, até que ele ouve Abi (interpretada por Jessica Brown Findlay) cantando dentro do banheiro e se convence de que ela é talentosa o suficiente para participar do Hot Shot, um programa de talentos (muitíssimo parecido com X-Factor e outros similares), que é vendido como uma das únicas formas de sair da vida monótona de pedaladas. Animado por ver algo real acontecer, ele doa sua fortuna para que ela possa participar do programa.
Abi vai ao programa, e temos uma crítica sutil à “meritocracia”, quando a sala de espera para participar do programa está lotada de pessoas que estão ali por dias, semanas e, com efeito, até meses, mesmo que todos tenham se esforçado para comprar o ingresso que custa 15 milhoes de méritos e alguns tenham chegado mais cedo do que outros. A escolha da ordem para se apresentar é totalmente arbitária para os que estão ali dentro, o que nos faz pensar em que alguém escolhe a ordem de acordo com seus interesses.
Abi canta muito bem, mas não bem o suficiente para o sistema. Ou talvez, sua única razão para ter conseguido chegar ao palco seja a tentativa de convencê-la a escolher um propósito diferente. Com efeito, Abi se vê pressionada a entrar para o ramo de produções pornográficas, e mesmo que ela não tenha dito sim com clareza e com firmeza, o público aplaude e a saúda como se fosse realmente uma sorte grande. Abi estava sob o efeito de uma bebida chamada “Concordância”, e pressionada por todos, cede. Merece destaque a critica à sociedade expectadora, na perturbadora visão dos bonecos holográficos dos espectadores, aplaudindo e participando, todos virtualmente juntos e fisicamente sozinhos.
Bing, desconsolado, se lança na empreitada de conseguir juntar novamente fortuna, e subir ao palco para desafiar o júri. Com muito esforço finalmente consegue, e determinado, compra um novo ingresso. Já escaldado pela situação de Abi, engana ao fingir que já bebeu Concordância, e sobe ao palco. A cena que se desenrola é emocionante. Faz fixar os olhos, enquanto Bing dança e puxa um caco de vidro, ameaçando se matar caso não seja ouvido. Sua crítica quebraria o sistema. E ele fala. Fala e arrepia, e quando expõe a verdade, faz silenciar uma plateia ruidosa. Se o passado nos serve de lição, já sabemos o que acontece afinal.
Esse episódio, como todos de Black Mirror, contém críticas ao sistema em cada mínimo detalhe, porém, o que mais chama a atenção é a crítica ao modo como o sistema tem a capacidade de engolir até mesmo os que se levantam contra ele. Há um apagamento da subjetividade das pessoas nesse lugar fictício, e o que nos assusta é perceber que não é tão fictício assim. É uma característica observada largamente no nosso sistema atual. A cada vez que movimentos sociais se levantam, ou que uma voz se insurge contra o status quo é, como bem disse Bing em seu discurso:
“Se eu tenho um sonho? É um novo aplicativo! Compramos coisas que nem estão lá! Mostrem-nos algo real, grátis e bonito. Não conseguiriam! Isso nos abalaria! Mas estamos tão entorpecidos… são maravilhas demais para suportar! Quando encontram algo, nos dão em porções escassas. Só é aumentada, embalada e bombeada por 10.000 filtros, até que não seja nada mais que séries de luzes sem sentido, enquanto pedalamos dia após dia, indo para onde? Dando energia a quem?”
A ocupação de gerar energia para o sistema, pedalando exaustivamente durante todos os dias não é nada mais do que uma alegoria ao modo de viver atual, onde cada vez mais exercemos atividades que nos distanciam do sujeito autônomo e nos moldam a um sujeito automatizado, que não tem tempo de refletir acerca do que produz, e embebido pela tecnologia, não se importa realmente em questionar o estabelecido.
Por fim, a apropriação da crítica pelo próprio sistema e sua transformação em propaganda, pode ser observada no episódio de forma extremamente clara. Se alguma voz ousa se levantar, há tentativa de supressão. Se a tentativa não funciona, o sistema, generosamente, abre um lugar para essa crítica, amplia, vende como sua, convence o público e assim, compartimenta essa crítica junto a dezenas de outras, em um pequeno espaço onde se tem a ilusão da diversidade.
O episódio é recheado de críticas ao machismo, aos haters, à gordofobia, à indústria pornográfica, à nossa crescente impossibilidade de nos distanciarmos do ciclo vicioso do consumo exacerbado, ao uso da tecnologia para nos distanciar da natureza, à violência psicológica a que estamos constantemente expostos.
Portanto, vale a pena ressaltar: Black Mirror não é apenas sobre tecnologia. É sobre como usamos a tecnologia para amplificar nossos impulsos duvidosos. Black Mirror é sobre nós, incomoda, e esse incômodo perdura por dias. Por esse mesmo motivo, deve ser assistida não apenas como entretenimento, mas como pontapé inicial para a reflexão acerca das nossas vivências e relações na atualidade.
REFERÊNCIAS:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782003000100011&script=sci_abstract&tlng=pt
<http://observatoriodaimprensa.com.br/speculum/a-sociedade-do-espetaculo/>
<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/13/black-mirror-um-compendio-de-criminologia/>