The Fall é uma série inglesa, estrelada por uma figura icônica das séries americanas, Gillian Anderson (a Dana Scully dos Arquivos X). Em 2013, ano que foi exibida sua primeira temporada, foi o programa mais assistido na Inglaterra. A princípio, a temática poderia ser o fator motivador do sucesso, já que há um crescente interesse por séries que tem como personagens principais perfis que se enquadram na categoria de psicopata. Mas não é só isso.
Os cinco episódios da primeira temporada são apresentados como se juntos formassem uma perturbadora poesia. E essa poesia tem dois extremos que se relacionam de uma forma sutil, mas profunda, no decorrer dos episódios: Stella Gibson (Gillian Anderson em uma atuação arrebatadora), a investigadora chefe de uma série de assassinatos de mulheres, e Paul Spector (Jamie Dornan), o psicológo que trabalha com famílias enlutadas durante o dia e caça mulheres (para matar) à noite.
“É isso que te incomoda, não é? A transa de uma noite só. Homem fode mulher. Sujeito: ‘homem’, verbo: ‘foder’, objeto: ‘mulher’. Mas está tudo bem. Mulher fode homem. Sujeito: ‘mulher’, objeto: ‘homem’ . Você não fica bem com isso, não é?” (Stella)
“Não sei se a dor da perda um dia será resolvida ou aceita. Não há encerramento. Nem recuperação. Mas pode aprender a viver sem a presença física do seu filho.” (Paul)
Stella e Paul estão encobertos por sombras e, às vezes, eles são a própria sombra. Enquanto o suposto psicopata é, ao menos na superfície, um pai de família dedicado, um terapeuta que busca auxiliar famílias em luto, Stella, a investigadora, assemelha-se mais a uma predadora, escolhe parceiros sexuais sem entrar em joguinhos românticos, é direta, impecável na aparência e implacável nas decisões pessoais. Mas enquanto Paul passa as noites se esgueirando em casas de belas mulheres para criar um enredo extraordinário para sua vida mesquinha, Stella, sempre tão forte e segura, acorda assustada por ter sonhado com o pai.
O poema que Paul escreveu em seu diário ilustrado por fotos nuas de suas vítimas evidencia, já no início da série, a dualidade de sua personalidade. Muitos de nós imagina coisas absurdas, há aqueles que tem desejos macabros, vontade de dominar o outro nos mais diversos contextos, mas a sanidade estabelece uma lacuna entre ideia e realidade. O crime acontece, ou uma patologia é trazida à tona, quando essa ideia é transformada em fato, modificando a realidade e mostrando aspectos da personalidade do indivíduo que não são facilmente observáveis em seu cotidiano.
A filha de Paul, uma menina de 8 anos, parece enxergar (em algum nível) a parte da personalidade do pai que está encoberta nas sombras. Mas, por ser uma criança, não consegue assimilar os detalhes que a assombram, e seus medos vem à tona em forma de pesadelos e desenhos. Paul, como psicólogo, começa a entender que a filha está assustada com os detalhes que ela percebe do mundo (e muito do seu mundo é o pai), mas que ainda não é capaz de compreender (“Ela não desenha só o que vê, ela desenha o que sabe”), assim, por algum tempo, Paul acredita que conseguirá manter a situação sob seu controle.
“O diabo, senhoras e senhores, está literalmente nos detalhes.” (Stella)
Stella e Paul são semelhantes em alguns aspectos: são atléticos (ela pratica natação, ele corre todas as manhãs), solitários, inteligentes, interessados em arte e literatura, e a forma como o diretor conduz as cenas faz parecer, em alguns momentos, que eles estão em um diálogo, ainda que não estejam em um mesmo espaço.
Mas, ao contrário de Stella, que mesmo em um ambiente predominantemente masculino obteve sucesso profissional, Paul parece viver no limite daquilo que, para ele, deve ser considerada uma vida ordinária. Enquanto o terapeuta de famílias de baixa renda, que tem um chefe nitidamente limitado, busca nas mulheres fortes que ele ataca uma forma de sentir um poder e um controle que lhe faltam, Stella evita mostrar aos outros quaisquer resquícios de emoção, como forma de manter presa à face a máscara que construiu ao longo da vida.
“É tudo parte de uma fantasia. A fantasia que o sustenta entre as mortes. É tudo sobre poder e controle. É sobre excitação. Ele se excita ao perseguir essas mulheres. Ao invadir a casa delas, pegar as roupas íntimas. É sobre intimidade. O que poderia ser mais íntimo do que tirar a vida de outro ser humano? Ter o corpo delas para fazer o que quiser” (Stella)
As mulheres que Paul ataca são escolhidas depois de muita observação, elas precisam representar todo o poder e o sucesso que ele não tem, pois ver o olhar de desespero diante da morte iminente da vítima não lhe daria o mesmo prazer se se tratasse de uma vida ordinária. Para ele, só há emoção em ser o senhor de algo, se esse algo for superior a sua outra identidade, pois não há prazer em esmagar um desgraçado, apenas tédio .
Primeiro, ocorre a invasão da casa da vitima, assim ele tem acesso aos aspectos mais íntimos do cotidiano da pessoa, desde suas roupas até seus hábitos. Então, um ritual é iniciado com a catalogação de pequenas lembranças da pessoa até a concretização da morte da vítima por asfixia. A morte por asfixia suja o local do crime e a vítima, por isso ele inicia o ritual de limpeza e organizaçao, para que as fotos produzidas, que comporão seu diário pornográfico mórbido, possam ser usadas para alimentar sua obsessão entre os períodos que fica sem matar. Mas como em todo vício, o sujeito passa a ser escravo dos seus desejos, logo, o intervalo entre as mortes passa a ser reduzido, assim como o tempo necessário para sua preparação.
“A maioria das emoções humanas está em um contínuo. Pessoas falam sobre falta de empatia, mas todos temos limites em nossa empatia.” (Stella)
A premissa de que as pessoas de uma forma geral podem apresentar características que poderiam enquadrá-las em determinadas classes de transtornos expandiu-se, em vários aspectos, da esfera qualitativa para a quantitava, ou para uma relação entre essas duas vertentes. Ou seja, talvez muitos de nós apresentemos características pertencentes à categoria “transtorno de personalidade antissocial”, por exemplo, por desenvolvermos pouca empatia em situações em que a maioria das pessoas tenderia a vivenciar com emoção e carinho. Mas essa análise não pode ser considerada de forma tão literal, há muitas variáveis envolvidas, por exemplo, a intensidade ou continuidade dessas características são fatores que podem contribuir na evidência de que podemos nos tornar um perigo para os outros e/ou desencadear uma patologia. É disso que Stella fala ao mostrar que muitas das características de um serial killerpodem ser percebidas, em menor grau, em vários indivíduos, inclusive nela própria.
“A concepção dimensional da psicopatia implica que não existem indivíduos psicopatas no sentido categórico e exclusivo do termo. Assim, todas as pessoas podem apresentar maior ou menor grau dos traços de personalidade teoricamente relacionados ao construto, sendo que na população geral haveria uma distribuição em continuum dessas características. A concepção dimensional, assim, admite certa ambigudade na caracterização do quadro, pois depende da intensidade e abrangência das características comportamentais e de personalidade que um indivíduo apresenta.” (HAUCK FILHO et al, 2009)
“Talvez.. não é que ele seja desprovido de emoções. Talvez seja o oposto. Não são de emoções que sadistas se alimentam? Pânico e terror. Acho que ele sente a dor em grande proporção, mas ele sente prazer nisso.” (Stella)
Há uma série de estudos que apontam determinadas características dos portadores de Transtorno de Personalidade Antissocial/Psicopata [1], como, por exemplo, que estes “não possuem empatia, tendem a ser insensíveis, cínicos, desprezar os sentimentos e sofrimentos alheios, podem ser exploradores em seus relacionamentos sexuais, ter uma história de múltiplos parceiros sexuais”. Paul tem um casamento estável, trata seus filhos com carinho e, as vezes, busca realmente ajudar as famílias enlutadas que o procuram. Pode ser que tudo isso seja parte de uma encenação em prol da manutenção de seus desejos mais profundos, ou talvez Stella esteja certa, um fato não exclui o outro. Talvez não seja a falta de emoção que o transforma em monstro, mas o excesso, os limites que ele rompe na busca desenfreada pelo prazer.
Parte de mim diz: o que é uma pessoa a menos na Terra? Parte de mim espera nunca te encontrar frente a frente nesse mundo ou no próximo para explicar. …É preciso ter um caos em si para gerar uma estrela bailarina (Paul).
Ao escrever para o pai de uma das vítimas, Paul cita Nietzsche (“É preciso ter um caos em si para gerar uma estrela bailarina”). Em “Assim falou Zaratustra”, temos o contexto no qual essa frase está inserida e, assim, é possível entender como Paul se vê, os motivos que o levam a acreditar que os assassinatos que pratica são parte de um processo de transformação. Um processo grandioso e necessário.
“Criar novos valores é coisa para que o próprio leão não está apto, mas libertar-se a fim de ficar apto para criar novos valores, eis o que pode fazer a força do leão. Para conquistar sua própria liberdade, o sagrado direito de dizer Não, mesmo ao dever, para isso meus irmãos é preciso ser leão.”(NIETZSCHE, p. 30)
Segundo Nietzche, a partir dos discursos de Zaratustra, existem “três metamorfoses do espírito: como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança” (p. 51). A estrela bailariana é a representação da criança, da leveza, da alegria. Na mente deturpada de Paul, toda a dor que ele está provocando é um estágio necessário para que ele possa atingir uma nova fase, uma fase que está acima de conceitos morais, acima do bem e do mal.
Descontruir essa imagem extrordinária que ele está fazendo de si é uma das primeiras ações de Stella Gibson. Para tanto, ela conta com uma formação interdisciplinar, ela entende as citações e as metáforas e isso ajuda-a a apontar a superficialidade da interpretação de Paul. E não há nada mais cruel para alguém que se julga extraordinário do que deparar-se com um outro que o enxerga tão profundamente, alguém capaz de destruir um universo alicerçado por loucura e vazio.
Nota:
[1] Transtorno de personalidade antissocial (TPAS) é a classificação nosográfica atual que mais se aproxima e que veio a substituir no DSM o transtorno de personalidade psicopática, este não mais incluso nas últimas edições do manual, embora os especialistas não considerem os dois diagnósticos equivalentes (DAVOGLIO et al, 2012).
FICHA TÉCNICA DA SÉRIE:
THE FALL – Primeira Temporada
Criação/Roteiros: Allan Cubitt
Direção: Jakob Verbruggen
Elenco principal: Gillian Anderson, Jamie Dornan
Ano: 2013