Desafios da Casa de Marta – (En)Cena entrevista as Irmãs Ilma, Cecília e Edwiges

A Casa de Marta, fundada em 2002, é uma Instituição Filantrópica, de iniciativa da Igreja Católica, pertencente à Arquidiocese de Palmas. Ainda, é um Centro de Apoio a gestantes menores de idade, de 12 a 17 anos, expostas à insegurança, fragilidade e em situação de risco.

Além disso, a Casa oferece oficinas (alguns trabalhos manuais e confecção do seu próprio enxoval); treinamento de cuidados com os bebês; atendimento psicológico; momento de reflexão e espiritualidade, além de visitas domiciliares. Vale ressaltar que a Casa não funciona sob regime de internato, porém suas atividades são realizadas três vezes por semana (segunda-feira, quarta-feira e sexta-feira das 8h30 às 16h30). No que tange à manutenção, a Casa conta com o voluntariado, além de doações externas (COMPROMISSO, 2014, p.1).

Foram entrevistadas as irmãs Ilma, Cecília e Edwiges, que acompanham as adolescentes na Casa durante a gravidez e também aquelas que deram à luz e continuam frequentando às atividades até que seus bebês completem 01 ano de idade (prazo estipulado pela Casa).

Fonte: encurtador.com.br/cdUVY

(En)Cena – Desde a sua fundação, quantas adolescentes, em média, já procuraram o trabalho da Casa?

Irmã Ilma – A média do nosso atendimento por ano, é mais ou menos, umas 20. Aqui na Casa a nossa Missão iniciou em 2014.

 

(En)Cena – Quais profissionais, atualmente, desenvolvem algum tipo de trabalho?

Irmã Ilma – O que nós tivemos de acompanhamento eram os agentes de saúde, dentista, assistente social. E os agentes de posto de saúde. E tinham psicólogas que acompanharam o ano inteiro. Nestes últimos anos, nós fomos tendo uma frequência menos regular porque vinham, não encontravam ninguém, aí foram as dificuldades permitiram mais. Então é um trabalho, assim, difícil nesse sentido. Tinha uma psicóloga muito boa que acompanhou no primeiro ano. Na espiritualidade da mesma forma. E na questão da saúde, de enfermagem, da mesma forma. Aí o posto de saúde começou a dar este auxílio, aí veio regularmente por um certo tempo, mas depois eles não vieram mais.

 

(En)Cena – Especificamente, como era o trabalho desenvolvido pela psicóloga?

Irmã Ilma – Ela atendia grupo e atendia individualmente.

 

(En)Cena – De que maneira as adolescentes acolhem as atividades propostas pela Casa?

Irmã Ilma – Através da entrevista que é feita é colocado para elas a forma como a Casa funciona, a responsabilidade que elas devem assumir juntas e a contribuição que elas devem dar também para manter a Casa em ordem. A Casa é nossa, nós que temos que cuidar. A pessoa responsável [por elas] assina um termo de compromisso. Então elas entram na Casa sabendo do compromisso que elas têm de aprender, mas também de colaborar no cuidado da Casa.

Irmã Edwiges – Como se fosse a casa delas.

Irmã Ilma – Isso. É um compromisso de formação. Não é assim que elas precisam chegar aqui, trabalhar, fazer limpeza, organizar, mas é manter o espaço em ordem, ajudar nas refeições.

 

(En)Cena – Há alguma mudança evidente no comportamento das adolescentes ao longo do período em que participam das atividades propostas pela Casa?

Irmã Ilma – Sim, muito. Crescem como pessoa, se modificam, amadurecem. Falo pelo testemunho de algumas que as vezes chegam, já estão com 18 anos e aí quando elas voltam, elas colocam que aprenderam a ser gente, a tratar as pessoas, a servir melhor a comunidade e a gente tem exemplo concreto na comunidade. E algumas tinham dificuldade de aceitar a própria criança, mas aí elas aprendem a querê-las bem.

Irmã Cecília – Tem umas que quando acontece, têm pais ou mãe “você se vira agora, né?” “Você entrou nessa, agora, você se vira.” Mas a gente percebe que do jeito como elas estão aqui sendo acolhidas e tudo, os pais dão o seu apoio também. Porque realmente os pais jogam fora. O que vai ser? Não sei.

Irmã Ilma – Tivemos caso delas serem expulsas de casa, às vezes o parceiro é uma pessoa já mais madura. É uma realidade bem sofrida, raramente acontece na mesma idade, tem algumas que tem um parceiro já chegando nos 30. Já tivemos caso nessa situação. Agora tem outras que têm o parceiro mais jovem, mas tem alguns casos assim mais difíceis.

 

(En)Cena – Como vocês se sentem trabalhando com adolescentes em vulnerabilidade não apenas social, mas emocional?

Irmã Ilma – Eu procuro me colocar no lugar, de pensar que a gente vem de uma realidade de família. A gente teve um aconchego. Eu me coloco muito no lugar, de pensar se fosse eu nesse estado de vida, de pensar de não ter a família, de ver a realidade da família quebrada. Então, procurar sempre acolher com muito amor. Às vezes custa para a gente já nossa idade pensar com essas jovens isso, que são adolescentes e elas nos veem como aquela que é maior, que já tem idade. E para elas também é difícil. Mas eu vejo assim: a gente também aprende nessa convivência com o diferente. Eu não sou de ficar perguntando nem de muita conversa, mas quando a gente está ali, no silêncio, elas se revelam, elas contam. A juventude tem mais dificuldade de enxergar a realidade que está a sua frente. É difícil.

Irmã Edwiges – Como é importante uma estrutura familiar, uma base, de estar com os pés no chão e ir para frente. E a gente recebeu isso da família da gente. Uma estrutura, pelo menos. Agora, essas meninas que talvez não receberam nada, de qualquer jeito. Como é triste viver desse jeito. Como se fosse uma pessoa que está nesse mundo jogada, solta. Sem nenhuma estrutura, nem nenhuma formação. Acho que é muito importante a estrutura familiar e trabalhar muito com as famílias também. As famílias acho que por muito tempo, deixou de fazer esse trabalho e tudo se tornou moderno, e tudo é permitido. Eu me coloco no lugar dessas famílias. Por que, e os filhos, agora? Os filhos delas, como que vai ser? Se não tiver uma estrutura e uma educação, não sei nem o que vai ser dessas meninas, desses filhos.

Irmã Cecília – Eu me sinto feliz de poder estar aqui à serviço. Seja lá o que a gente possa dar ou não possa dar, mas eu vejo que elas também contribuem e eu considero esse nosso serviço, que as vezes a gente diz que é difícil, eu considero assim: é uma obra de misericórdia. E, nesse sentido de uma obra de misericórdia, eu acho que a gente coloca tudo que a gente pode colocar. E eu me sinto feliz. Imagina: se eu não gostasse, eu não estaria aqui. Porque cada pessoa recebe algo e tem vários dons, né? Cada pessoa tem um dom diferente. Na minha realidade de missionária, serva do Espírito Santo, para qual também fui educada. Eu gosto desse serviço, de abraçar essas crianças, pegar, cuidar enquanto elas fazem o serviço na Casa. Elas se colocam muito prontamente também. Isso a gente percebe. E aí, elas já confiam essas crianças para nós, né? E aí, eu vou dizer que, para mim, é uma alegria estar entre elas.

Irmã Ilma – Nós sentimos falta quando ficamos fora alguns dias. Aqui já virou a nossa casa. Mas assim, o que eu acho bonito nelas, por exemplo, quando elas estão com as crianças – para elas poderem ajudar no serviço da Casa – elas chegam perto da gente e fala assim “irmã você segura [a criança]?” Isso para mim é uma coisa grandiosa.

Irmã Cecília – Tinha uma, ninguém conseguia fazê-la dormir nem ela mesma [a mãe]. Balançava pra lá, pra cá. E um dia “será que ela [irmã Cecília] vai dar conta de fazer o meu nenezinho dormir?” Mas ela confiou. E você acredita que… ela balançava demais, então eu pegava e fazia só assim… e ela dormiu. E ficou admirada. E elas vendo com interesse, cuidado e carinho que a gente faz. Pronto.

Irmã Edwiges – É como se fosse da gente. Da gente mesmo. Irmão da gente que a gente também cuidou muito.

Fonte: encurtador.com.br/eNOU0

 (En)Cena – Qual tipo de profissional vocês acreditam que possa auxiliar as adolescentes, durante essa etapa da vida?

Irmã Ilma – Todas as pessoas que têm interesse de se oferecer nós acolhemos porque o que nós dizemos para todos é o que nós dissemos para vocês: a gente quer respeitar a vida e a dignidade das jovens. Não queremos que elas sejam expostas. [Precisamos] de pessoas que tenham esse compromisso do valor da vida. Nós tivemos um pastor que acompanhou um ano ou um semestre inteiro. Ele veio todas as semanas rezar junto com a família. Muito bom. Se a pessoa quer fazer um trabalho de gratuidade, ela é bem-vinda. É bem-vinda neste sentido: nesse respeito que tem das ordens da Casa, todas as pessoas são bem-vindas. Não importa nenhuma religião, nem a cor nem a raça. O que importa é que ela venha ajudar ou somar o conhecimento com aquilo que nós temos. Em geral, as pessoas que vem, pedem opinião sobre o que eles devem trabalhar. Então aí a gente já dá as dicas para ajudar na formação delas, sobre o que que é necessário fazer, diante da realidade, da experiência que nós ouvimos, que nós sentimos que elas trazem. Em geral, as pessoas procuram saber o que seria importante trabalhar com elas porque nós tivemos também uma experiência de pessoas que faziam uma faculdade com relação a alimentação. Então deram toda essa formação de alimentação, fizeram uma demonstração prática nesse sentido. Dizer que não tivemos ninguém para ajudar, não. Sempre tem gente, de uma forma ou de outra que colabora.

 

(En)Cena – Como vocês veem a transição das meninas de adolescentes para mãe?

Irmã Ilma – É uma pergunta muito difícil porque. Eu pergunto assim, “como essas crianças vão se desenvolver na vida?” Porque, de um modo geral, elas vêm de uma realidade violenta. A realidade que elas vivem lá nas periferias, é uma realidade de muita violência, elas estão sempre expostas. Às vezes, com relação a questão das drogas.  É muito difícil. Quando elas estão aqui estão bem, mas quando elas estão indo daqui para lá, elas vão voltar para a mesma realidade. E é uma realidade que elas até podem querer mudar, mas como nós dissemos, elas crescem, mas aí depois elas criam dificuldades também lá. Porque elas mudam, modificam, têm um outro olhar, veem a vida diferente, mas quando elas chegam lá, não tem nada que ajuda as outras pessoas no crescimento. É isso que nós sentimos falta. Lá. Na base, aonde poder oferecer para as famílias para ajudar nesse caminhar. Porque aí no caso elas recebem a formação, elas entendem melhor e aí chegam lá não tem um apoio.

Irmã Cecília – Eu vejo assim, por exemplo, talvez não tem nem pai, depois fica só a mãe. Suponhamos, ela – não é que todas as mães fazem isso – rejeitou a filha e quando elas veem porque que elas estão aqui recebendo a formação e tudo que elas vão levando também para casa e vê… No final, quem rejeitou acaba acolhendo. Eu sinto assim, no convívio aqui que elas conversam entre si. No diálogo entre elas, elas vão conhecendo a vida de todas. Porque a gente não vai perguntar, mas na conversa a gente já sabe o que elas enfrentam. Mas eu vejo que no final elas têm um aconchego da própria mãe ou da própria família, que assume junto.

Irmã Edwiges – Antes de sair daqui, sempre levam alguma coisa boa para casa. Acho que elas não esquecem isso, não.

Irmã Cecília – Não, isso fica.

Irmã Edwiges – Alguma coisa sempre fica. Esse é o sentido da Casa. Acho que uma coisa boa sempre fica.

Irmã Cecília – E elas percebem que a gente não vasculha a vida delas.

Irmã Ilma – Elas crescem como pessoa.

Irmã Cecília – E eu lembro que alguém me perguntou, “mas como é que vocês fazem lá? Vocês têm internato? Elas podem ficar?” Se elas morassem na Casa, se assumirmos tudo. Não, justamente, a gente encaminha para a vida.

Irmã Edwiges – Se fosse internato não seria tão bom porque elas saem um pouco da vida delas, as vezes com parceiro lá. As vezes tem que ir para casa, para viver a vida delas.

Irmã Cecília – Elas têm que continuar a enfrentar a vida.

 

(En)Cena – Vocês possuem contato com as adolescentes que não participam mais das atividades?

Irmã Ilma – A gente tenta entrar em contato. Em geral, elas mesmas sempre procuram visitar, mas as primeiras que eu conheci, não tenho mais contato. E elas se mudam muito.

Cecília: Mudam. Vão para outro Estado.

Irmã Ilma – Vão para as suas cidades de origem. Porque todo mundo que está aqui não é daqui. A maioria não é daqui. Elas vieram de outras realidades e muitas das primeiras voltaram para as suas origens. Voltam para a família, pois as vezes estão aqui com uma tia ou as vezes com a avó. Depois, quando chegam nesse estado de ter a criança, as vezes elas vão para onde estão os pais. São tantas realidades, tantas situações diferentes que passaram que nem dá mais para a gente guardar tantas porque a gente vai vendo cada vez um caso mais difícil que o outro e assim por diante. Tivemos caso de abandono de família, de uma perseguição de rua, de precisar tirar a jovem da criança, para poder amparar ao dar à luz. Aí depois, a mãe estava distante daqui, aí quando ela deu à luz, a mãe veio buscar.

 

(En)Cena – Existe algum relato, dentre as adolescentes que passaram por aqui, de superação ou que deram a volta por cima e hoje ajuda a Casa?

Irmã Edwiges – Tem a Mônica (nome fictício), que sempre vem. A Maria (nome fictício). Ela estava fazendo coisas para vender que foi aprendido aqui.

Referências:

COMPROMISSO com a vida. Palmas, TO: Casa de Marta, 2014.

 

Nota: A entrevista foi realizada com autorização dos dirigentes da Casa de Marta no período do desenvolvimento do Estágio Específico em Saúde Mental, do curso de Psicologia do Centro Universitário Luterano de Palmas – Ceulp/Ulbra, com a supervisão da Profa. Dra Irenides Teixeira.