Viva – A Vida é uma Festa: o resgate do inconsciente na família

Viva é uma animação estadunidense de 2017, da Pixar. O filme retrata de forma poética a relação com a morte. A história se passa em Santa Cecilia, uma cidade do México, onde uma mulher Amelia Rivera, esposa de um músico, é abandonada, junto com sua filha, pelo esposo que decidiu seguir sua carreira musical.

Amelia se sente magoada pelo abandono e culpa a musica pelo ocorrido, banindo – a de sua vida. Assim, ela abre uma empresa de confecções de calçados e cria sua filha – Ines -, que se casa e tem a sua própria família. O tempo passa e o bisneto de Ines – Miguel – um garoto de 12 anos, sonha em ser musico e se espelha em seu ídolo Ernesto de La Cruz, um ator e cantor extremamente famoso na época em que Amelia foi abandonada pelo marido. Mas ele terá que lutar por esse sonho, pois sua família – onde todos são sapateiros – desaprova o trabalho de músico.

Com essa introdução vemos que o filme retrata uma jornada de resgate familiar, de algo reprimido no seio da família. E isso afeta diretamente a criança em seu desenvolvimento psíquico. Para Jung (1988) “Via de regra, o fator que atua psiquicamente de um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais ou antepassados não viveram (pois se trata de fenômeno psicológico atávico do pecado original).”

Essa atuação da vida não vivida dos antepassados surge na criança como um destino, e que se situa além do que é possível à capacidade humana consciente. São compensações do destino, uma espécie de função da índole moral (ethos), que cuida de abaixar o que é alto demais e de levantar o que é demasiado baixo. Contra isso de nada adianta nem a educação nem a psicoterapia. (Jung, 1988).

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Miguel irá resgatar uma parte reprimida no contexto familiar que é a relação com a música. A música possui um simbolismo muito forte. Ela é uma manifestação artística, da beleza, da alma. Ela é presidida na Grécia por Apolo, deus da beleza, da perfeição, do equilíbrio e razão. Considerado um deus solar e da luz da verdade. Um deus da consciência que vence as forças obscuras do inconsciente.

A música como arte tem uma importância imensa como expressão do inconsciente para a consciência. A manifestação artística é uma forma de encontrarmos a sensação de significado, uma vez que em nossa sociedade – com o declínio da religião tradicional – vivemos um momento de alienação, com um sentimento disseminado de falta de sentido e significado para a vida humana (Edinger, 2012).

A musica traz o significado de forma subjetiva e viva. E não de forma objetiva, externa e racional. A família segue o oficio de sapateiro. O sapato tem um simbolismo de nos colocar em contato com o terreno, com o chão firme. Nos ajuda a pisar e a se colocar diante da realidade do mundo. O sapateiro está diante da realidade objetiva, tem os pés plantados no chão, vê a vida pelo prisma da objetividade. Sendo assim, a família de Miguel excluiu o elemento subjetivo, o elemento do sentir de forma viva a existência humana.

E Miguel através da música irá resgatar esses aspectos inconscientes da família. Enfrentando a morte de frente e trazendo luz a consciência. Muitos questionamentos se passam em Miguel, que com 12 anos, enfrenta o dilema de todo jovem com a família: como articular o amor a família e o amor pela arte que pulsa em si? Transgredir um acordo familiar inconsciente e seguir seu caminho/destino ou permanecer aceito no seio familiar?

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Como todo herói ele recebe o chamado a aventura e reluta a princípio, sabendo que isso custará seu conforto e aceitação familiar. Contudo, o filme mostra que a jornada de Miguel traz uma nova dinâmica e consciência para a família. Ele consegue trazer o que é reprimido e assim transforma a sua realidade e a da família. Bem típico do herói, que representa aquele que restaura a situação saudável da psique.

Além disso, o filme tem como inspiração o feriado mexicano do Dia dos Mortos, onde se festeja os antepassados. Nesse festejo é celebrada a vida dos ancestrais e trata-se de uma festa mexicana bastante animada. Acredita-se que os mortos vêm visitar seus parentes, por isso a festa é recheada de comida, bolos, festa, música e doces preferidos dos mortos. Ou seja, vemos na animação uma forma completamente diferente de encarar a morte. Nossa sociedade encara a morte de forma muito puritana, chegando a despreza-la. A morte é um tabu em nossa sociedade!

Jung (2009) aponta o quanto não sabemos lidar com a morte e o quanto ela ainda nos assombra:

“Temos, naturalmente, um repertório de conceitos apropriados a respeito da vida, que ocasionalmente ministramos aos outros, tais como: “Todo mundo um dia vai morrer”, “ninguém e eterno” etc., mas quando estamos sozinhos e é noite, e a escuridão e o silencio são tão densos, que não escutamos e não vemos senão os pensamentos que somam e subtraem os anos da vida, e a longa serie daqueles fatos desagradáveis que impiedosamente nos mostram até onde os ponteiros do redigiu já chegaram, e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo, desejo, possuo, espero e procuro; então toda a nossa sabedoria de vida se esgueirara para um esconderijo impossível de descobrir, e o medo envolvera o insone como um cobertor sufocante.”

Porém a vida é um processo que segue seu curso para o repouso. A vida humana em seu crescimento, expansão e declínio. Jung (2009) diz que da mesma forma que a trajetória de um projétil termina quando ele atinge o alvo, assim também a vida termina na morte, que é, portanto, o alvo para o qual tende a vida inteira. Mas nos esquecemos dessa trajetória e dessa meta. Estamos fixados nos impulsos da primeira metade da vida e não aceitamos o declínio. Cultuar os mortos e os ancestrais nos lembra do nosso destino e nossa meta.

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Temos a celebração atual do dia de finados, porém trata-se de uma celebração triste e vivida muitas vezes de forma banal. O dia de los muertos, no México, é uma celebração viva e alegre, que abarca a morte na vida Jung coloca que só́ permanece realmente vivo quem estiver disposto a morrer com vida. Então, psiquicamente quando não aceitamos a morte – tanto a real quanto as simbólicas – não aceitamos a vida. Com isso, não conseguimos deixar que as coisas “morram”, e assim nos mantemos presos em estados infantis, apegos já desnecessários, crenças que não fazem mais sentido.

Miguel acredita que é descendente de seu ídolo Ernesto de La Cruz e ele vai ao museu de La Cruz para pegar emprestado o seu violão. Ao tocar o primeiro acorde, ele se torna invisível para todos os presentes na praça da vila. Porém, ele pode ver e ser visto por Dante, um cão de rua de raça que acolheu às escondidas, e por seus parentes falecidos em forma de esqueleto que saíram do Mundo dos Mortos para visitar seus familiares nesse feriado. Os familiares levam Miguel ao Mundo dos Mortos após descobrirem que Amelia não pode visitar os familiares vivos porque Miguel removeu sua foto da oferenda.

A ida de Miguel ao mundo dos mortos, pode ser comparada a uma regressão de libido. Onde os conteúdos arcaicos do inconsciente para uma adaptação ao mundo da psique (Jung, 2008). A família do menino possuía uma atitude unilateral frente a vida. A adaptação unilateral é falha e por isso é necessária a regressão para resgatar os aspectos excluídos da consciência. Um aspecto está desaparecendo no mundo dos mortos, que é Amélia, que é justamente a entrada do conflito e a saída dele.

Vemos o movimento da regressão no herói. O famoso ventre da baleia, ou seja, o alheamento completo do herói com relação ao mundo exterior (Jung, 2008). Na jornada do herói (Campbell, 1997), é uma passagem para uma esfera de renascimento. O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu. O herói vai para dentro, para nascer de novo.

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Nosso herói vai nada mais nada menos do que o próprio reino dos mortos. La ele enfrentará a própria morte. Miguel deve retornar antes do nascer do sol, senão ele ficará no Mundo dos Mortos para sempre. Mostrando os perigos da regressão da libido, ou seja, o perigo de dissociar completamente da realidade. Para retornar para o mundo dos vivos, ele precisa receber a benção de um membro de sua família. Amelia oferece sua benção a Miguel, mas sob a condição de que ele abandone seu sonho de ser músico quando retornar. Miguel recusa a condição e tenta procurar a benção de Ernesto. No caminho conhece Héctor, um esqueleto tolo que o acompanha nessa jornada.

Miguel se torna o herói na trama, pois o herói é aquele que vem restabelecer a condição saudável da psique (Von Franz, 2005). Ele empreende uma jornada ruma a transformação dessa maldição em benção. A benção corresponde ao elixir, que o herói recebe em sua jornada (Campbell, 1997). Mas essa benção não pode impedi-lo de ser quem ele é, pois nesse caso se transforma em maldição. O herói busca, por meio do seu intercurso com os deuses, não propriamente a eles, mas a sua graça, isto é, o poder de sua substância sustentadora. Essa miraculosa energia/substância, e só ela, é o Imperecível; os nomes e formas das divindades que, em todos os lugares, a encarnam distribuem e representam, vêm e vão (Campbell, 1997).

Projetamos esse imperecível no pedido de benção para os nossos ancestrais. Projetando assim, a proteção e a benção dos arquétipos divinos de forma simbólica. A aventura se passa toda no mundo dos mortos, ou seja, no mundo do inconsciente. No mundo magico das imagens arquetípicas.

Nesse mundo Miguel e Héctor se dão conta de que são tataraneto e tataravô, respectivamente. Mas a medida que o sol nasce, Héctor corre o risco de ser esquecido e de desaparecer. Amelia enfim abençoa Miguel, permitindo que ele siga em frente com o sonho de ser um músico, e ele retorna ao Mundo dos Vivos. Ele se reconcilia com Abuelita, que por sua vez enfim o aceita de volta na família e encerra o banimento à música na família.

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Miguel consegue fazer com que o espírito de Hector, seu tataravô seja salvo do esquecimento iminente. A verdadeira morte, onde o espírito da música desapareceria totalmente dessa família. A alma não pode se expressar. Resgatar a memória de Hector é resgatar algo que foi perdido e que deve ser resgatado.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 10. ed. Cultrix, São Paulo, 1997.

EDINGER, E.F. Ego e arquétipo – Individuação e função religiosa da psique. 4ª Ed. Cultrix, São Paulo, 2012.

JUNG, C. G. A Natureza da Psique. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

__________O desenvolvimento da personalidade. 4 ed.Vozes. Petrópolis: 1988.

__________ Energia Psíquica. 10 ed.Vozes. Petrópolis: 2008.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

________________. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada. Colaboradora do (En)Cena.