“O que sobra para quem vive nessa perpétua angustia
causada pelo temor de perder sempre o que não quer perder?”
Soren Kierkgaard
“Em 1987, em uma cidade litorânea, uma jovem tímida e uma garota extrovertida formam uma conexão que parece transcender o tempo e espaço”. Essa parece uma boa sinopse para uma história de amor, certo? Bem, essa é a primeira impressão para quem decide assistir a “San Junipero”, o quarto episódio da terceira temporada de Black Mirror. Pórem, se esse não foi seu primeiro episódio na série britânica, você certamente desconfiou de uma descrição tão radiante e aguardou pela surpresa.
O início da trama causa estranheza por começar no passado, na década de 80, algo incomum até então. Yorkie (a jovem tímida), caminha pelas ruas de San Junipero (a cidade litorânea), até decidir entrar em uma casa noturna. A personagem aparenta desconforto observando as pessoas dançando e se divertindo, quando senta em uma mesa bebendo refrigerante é abordada por Kelly (a garota extrovertida), se passando por sua amiga para se livrar de um acompanhante. Yorkie ajuda Kelly e as duas acabam tomando um drink.
A personagem Kelly (Gugu Mbatha-Raw) é destemida, sorridente e sedutora, em contraste com Yorkie (Mackenzie Davis), retraída, desconfiada e insegura. Quando Yorkie sai correndo pelo desconforto causado pela pista de dança após o convite de Kelly, as duas acabam conversando do lado de fora.
Kelly: “Você foi criada com rédeas fortes.”
Yorkie: “Pois é. A minha família não me deixa fazer nada.”
Kelly toca Yorkie e a convida para dormirem juntas, que nega e fala que tem um noivo.
Após esse encontro, acontece um dos grandes passos para a compreensão da dinâmica do episódio. A ótica oitentista e a trilha sonora inconfundível dos anos 80 vão sendo trocadas por musicas dos 90, assim como as roupas de Yorkie que se troca consecutivas vezes em um quarto, e ao final de tudo escolhe um conjunto similar ao de costume.
Ao voltar à casa noturna, Yorkie se vê obrigada a disputar a atenção de Kelly com outra pessoa, e quando finalmente se encontram no banheiro, a jovem pede a Kelly que facilite as coisas para ela, demonstrando que o desejo era mútuo. Ambas vão até a casa de Kelly.
Após a relação sexual, Yorkie revela ter sido a sua primeira vez e questiona Kelly sobre quando ela descobriu que gostava de mulheres. Kelly revela que sempre soube, porém era casada com um homem e relata com expressão severa:
“Tinha uma quedinha por elas. Mas nunca parti pra ação. Nunca fiz nada. Estava apaixonada por ele. Estava muito apaixonada por ele. Mas ele resolveu partir. Agora só sou eu e estou vivendo […] Só quero me divertir.”
A noite acaba e nas próximas semanas Yorkie passa a não encontrar Kelly em San Junipero, descobrindo que não foi a única desprezada pela sedutora garota. E então, finalmente pode-se descobrir o que estava subentendido desde o começo. A cada semana que se passa, Yorkie procura Kelly em anos diferentes, 1980, 1996, até finalmente encontrá-la em 2002. Kelly desdenha os sentimentos de Yorkie com seu discurso hedonista.
A essa altura o espectador se pergunta: se trata de viajem no tempo? Porém, Kelly cheia de fúria esmurra um espelho quebrando-o, e em segundos, lá está ele: intacto. Bem, esse não é o plano comum da realidade.
Sören Kierkegaard (1813 -1855), pioneiro do existencialismo, pontua que o homem precisa de liberdade para definir sua natureza. O sentido da vida para Kierkegaard estaria envolto aos conceitos de livre escolha e saída do tédio existencial. O filósofo dinamarquês definiu três estágios pelos quais o homem pode passar: estético, ético e religioso (HADAAD, 2016).
Kelly estaria vivenciando o primeiro estágio no caminho da existência humana: o estético. Segundo Hadaad (2016), nesse estágio primário, a pessoa é incapaz de ser aberta em um relacionamento com outra e o desejo é a tônica de sua vida. Tudo que o aborrece é negativo, como a insistência de Yorkie, por exemplo. Uma das analogias de Kierkegaard é ao arquetípico Don Juan, popularmente sinônimo de alguém sedutor. Assim como Kelly, o próprio Kierkegaard passou por uma desilusão amorosa, que teria causado uma hiperatividade mental, que somada à melancolia do rompimento culminou em um profundo hedonismo (HADAAD, 2016).
Após a saída de Yorkie, Kelly a encontra e as duas fazem as pazes. Em uma conversa, ambas revelam um pouco da realidade de suas vidas fora dali. Yorkie diz que tem que se casar com seu noivo Greg, apesar de sua família desaprovar; e Kelly revela ter câncer em estado terminal, com aproximadamente três meses de vida, não pretendendo continuar naquela realidade após sua morte, pois seu marido também não havia decidido continuar, morrendo permanentemente.
As duas decidem se encontrar pessoalmente, então Kelly vai ao encontro de Yorkie, que está em um hospital. As duas são idosas na vida real, e Yorkie não consegue se comunicar fisicamente, somente ouvir. No hospital, Kelly conhece Greg, o noivo, que na verdade é o enfermeiro de Yorkie. Greg revela que Yorkie estava testando o sistema para ficar permanentemente em San Junipero após sua morte, e que havia ficado tetraplégica desde os 21 anos, quando se envolveu em um acidente após assumir sua orientação sexual para os pais.
Greg se casaria com Yorkie para que a eutanásia pudesse ser realizada, pois sua família não autorizaria, uma vez que eram muito religiosos. Kelly comove-se e entra no sistema para poder conversar com Yorkie, pedindo-a em casamento. Após um “sim”, a cerimônia acontece fisicamente e após algumas horas, a eutanásia é realizada. Yorkie está permanentemente em San Junipero.
Yorkie, que agora é moradora do sistema, tenta convencer Kelly a ficar com ela para a eternidade após sua morte, que se aproxima. As visitas de 5h semanais logo cessariam caso Kelly optasse pelo fim. Quando sua atual esposa toca no nome de seu ex-marido, Kelly revela que eles passaram 49 anos juntos, que tiveram uma família, uma vida. Kelly dá significado à escolha de seu marido, que rejeitou o paraíso, pois quando a filha do casal morreu a tecnologia ainda não existia.
O maior dilema existencial do homem se prostra sobre nossas personagens: qual o sentido da vida? Ambas não acreditam que exista um lugar metafísico, além dos planos que habitam.
Kelly: “Eu gostaria de acreditar que ele está com ela, que eles estão juntos, mas não. Acho que não estão em lugar nenhum, bem como você disse. Sumiram.”
As personagens que já estiveram no que seria chamado de estágio ético criado por Kierkegaard, ou seja, vivendo um compromisso com seriedade e honestidade formando laços, são jogadas ao vazio, pois de acordo com a teoria do filósofo, o estágio final denominado “religioso” (Kiekegaard o relacionava com Deus) deve ser além do próprio eu e dos limites éticos (HADAAD, 2016).
Ao perceber que a aliança entre tempo e eternidade não dissiparia o sofrimento e as leis internalizadas, o sentido da vontade de eternidade passa a ser questionado. Segundo Bauman, a sociedade atual busca consumir toda a eternidade na vida terrena, comprimindo-a e ajustando-a a existência individual (BAUMAN, 2007). A história de San Junipero retrata o alcance desse objetivo contemporâneo, com a dinâmica da configuração identitária atual.
Com o final do episódio se aproximando, o espectador se percebe em uma contradição: acreditar que Yorkie e Kelly devem ficar juntas tentando ser felizes, ou que Kelly deve desistir de sua existência em um ato de doação à existência de seus entes. Após sua morte, Kelly decide ficar no sistema, ser armazenada em uma espécie de HD. As amantes estão finalmente juntas, imunes fisicamente, a mercê somente de seus próprios sentimentos.
A sinopse citada anteriormente indicava um grande romance, mas você me diz, foi um final feliz?
REFERÊNCIAS:
HADAAD, R. Estético, ético e religioso, segundo Kierkegaard. Origami de Ideias, 2016. Acesso em: 01 set. 2017. Disponível em: < https://origamideideias.wordpress.com/2016/11/07/estetico-etico-e-religioso-segundo-kierkegaard/>.
BAUMAN, Zygmund; 1925- Vida Líquida, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2007.
BAUMAN, Zygmunt; Modernidade Líquida, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2001.