“Acho que a fotografia é um instrumento extremamente poderoso.”
Foto: Arquivo pessoal
Perfil
“- Pai, vou fazer psiquiatria!
– O quê?
– Vou fazer psiquiatria.
– Deixa de conversa, rapaz!
– Por quê?
– E psiquiatra é médico?”
Ele avisou e preparou o pai. A carreira estava escolhida.
Mardônio Parente de Menezes, 38 anos, fez medicina na Universidade Federal do Ceará. É especialista em psiquiatria pelo Hospital de Saúde Mental de Messejana e especialista em Saúde Mental pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. Mestre e doutorando em psicologia pela Universidade Estadual Paulista.
Atualmente é médico psiquiatra do Governo do Estado de Tocantins e professor do curso de Psicologia do Centro Universitário Luterano de Palmas. Além das funções como médico e docente, é também fotógrafo, poeta e sócio fundador da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, Regional Tocantins (SOBRAMES-TO).
E foi num clima de poesia misturada com fotografia, que esta entrevista aconteceu. O médico falou de sua vida profissional e, principalmente, do trabalho e convivência no CAPS.
(En)Cena – Você trabalha no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Dianópolis (sudeste do Tocantins, 340 km de Palmas). Lá tem casos de pessoas que viviam em suas casas, trancadas? E hoje, com o tratamento recebido no CAPS, é possível apontar mudanças? Como é percebido e como se dá o progresso de um usuário do CAPS?
Mardônio Parente – Houve uma mudança muito radical em relação à saúde mental aqui no Brasil, principalmente na década de 1980. Mas na década de 1970, já houve alguma mudança. Antes, qualquer problema era tratado no hospital e, quase sempre, com internações. Algumas vezes, para a vida toda. Na realidade, na década de 1970, isso começou a ser questionado e, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, começa a acontecer um processo que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica, que questiona, entre outras coisas, essa história de atendimento às pessoas com problemas psíquicos. Mas essa é apenas uma das dimensões da Reforma, que a gente chama de técnico-assistencial. Nessa dimensão, a principal proposta é a mudança, realmente, do hospital para serviços comunitários, para que a pessoa não se desvincule de seu território, a fim de ter o tratamento no lugar onde ela vive.
O que se notou com o hospital psiquiátrico é que as internações longas acabavam mais atrapalhando do que ajudando, pois – ao voltar do tratamento – a pessoa estava desacostumada a viver em sociedade. Essa mudança veio de uns tempos para cá e essa, hoje, é a proposta do Ministério da Saúde. O atendimento deve se dar prioritariamente em serviços territoriais e em regime ambulatorial. Como último recurso, caso se precise de um hospital, que não seja um hospital psiquiátrico, mas um hospital geral com enfermaria psiquiátrica. Aqui em Palmas, por exemplo, o HGPP (Hospital Geral Público de Palmas) tem uma enfermaria psiquiátrica e recebe pessoas em crise. Isso foi um avanço muito grande, porque imagine o impacto que é pegar uma pessoa e internar em um hospital psiquiátrico e essa pessoa passar anos internada. Depois disso, dar um redirecionamento à vida dela para que ela consiga conviver em sociedade é muito difícil.
Hoje, o CAPS trabalha com a proposta de inclusão, para que a pessoa – por exemplo – consiga voltar ao mercado de trabalho, à convivência entre as pessoas etc. Pequenas ações de inclusão são muito importantes, porque uma das coisas muito graves que aconteciam (e ainda acontecem) é que a doença acaba por provocar a desvinculação do mercado de trabalho, das amizades, das relações sociais.
O CAPS, hoje, consegue tratar a doença e faz com que a pessoa continue com sua rede de relações como sempre teve. A atenção à saúde mental de uns tempos pra cá mudou muito e, em minha opinião, mudou para melhor.
(En)Cena – A sociedade está mais aberta a receber pessoas com problemas mentais?
Mardônio Parente – Essa é outra dimensão da reforma, a sociocultural, que é você fazer caber a loucura no nosso espaço, na cidade, no nosso dia a dia e essa dimensão faz com que a sociedade fique mais aberta às pessoas com transtornos mentais e visa a incluir o portador de problemas psíquicos no lugar de cidadão, como qualquer outra pessoa. Essa é uma coisa que a reforma tem conseguido, mas ainda de forma muito lenta, porque isso requer uma mudança de opinião, o que leva muitos anos. Se a gente for considerar o período em que a psiquiatria passou recomendando a internação das pessoas portadoras de sofrimento mental, o que se deu do final do século XVIII até o período pós-Segunda Guerra (aqui no Brasil até a década de 1970), imagine o tempo necessário para que isso comece a ser questionado! De 1970 pra cá é muito pouco tempo para a gente mudar uma cultura inteira, para que as pessoas comecem a aceitar que lugar de louco não é no hospício, que lugar de louco é na cidade. É difícil isso, mas é uma coisa que se tem conseguido, principalmente os CAPS, que fazem algumas ações no sentido de propiciar o contato entre a loucura e a sociedade. Exemplos disso são: a parada louca, que acontece no CAPS de Dianópolis, e o Dia Mundial da Saúde Mental, ocasião em que os CAPS fazem ações que trazem o tema da loucura e da saúde mental para a pauta de um debate social.
É uma coisa que está acontecendo mas que precisa mudar muito ainda. Infelizmente, se a gente sair perguntando, algumas pessoas vão dizer que louco é para ficar no hospício mesmo, que louco é perigoso etc. Então, isso é uma mudança lenta, mas que está acontecendo, sim.
(En)Cena – Você já se envolveu emocionalmente com algum caso?
Mardônio Parente – Antes, existia um conceito de que o terapeuta, seja ele médico, psicólogo etc., deveria ter uma postura de neutralidade em relação ao outro, ao cliente, ao paciente, ao usuário.
Isso envolve uma terceira dimensão da reforma, que se chama dimensão epistemológica e que diz respeito a uma mudança na forma como a própria psiquiatria e outras ciências abordam a loucura, visando a uma real mudança nos diversos campos do saber.
A psiquiatria – por exemplo – visava, antes, à neutralidade do terapeuta, ao não envolvimento. A reforma tem mudado isso também, visto que é impossível você pensar em um terapeuta completamente neutro. Hoje, pensando em uma idéia ampliada de clínica, o envolvimento pode ser matéria de trabalho em um processo terapêutico, pois não há como duas pessoas se encontrarem sem se envolverem de alguma forma. Com o usuário não pode ser diferente. Quando chega uma pessoa no CAPS, com quem quer que ele troque relações, vai haver envolvimento de ambas as partes. É claro que a gente precisa de um técnico que seja bem formado, tanto tecnicamente como pessoalmente, para que esse envolvimento não atrapalhe. Quando há uma espécie de envolvimento que provoca, por exemplo, um cuidado excessivo, que acaba infantilizando o usuário, isso pode atrapalhar a relação. Mas existem relações em que o envolvimento pode ser positivo e deve ser positivo. Acho que o grande desafio não é não se envolver, mas se envolver de uma forma que se construa algo, para que a relação seja boa para as pessoas envolvidas. O terapeuta não deve e não pode estar ali apenas como aquele que possui um saber que servirá somente ao outro; o profissional também deverá sair enriquecido daquele encontro. Enfim, o envolvimento é necessário deve trazer algo de positivo para a relação.
(En)Cena – Como você procura agir para sofrer o menor impacto possível com as dores e dramas dos pacientes?
Mardônio Parente – Isso, em geral, é difícil. Por exemplo, na minha residência (especialização médica) entraram cinco pessoas. Uma delas desistiu e uma outra esteve afastada por uns seis meses, deprimida. Nós entramos em contato com muita coisa: coisas nossas e do outro.
É importante que se tenha a percepção da dor do outro sem que essa sensação nos elimine, nos mate. Caso contrário, nós não iremos conseguir cuidar de ninguém.
Não existe uma técnica específica, mas eu fiz terapia durante quatros anos e isso me ajudou muito a perceber o outro e a perceber também que o outro é o outro, não sou eu. Pensar nisso me ajudou muito. Também é preciso que se tenha uma válvula de escape, é preciso uma vida e que essa vida não seja só a rotina do trabalho. É preciso que se tenha, paralelamente, algo que produza vida, para que se consiga exercer sua capacidade de cuidar. Caso contrário, o profissional acaba se esvaindo, cansando. Se a pessoa não tem algo que lhe torne a vida interessante, viva mesmo, não consegue produzir vida no serviço.
(En)Cena – Como aliar a medicina a tudo o que você faz?
Mardônio Parente – Apesar das muitas coisas que eu faço, eu vejo um sentido nelas. Acho que não são coisas tão diferentes. Vejo um fio comum que me conduz. Eu não consigo separar, por exemplo, o trabalho de fotógrafo do trabalho de psiquiatra. Eu acho que são coisas que se juntam.
Eu sempre gostei muito de ficar transitando. Por exemplo, fiz especialização em saúde mental; fiz meu mestrado em psicologia, que – teoricamente – é um campo distante da psiquiatria; estou fazendo doutorado em psicologia e pretendo fazer meu pós-doutorado em outra área, talvez em comunicação, que seja. Acho importante fazer esse passeio e vejo que eu não daria conta de fazer pós-graduação, mestrado e doutorado em uma mesma área. Penso que transitar em diversas áreas é aumentar sua caixa de ferramentas; é você ter ferramentas para trabalhar.
Eu gosto de fotografia e me divirto muito com ela. Gosto de olhar, de fotografar… Isso me ajuda muito a ter outros olhares a respeito das pessoas que me procuram. A fotografia propicia isso. Portanto, não vejo incompatibilidades. Há, claro, uma limitação quanto à falta de tempo, mas tento me virar.
(En)Cena – A fotografia também é uma terapia?
Mardônio Parente – Acho que a fotografia é um instrumento extremamente poderoso. De fato, no CAPS de Porto Nacional, tive uma experiência bem interessante: coordenei por cerca de dois anos e meio, uma oficina de fotografia, com alguns usuários bem graves. Essa oficina chegou a ser veiculada em um programa do Canal Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, e dela saiu uma exposição fotográfica que rodou algumas cidades do Tocantins.
Alguns anos depois, escrevi um artigo sobre essa experiência. Na época em que a oficina se deu, eu não me preocupava muito se aquilo era terapêutico. Simplesmente nos reuníamos, trocávamos experiências, além de tentarmos contemplar alguns objetivos que o grupo tinha se posto: como a exposição, por exemplo. Chegamos a montar, dentro do CAPS, um laboratório de revelação em preto e branco. Algo bem interessante…
Depois de um certo tempo, vi que – apesar de não haver exatamente um referencial teórico claro que embasasse aquela oficina como estratégia terapêutica – aquela experiência fez parte de uma ação de cuidado. Aí, eu fui obrigado a pensar sobre isso, sobre porque a fotografia pode ser interessante como proposta terapêutica. Na minha opinião, existem milhões de motivos que fizeram daquela uma boa experiência, mas acho que a fotografia dentro de um serviço de saúde mental tem uma coisa fundamental: que é você pegar usuários de CAPS, excluídos, vistos como perigosos e incapazes, meras vítimas do olhar dos outros, e fazer com que essas pessoas comecem a olhar. Isso é uma inversão muito interessante.
É como se a fotografia fizesse com que o portador de sofrimento psíquico se apoderasse novamente de uma coisa que lhe foi tirada. Ele passa, então, a ser, ao invés de vítima, dono de um olhar. Ele começa a te olhar, a olhar a cidade, a olhar o mundo. Fotografar é isso. É uma maneira de dizer que eu também sou capaz de olhar e de dizer o que acho das coisas.
Mardônio Parente em exercício como fotógrafo.
Foto: Arquivo pessoal
(En)Cena – Mudando de assunto, você integra a equipe do portal (En)Cena, inclusive é um dos idealizadores. Como surgiu a idéia do portal (En)Cena?
Mardônio Parente – O portal surgiu basicamente da ideia de aproveitar experiências que acontecem todos os dias nos serviços de saúde e de saúde mental, as quais têm pouca visibilidade e que acabam por se perder por falta de oportunidade e espaço para divulgação. Não é todo o mundo que gosta e que quer escrever um artigo científico sobre suas experiências profissionais, assim como e não é toda experiência que se adequa a um artigo científico. O (En)Cena, então, seria um espaço para se divulgar o trabalho realizado nesses serviços, assim como um espaço de troca de experiências. Foi basicamente dessas ideias que surgiu o portal: como uma oportunidade de trocar experiências e também como um espaço de divulgação do que está acontecendo no campo da saúde mental.
Nos CAPS, por exemplo, existem muitas produções dos próprios usuários que a gente não consegue divulgar. O (En)Cena é um espaço para isso também. A coisa foi crescendo e outras ideias foram se juntando. A proposta do portal se enriqueceu com o fato de que, para sua realização, juntaram-se os cursos de Comunicação, Sistemas de Informação e Psicologia. Só isso seria o bastante para tornar o projeto rico. É muito interessante ver pessoas de outras áreas falando sobre loucura, que – a priori – não tem nada a ver com sua formação. Se pararmos um pouco para pensar, faz parte do papel da academia formar pessoas que saibam discutir saúde e saúde mental, já que visto deveria ser um valor para todo o mundo. Há uma seção, por exemplo, para a qual a gente chama pessoas de outras áreas para falar sobre loucura. Essa seção se chama “Desterritorialize-se”, que é isso, é você sair do território e passear por um outro. Acho que essa é uma proposta muito legal do (En)Cena.
Hoje, pode-se dizer genericamente, que o portal pretende se tornar e já é um espaço de discussão sobre saúde mental.