O horror de ser aquilo que odeio: uma leitura psicanalítica da identidade em Sofia (Beleza Fatal) e Hamlet

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1. Quando o ódio estrutura o Eu

E se o que mais odiamos revelasse mais de nós do que aquilo que mais amamos?

Beleza fatal, escrita e dirigida por Raphael Montes, estreou na plataforma de streaming Max. A trama conta a trajetória de Sofia em busca de vingança contra Lola, sua tia, que foi responsável pela morte injusta de sua mãe. À medida que sua rivalidade com Lola se intensifica, a relação passa a assumir o ponto central de sua vida.

Freud (1917), em Luto e Melancolia, descreve a melancolia como uma condição na qual o sujeito, em vez de elaborar uma perda, incorpora o objeto perdido dentro de si. Sofia enfrentou o luto pela morte da mãe de uma forma singular: ao invés de elaborar diretamente essa perda, ela direcionou seu ódio para Lola, que se tornou o depósito de toda a sua dor e angústia. Seu sentimento de vingança não é apenas uma tentativa de buscar justiça, mas um modo de existir frente a ausência de sua mãe. A cena em que Sofia salva Lola pode revelar que sua vingança não é apenas uma missão contra a rival, mas uma necessidade para sustentar suas estruturas. Se Lola morresse, Sofia perderia sua razão de ser. A vingança, então, se mostra como um labirinto sem saída: Sofia luta contra Lola, mas, no fundo, luta para manter sua própria estrutura psíquica intacta.

2. Hamlet e Sofia: O Luto, a Culpa e a Vingança

O fenômeno do ódio como força que sustenta a psique e ao mesmo tempo a ameaça pode ser visto frequentemente nas obras ao longo do tempo. Não pude deixar de traçar uma associação entre a personagem Sofia e o personagem Hamlet. Esse paralelo abre caminho para uma análise mais detalhada.
A tragédia Hamlet foi escrita por William Shakespeare por volta de 1600. A obra conta a história do príncipe Hamlet, que está profundamente inconformado com a morte de seu pai, o rei. Pouco depois do funeral, sua mãe, Gertrudes, casa-se com o tio de Hamlet, Cláudio, que assume a coroa. Hamlet tem suas suspeitas confirmadas quando o fantasma do seu pai aparece a ele, revelando que foi assassinado por Cláudio. Em seguida, Hamlet jura vingança, mas enfrenta sentimentos carregados de conflitos internos, ódio e culpa para investigar o crime.

A culpa é outro elemento presente em ambas narrativas. Ambos enfrentam o conflito entre manter viva a memória daquilo que perderam ou permitir-se reconstruir algo a partir dessa ausência. Por inúmeras vezes, Sofia tem a oportunidade de abandonar a ideia da vingança e viver com sua família.. A culpa, aqui, vai além dos princípios de moralidade. A culpa vem de ter se identificado com as atitudes que antes repudiava. Hamlet vivencia algo parecido, já na abertura do famoso monólogo: “Ser ou não ser, eis a questão” (Shakespeare, 2008, p. 92), em que ele pensa na morte como uma forma de acabar com a angústia de ter se tornado aquilo que odiava.

3. O Ódio que aproxima

As histórias se atravessam não só pelo enredo marcado pelo luto, mas também pelo fato de ambos estruturarem o eu em torno do oposto do outro. A relação de Sofia e Lola, em paralelo à relação de Hamlet e Cláudio, se configura a partir da mistura entre ódio e identificação. O que odeio no outro talvez seja o que rejeito em mim. Melanie Klein (1940), ao explorar as posições esquizoparanóide e depressiva, destaca que o sujeito lida com o outro por meio de mecanismos de projeção e introjeção. Dessa forma, a construção da identidade passa a existir a partir da criação de imagens conflituosas de amor e ódio. Assim, o que é odiado no outro pode ser, paradoxalmente, uma característica rejeitada do próprio sujeito.

Conforme a rivalidade se intensifica, a fronteira entre Sofia e Lola começa a se dissolver. Sofia, que antes via Lola como oposto absoluto, passa a se comportar de forma semelhante a ela. No decorrer da história, ela acusa Lola de ser manipuladora, fria e mentirosa e, ao se vingar, incorpora exatamente essas mesmas atitudes. Em paralelo, Hamlet denuncia Cláudio por corrupção e assassinato, mas, em sua jornada, passa a agir da mesma forma, sempre usando sua vingança como justificativa.

O ódio que sustenta a identidade de Sofia e Hamlet também pode ser analisado como uma defesa narcisista, na qual, ao detestar o outro, o eu se protege, mas também se revela. Em ambos os personagens, podemos identificar semelhanças entre seus rivais. Freud (1914) sugere que o ódio pode operar como defesa contra uma identificação indesejável. Dessa forma, ambos acabam ocupando o lugar que tanto desprezavam. Sofia toma o “reinado” de Lola, envolvendo-se com seu marido e assumindo seu poder. Hamlet, por sua vez, manifesta o desejo oculto de ser Cláudio casar-se com Gertrudes e governar.

4. O Horror de ser aquilo que odeio

Assim, tanto em Beleza Fatal quanto em Hamlet, o ódio emerge como uma força paradoxal: ao mesmo tempo em que ameaça a integridade do sujeito, é também o alicerce que sustenta sua identidade. Clarice Lispector (1948, apud Ontero, 2002) alerta que até eliminar os próprios defeitos pode ser arriscado, pois muitas vezes não se sabe qual deles é essencial para sustentar a estrutura do eu. É nessa ambiguidade que se inscrevem Sofia e Hamlet, personagens que, ao odiarem, sustentam o próprio ser.

Nessas narrativas, o ódio não é apenas um sentimento destrutivo, mas um sintoma que mantém vivos os laços psíquicos, por mais dolorosos que sejam. Reconhecer essa dinâmica é fundamental para compreender a complexidade da subjetividade humana, onde a identidade se forma não pela aceitação pura de si, mas pela constante negociação com aquilo que se rejeita no outro e em si mesmo. Sofia e Hamlet nos mostram que, às vezes, o que nos queixamos é aquilo que mantém nossas estruturas. E talvez o maior horror não seja odiar o outro, mas descobrir que, paradoxalmente, ele é um espelho daquilo que não queremos enxergar em nós mesmos.

Referências

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo. In: FREUD, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Tradução de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Trabalho original publicado em 1914).

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia, 1917. Disponível em: https://www.psicanalise.com.br/freud/luto-e-melancolia/. Acesso em: 29 maio 2025.

KLEIN, Melanie. O desenvolvimento emocional da criança. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LISPECTOR, Clarice. Trecho de carta a Tania Kaufmann, 6 jan. 1948. In: ONTERO, Teresa (org.). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

MONTES, Raphael. Beleza Fatal. Max, 2025. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Beleza_Fatal. Acesso em: 29 maio 2025.

SHAKESPEARE, William. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Ática, 2000.

FICHA TÉCNICA


Produção: Max e Coração da Selva.
Criação: Raphael Montes.
Direção Artística: Maria de Médicis.
Estreia: 27 de janeiro de 2025.
Exibição: Inicialmente na plataforma Max e, posteriormente, na Band.
Número de Capítulos: 40.

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